Ver o sucesso de “Ainda Estou Aqui” pelo mundo faz a vida prestar, e muito. O filme é finalista em três categorias do Oscar (no dia 2 de março), e ainda disputa (dia 16 de fevereiro) uma categoria no Bafta, o principal prêmio do cinema britânico. O mais bonito é ver as salas de cinema, de Norte a Sul do Brasil, cheias. E o mais lindo de tudo: salas invadidas por jovens que querem entender um pouco do que algumas famílias brasileiras viveram na ditadura militar.

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Ainda era menino no fim-do-anos-60-começo-dos-anos-70 do século passado. Em minha casa, num bairro de classe média-baixa do subúrbio carioca, meus pais não falavam em política. A desinformação reinava em nosso lar. Não tínhamos o capital cultural das elites, vivíamos imersos em nosso mundinho.

Via na televisão que este é um país que iria para frente. Ouvia a odiosa frase “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Escutava falar sobre “milagre econômico”. Na inocência de criança-quase-adolescente, desconhecia que tudo aquilo vinha a ser propaganda do governo militar. A ignorância muitas vezes pode ser uma (temporária) bênção.

Um passo, uma viagem e as lembranças de uma epopeia em Praga

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Nas escolas públicas, professores eram como túmulos. Com os alunos não trocavam sequer uma palavra sobre a vida política nacional. Tínhamos aulas de Organização Social e Política Brasileira (OSPB), com o objetivo de exaltar o nacionalismo. Tínhamos também Educação Moral e Cívica (EMC), disciplina que visava “desenvolver valores éticos, morais e cívicos, bem como o conhecimento de direitos e deveres”. Duas excrescências inventadas pelos ditadores em 1969, OSPB e EMC foram extintas com a redemocratização do país.  

Mais para o fim-dos-anos-70-começo-dos-anos-80 as artes entraram na vida daquele rapaz desajeitado e feinho, barba malfeita e pobre. Pequenos sinais da mudança: “Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho; “Pra Frente, Brasil”, de Roberto Farias; o mergulho em Chico, Caetano, Gil, Rita, Mutantes, Ney, Secos & Molhados, Milton, Gal; a decisão de estudar Jornalismo; o interminável namoro com os livros; o encontro com a inesquecível coleção Primeiros Passos, da editora Brasiliense (“O Que É Ideologia”, da filósofa Marilena Chaui, até hoje é leitura obrigatória).

Viva Fernanda, viva Fernandona, viva Eunice, viva o melhor do Brasil

Música, cinema, teatro, literatura, o poder das artes. Os amigos, as conversas em bares indigentes, regadas com cerveja gelada ou algum vinho ruim, salgadinhos gordurentos, o poder das amizades. Ler, ouvir, escrever, questionar, duvidar, estranhar, pensar, buscar as perguntas que não foram feitas, procurar as respostas que não foram dadas. É como cantou Jair Rodrigues, na belíssima “Disparada”: “E nos sonhos que fui sonhando/As visões se clareando/As visões se clareando/Até que um dia acordei”.

Com a sensível atuação de Fernanda Torres interpretando uma fortaleza chamada Eunice Paiva, “Ainda Estou Aqui” encoraja a curiosidade e aclara caminhos. Muitos jovens que estão indo ao cinema carregam o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, no qual o filme de Walter Salles foi baseado. Enquanto esperam o começo da sessão, leem, se emocionam e se informam. 

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Presta muito e é bonito de ver.