Tijolo por tijolo colocado por mãos voluntárias. Entre elas, a de Maria Corinda da Silva Ferreira. Paranaense de nascença, a professora, que mora em Joinville há pelo menos 25 anos, foi uma das dezenas de pessoas que ajudou a construir o prédio que hoje abriga o CEI Professora Juliana de Carvalho Vieira, onde trabalha até hoje, e a Associação de Moradores e Amigos do Bairro Itinga (Amorabi).

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Quando a mulher e a família chegaram na cidade, em 1999, a região do Itinga era carente de serviços básicos, entre eles os de educação. O bairro, na época, contava com apenas um Centro de Educação Infantil (CEI), que ficava em uma casa de madeira, doada pela professora aposentada Juliana de Carvalho Vieira para que as mães pudessem deixar os filhos em segurança e saíssem para o trabalho. Entre as crianças que frequentavam o espaço, estava a filha de Corinda. 

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O jardim autogerido era o único da região e, pela quantidade de crianças, precisava ser expandido. Por isso, o imóvel antigo foi vendido e um novo terreno foi comprado, o mesmo que hoje abriga o prédio do CEI que leva o nome da, já falecida, “Vovó Juliana”, como ficou popularmente conhecida. 

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Com o terreno adquirido, mas sem dinheiro para o restante, a comunidade precisou construir o novo prédio com as próprias mãos. Foi ali que Corinda iniciou o trabalho voluntário em Joinville.

— O prédio estava em construção e, naquela época, as coisas eram muito difíceis. Dependíamos de verba e doação, e esse prédio do CEI foi feito quase todo assim, com mão de obra voluntária, feitos mutirões nos finais de semana, porque não se tinha dinheiro pra pagar. Nós tínhamos um mestre de obra, que nos orientava e íamos fazendo a massa, carregando tijolo, colocando telha — lembra Corinda.

A secretária que virou professora 

Com o prédio pronto, ainda em 1999 foi inaugurado o Centro Comunitário que, desde então, dá endereço ao CEI e a Amorabi. Ainda com a entidade escolar sob autogestão, Corinda começou a trabalhar no setor administrativo. Os salários eram pagos com repasses do Estado, doações da própria comunidade e campanhas financeiras.

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Contratada para trabalhar no administrativo, foi durante uma emergência para cobrir uma outra professora que Corinda entrou na sala de aula pela primeira vez. A habilidade da paranaense com a criançada encantou a diretora do CEI, na época ainda autogestionado, que a ofereceu uma vaga de educadora para o ano seguinte. Diante da oportunidade de torna-se professora, Corinda aceitou o desafio e foi cursar Magistério em 2003.

— Aí eu falei para a diretora “bom, se eu  vou ser professora eu preciso estudar”. Eu quero estudar. Aí ela ligou para a Escola Celso Ramos, que tinha curso de Magistério à noite. Eu estava com 36 para 37 anos — recorda Corinda, hoje com 60 anos. Depois, formou-se também em Pedagogia.

Durante os primeiros anos trabalhando no CEI, tanto no administrativo quanto em sala de aula, Corinda viu a luta comunitária se fortalecer no bairro. 

— A gente [CEI] conseguia muitas coisas da comunidade. Por exemplo, as verduras e frutas, tínhamos um voluntário que, quando vinha do trabalho, passava em uma verdureira que os proprietários separavam todos os dias aquela verdura e fruta que não era vendida. Aí, o voluntário pegava e levava para a gente lá. Uma professora ficava com duas turmas e a outra ia lá ajudar a limpar aquilo tudo, higienizar, para fazer no dia seguinte. Todo mundo participava — destaca Corinda.

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O bairro era bastante carente na época, lembra a professora. Não tinha ruas asfaltadas, linhas de ônibus, luz elétrica e contava com apenas um telefone público, no qual se formavam filas quilométricas de moradores que queriam fazer uma única ligação. 

A necessidade fortaleceu a união dos que viviam na região. Com a luta comunitária, os moradores conquistaram inúmeros direitos para o bairro como o posto de saúde, asfalto e energia pública, que também trouxeram mais qualidade de vida ao Itinga.

