Foi catando berbigão na areia da Praia Central de Balneário Camboriú, no Litoral Norte do Estado, que veio o convite para Jaci Aparecida de Souza, de 46 anos, participar da pesca da tainha. A paranaense, que mora em Santa Catarina há 20 anos, atualmente se divide entre o Rancho dos Rapazes e o Rancho da Selma, desempenhando a função de vigia.
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— Alguns diziam que mulher não pode, eu falei: “mas da onde que existe isso? Que mulher não pode?” Daí eu fui a Florianópolis e conversei com um monte de gente. Fui na colônia de pesca e fui conquistando o meu espaço de mulher pescadora de Balneário. Consegui fazer a minha carteirinha de pesca. Mas, enquanto isso, durante todo esse tempo, toda a vida pesquei — conta.
Considerada um patrimônio cultural de Santa Catarina, a pesca da tainha movimenta a economia local e garante renda para as famílias do litoral catarinense. As mulheres ainda são minoria entre os pescadores, mas desempenham um papel essencial na atividade.
Depois do primeiro cerco junto dos pescadores, Jaci passou a ir ao rancho todos os dias. Cada vez que os companheiros iam dar um lance, ela estava ali para ajudar a puxar a rede. Logo passou a aprender a ir para o mar, entrar na canoa e ficar dentro da água para segurar o chumbo e garantir que as tainhas não fujam.
Pescadora e diarista
Além de pescadora, Jaci trabalha como diarista. Porém, durante os meses de safra da tainha, a dedicação é exclusiva à prática. No restante do ano, concilia o trabalho com a pesca de outros peixes, como tainhota, parati e pampo.
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— E é divertido, é gratificante porque a gente tem o respeito deles. A gente não só é amigo, como se torna uma família. Todo mundo olha e diz: nossa, lá tem uma mulher na canoa, tem uma mulher pescando, tem uma mulher lá dando ordem, é uma mulher vigiando. É gratificante para nós, mulheres, sermos reconhecidas — afirma Jaci.
Apesar de ocupar a função principal de vigia, a pescadora também ajuda a dar o lance, fica no “chumbo” — ou seja, na água no momento da captura, segurando o peixe —, e ajuda a ensinar outras pessoas a pescar. Ainda, realiza a soltura de raias, tartarugas e outros animais capturados nas redes de pesca ao seu habitat natural.
— A pesca para mim é tudo. Eu amo estar aqui, trazer meus netos. Estou formando já meus netinhos pequenos para tá na pesca, para que isso daqui não morra. Isso aqui é uma cultura, é uma coisa que eu amo. Eu saio de casa, seja a hora que for, se me ligar às duas da manhã, saio correndo e venho para cá. Eu amo isso daqui. Eu amo pescar — declara Jaci.
Erica Barberini, de 49 anos, é natural de Balneário Camboriú, e começou a atuar na pesca da tainha no último ano. Corretora de imóveis e gerente de vendas em uma loja, ela concilia a rotina na pesca com o trabalho e a faculdade de Direito, e diz que troca o dia de folga para estar na praia pescando.
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— É um espaço que poucas pessoas, poucas mulheres tem, em decorrência de ser um serviço mais braçal, um trabalho bem artesanal. Mas é um trabalho que traz frutos diários para muitas famílias — relembra.
Segundo ela, só em Balneário Camboriú são 250 famílias cadastradas que sobrevivem da pesca. Apesar da cidade possuir uma característica cosmopolita, a safra da tainha faz parte do patrimônio cultural do município. O desejo de Erica e dos demais pescadores é que essa essência não se perca.
— A pesca é importantíssima, é uma coisa que está dentro do meu coração, está dentro da minha essência de nascimento na cidade, e ela é gratificante. É uma terapia maravilhosa. A gente está em contato com a natureza, está em contato com pessoas, com respeito, com valores que não existe dinheiro no mundo que pague — destaca.
A pesca que ultrapassa gerações
No Rancho do Seu João, na praia de Canto Grande, em Bombinhas, também no Litoral Norte, as filhas e sobrinhas são quem vão para o mar e assumem diferentes funções na hora do lance. Alessandra Maria Serpa, de 45 anos, conta que desde pequena tinha o sonho de ser pescadora, assim como o pai.
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— Na verdade, eu praticamente nasci na pesca, tanto na pesca da tainha como na pesca de arrasto de outros tipos de peixe. Eu tinha uns oito anos e já comecei a fazer esse trabalho com meu pai, de sair no barquinho — relembra.
O pai dela, João Elpídio Serpa, pesca no local desde 1976 e chegou a ter um rancho, que foi demolido. Agora, os pescadores atuam em um rancho provisório, enquanto a família tenta a liberação dos órgãos necessários para construir o novo.
No início da temporada da pesca da tainha, o local chega a ter em torno de 20 pessoas atuando, número que cai pela metade ao final da safra. Desse total, ao menos sete são mulheres, a maior parte da família de Alessandra.
— Aqui no rancho do pai, acho que é um dos únicos que tem a maior quantidade de mulheres trabalhando. Eu nunca tinha saído de patrão, mas como deu alguns problemas agora no final, a gente também teve que fazer essa função. Então, a gente tem mil e uma utilidades — afirma.
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Já Arlene dos Santos, de 60 anos, aprendeu a pescar com o ex-marido na praia do Retiro dos Padres, em Bombinhas. Depois da separação, foram os pescadores do rancho e as esposas deles que a acolheram para que ela continuasse próxima da prática que considera uma paixão.