— Dá para perceber que teve uma evolução incrível, muito grande. Hoje a gente já não tem mais aquelas crianças carentes como antigamente, que a criança ia para escola para comer e famílias que passavam por uma série de necessidades. E eu nem estou falando de coisas bonitas, mas o básico mesmo. As pessoas estão melhores assistidas. Eu acho isso é incrível — ressalta a professora.

Nas salas do Itinga 20 anos depois

Após um período atuando como professora auxiliar no CEI com o curso de Magistério completo, Corinda decidiu se aprofundar e cursar Pedagogia em 2006. Neste meio tempo, passou em outro concurso público e foi atuar em uma biblioteca. Na época, morava no Itinga, trabalhava no Centro e fazia o curso superior. Ao mesmo tempo, carregava na barriga a segunda filha. 

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Quando se formou em Pedagogia, Corinda passou em mais um concurso e, neste momento, pôde voltar a lecionar. Porém, não só decidiu que queria estar na sala de aula, mas escolheu retornar para o primeiro lugar o qual ocupou como professora: o CEI Professora Juliana de Carvalho Vieira.

Agora, administrado pela rede municipal de educação, o CEI recebe Corinda como professora há dez anos. Inúmeras crianças passaram pela sala de aula da paranaense. Moradora e educadora no bairro, ela é diariamente abordada por algum adolescente ou adulto o qual já foi seu aluno. Sem falar em pais de alunos, que com bastante frequência também a abordam. 

— Tem alguns que eu nem reconheço mais, eles que me reconhecem. Os mais recentes, essa meninada aqui do bairro, que foram meus alunos nos últimos anos, eu os reconheço bem, mas aqueles anteriores dos anos 2000 não reconheço mais — confessa rindo.

Corinda conta que, recentemente, foi a um evento no bairro em que uma ex-aluna lançou um livro. Ela foi convidada porque, quando a criança estava no CEI, juntas também fizeram a escrita de uma obra. Emocionada com a lembrança, a mãe convidou a antiga professora, que até ganhou uma cópia autografada. Por lá, outras surpresas.

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— Encontrei outra mãe e ela veio: “você é professora Corinda? Sabia que eu tenho uma foto tua lá na minha estante até hoje?” Aí eu falei “meu Deus, eu não me lembro de quem era o teu filho”. Daí ela chamou o menino que era um homem já. Tem vários que me reconhecem. […] Eu acho muito legal e é uma coisa que me deixa muito emocionada — revela.

Veia voluntária

Com todas as conquistas profissionais e para a comunidade, Corinda destaca que tudo só foi possível por conta das pessoas que vieram antes dela. Primeiro, a família. A paranaense de nascença e catarinense de coração acredita que o voluntariado e a vontade de mudanças estão na veia familiar.

— Eu tenho muito esse perfil de comunidade. É uma coisa que eu trago da família mesmo. Eu cresci vendo os meus pais fazendo voluntariado, que na época a gente nem chamava de voluntariado, mas é ajudar. Meu pai e a minha mãe eram essas pessoas, que se alguém precisasse de alguma coisa, era lá em casa que eles iam. E o pai ia lá e fazia. Então para mim e para minha família, é natural. E eu acho que a gente precisa ter uma vida em comunidade — lembra.

Por onde passou, Corinda doou um pouco de si e, quando chegou em Joinville, não foi diferente. Participante da associação de moradores, ajudou a conquistar as ruas asfaltadas, posto de saúde, luz elétrica e energia pública para o bairro. 

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No entanto, ainda que tenha contribuído, a professora faz questão de lembrar que muitos chegaram antes dela, como a própria Juliana, que doou a casa para que o CEI fosse iniciado.

— Quem chega primeiro abre caminho para outras pessoas e é isso que fizeram aqui no Itinga. É uma história que não pode ser esquecida, que tem que ser lembrada. E eu sempre falo “eu sou forasteira, cheguei as coisas já estavam andando”. Eu e o Paulo [marido] temos muito esse perfil de que, se nós chegamos em algum lugar e as pessoas estão construindo, nós vamos construir também — diz.

E, vinte anos após chegar no Itinga, Corinda segue na luta diária de educar e construir um mundo melhor, não só para as crianças, mas para a comunidade e a cidade onde vive, mostrando a força da mulher que coloca tijolo por tijolo para construir o caminho por acesso a direitos e vida digna.

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