— Há sete anos fui apresentada à pesca. Eu não sabia nada sobre e eu fui aprendendo a pescar nos costões, nas pedras. Fui aprendendo a pescaria de caniço, de linha de mão e aí fui me interessando, fui pegando o peixe, fui gostando. Para mim era tudo muito novo — relembra.
Ela começou a pescar na praia do Retiro dos Padres, também chamada de Ingleses, e por lá segue até hoje. Nos três meses de temporada da tainha, chega no rancho entre 5h30min e 6h, prepara o café da manhã, depois o almoço e outro café às 15h. Cozinheira da equipe, gosta de ser pontual nas refeições e faz os registros do cerco em fotos e filmagens. Porém, também ajuda a puxar a rede, secar e tudo no que for necessário.
Apesar de também pescar às vezes fora da safra, o foco principal é a tainha. Além da pesca, Arlene trabalha com faxina, faz a limpeza dos banheiros da praia de Bombas na temporada de verão e tem um ateliê de conserto de roupas.
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— A pesca é a minha vida. Eu não saberia mais viver sem a pesca, estar no meio dos pescadores. Para mim, faz parte da minha vida, da minha história nesses sete anos — declara.
Ela afirma que, no início, se sentia insegura por ser a única mulher do rancho, mas foi acolhida pelos pescadores, que a tratam com muito respeito.
— Agora a mulher está se infiltrando. Tem outros lugares que as mulheres estão entrando também na pesca. Eles estão aceitando, porque é um território que era só masculino e agora está abrindo porta para nós mulheres — diz Arlene.
Pesca da tainha na história da família
A pesca da tainha faz parte da história da família de Carla Inácio desde a década de 1950. Neta e filha de pescador, ela entendeu que seu papel diante desta tradição seria o de atuar na manutenção da cultura da pesca, o que atualmente realiza no Rancho do Seu Getúlio, no Campeche, no Sul de Florianópolis.
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— Eu fiquei na gestão mesmo, até por conta da minha formação. Hoje, inclusive, o meu trabalho tem se ampliado dentro da proposta que tem o próprio rancho, que passou a ser administrado pelo Instituto Getúlio Manuel Inácio, que surgiu com o propósito de dar continuidade a esse legado — afirma.
Para o vô Deca, a pesca era dedicação exclusiva e fonte de renda importante para sustentar a família. A prática foi passada de pai para filho, e Getúlio, pai de Carla, se dedicou exclusivamente à prática depois de se aposentar da aeronáutica.
A filha dele, porém, não quis seguir os passos na pesca. Estimulada pelo pai, morou em outras cidades, fez faculdade de Serviço Social e se especializou em gestão cultural. Especialmente após a morte dele, em 2018, viu que seu trabalho seria o de manter e gerir a estrutura que ele deixou como legado.
— O meu pai faleceu em 2018. O legado é enorme, que vai além da pesca. Então, ele era uma referência no que diz respeito à cultura do nosso Estado e a cultura da nossa ilha. Aí eu vi que o legado era extremamente relevante para que a gente pudesse dar continuidade — pontua Carla.
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O Instituto atua com o propósito de manter o engajamento dos pescadores na pesca artesanal da tainha, assim como desenvolve atividades sociais e culturais. Entre os projetos, estão iniciativas voltadas para aproximar as mulheres da pesca.
— Nós também temos um trabalho que iniciamos em 2022, mais ou menos, trazendo as esposas dos pescadores para dentro do rancho, para elas entenderem um pouco esse dia a dia. E isso foi muito surpreendente, porque elas passaram também a fazer parte oficialmente da pesca — explica.
O rancho é responsável pela abertura oficial da safra da tainha em Santa Catarina, realizando todos os anos o evento que dá início ao período de três meses em que a pesca ocorre no Estado. Ainda, o instituto promove outras atividades, como um projeto de música e outro que busca compartilhar os saberes da pesca artesanal com as novas gerações. Há, ainda, sessões de documentários, apresentações músicais, capoeira e teatro.
A entidade também realiza a captação de investimentos para viabilizar essas atividades com o intuito de gerar recursos para contribuir com o desenvolvimento local. Outro projeto desenvolvido é o “Toca rapaz” e “Toca rapariga”, que é uma escola de remo para homens e mulheres.
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— Obviamente que a gente está falando de uma cultura majoritariamente masculina, mas as mulheres têm um papel fundamental. E eu sempre digo que a gente pode estar onde a gente quiser. Tanto que a gente quebrou alguns paradigmas de alguns anos para cá, porque a gente quase não tinha mulheres no rancho e a gente conseguiu trazer as mulheres dos próprios pescadores e outras para participar de projetos também — detalha.
Da mesma forma, o papel de Carla, de gestão do trabalho que contribui com a continuidade da pesca e valorização dos pescadores, se conecta com as raízes culturais da Capital e do próprio Estado. Junto com a presidência do instituto, ela atua como executiva em uma empresa que também tem conexão com a cultura manezinha, e destaca que consegue, nas duas frentes, trabalhar na preservação da cultura da prática.
— O nosso trabalho contribui para a gente manter as nossas raízes. E é isso que faz a gente ser uma cidade mais sustentável do ponto de vista social, cultural, político e econômico. Se a gente consegue conectar o novo com aquilo que tem a ver com as origens, a gente tem uma cidade mais harmoniosa e mais justa — finaliza.
Antonietas
Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.
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