No coração de Florianópolis, um cenário distinto e pouco visto é resguardado abaixo das milhares de pessoas que transitam diariamente pela Avenida da Saudade. Pressionado pelo crescimento urbano e de papel crucial para a comunidade pesqueira, o Manguezal do Itacorubi guarda diversas espécies e uma formação clássica do ecossistema que marca o encontro do rio com o mar.

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O nome “mangue” é dado às árvores dos manguezais, que podem variar entre três tipos: o mangue preto, o mangue branco e o mangue vermelho. Um mesmo manguezal pode ter os três tipos, como é o caso do Manguezal do Itacorubi — o que configura a formação clássica — ou ainda somente um ou dois tipos, como outros manguezais encontrados em Florianópolis.

A característica principal desse ambiente é que ele acontece, somente, no encontro da água salgada com a doce e em um ambiente de relativa calmaria em relação a corrente e ondas, que sofre apenas com a variação da maré.

Essas condições são propícias para a formação do berçário de diversas espécies marinhas, como explica o geógrafo do Departamento de Unidades de Conservação da Fundação Municipal de Meio Ambiente de Florianópolis (DEPUC/FLORAM), Aracídio de Freitas Barbosa Neto, o Cid.

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— A gente sabe que praticamente toda a fauna marinha, no período da reprodução, encosta nas áreas de remanso. Pode ser, às vezes, entrando nos rios, como a tainha faz, mas a maioria dos peixes e o camarão encostam na parte mais calma. Aí tem o ambiente vegetal junto, onde vai ter o alimento que ele precisa, o abrigo no capim, na espartina [tipo de vegetação] que fica na frente do manguezal, ou mesmo quando a maré sobe, ele consegue andar lá por dentro. A pesca também não consegue ter facilidade de pegar, então é um ambiente protegido — explica Cid.

Os detalhes da vegetação de mangue

Por que os mangues são importantes

Os manguezais da Baía Sul e Baía Norte de Florianópolis são protegidos por unidades de conservação, como a Estação Ecológica de Carijós, a Reserva Extrativista da Marinha do Pirajubaé, o Parque Natural Municipal do Manguezal de Itacorubi e até pelo Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.

A proteção dessas áreas garante que os peixes possam procriar nessa região, já que esses manguezais, com características necessárias para a reprodução dos animais, são os últimos ao sul da América.

Assim, eles têm influência direta no estoque pesqueiro não só de Florianópolis, mas do Estado de Santa Catarina, e da sua preservação depende a atividade econômica da pesca.

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— Depois que o animal se desenvolve, ele acaba se espalhando por todos esses outros lugares e vai ao sul, aí bastante longe. Então, esses nossos manguezais não beneficiam só as comunidades que estão no entorno, beneficiam toda uma rede pesqueira que é fortíssima em Santa Catarina — explica Cid Neto.

Lixo e esgoto

Ainda assim, o que se vê ao adentrar o Manguezal do Itacorubi não é tão animador. Ao entrar na parte mais fechada do mangue, na bifurcação entre o Rio Córrego Grande e o Rio do Sertão, uma barreira formada por uma combinação entre lixo, óleo e esgoto dá as “boas-vindas”.

Apesar das embalagens, garrafas e outros plásticos visíveis flutuando na água e parados nas áreas de vegetação, o principal problema da poluição do manguezal não é esse, conforme explica Cid Neto. O esgoto, especialmente aquele que não é devidamente tratado e despejado, é o que mais provoca problemas ao ecossistema.

— Na bacia do Itacorubi hoje moram cerca de 80 mil pessoas, e outras 80 mil circulam. É muita gente usando banheiro. Isso traz um volume de esgoto enorme e a gente sabe que, infelizmente, boa parte disso não está sendo tratado. Seja por falta de um bom sistema de coleta e tratamento, seja porque muita gente apela para a irregularidade e liga, muitas vezes, na rede pluvial — explica o geógrafo da Floram.

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Mangue sofre efeitos da poluição e esgoto

Os efluentes ainda transportam diversos tipos de dejetos para o manguezal, como por exemplo o material de obras de construção civil, que com as chuvas acaba sendo carregado para o sistema pluvial. A matéria orgânica, mineral e conteúdos químicos de origem não conhecida trazem impactos que afetam além do que pode ser visto no mangue.

A médio e longo prazo, há um impacto químico de contaminação na água, que pode trazer prejuízos para os organismos que buscam o local para se alimentar. Os primeiros a sentirem os efeitos da poluição são os animais filtradores, como ostras e mariscos, mas os peixes também fazem parte desse ciclo.

Natureza que resiste

Embora a poluição avance, a natureza segue preservada em vários pontos e guarda espécies únicas, dificilmente vistas em outras partes da Ilha da Magia. As condições específicas do mangue fazem com que o local seja berçário para diferentes espécies de peixes. Isso acontece porque o mangue possui um ambiente tranquilo em termos de movimentação.

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Diferentes da costa, onde as ondas e correntes atuam, o manguezal tem somente a movimentação da maré, um processo lento. O ecossistema só surge quando a força da maré é pouca, e a existência de espartina e raízes filtrantes também favorece essa proteção do local. A presença do sal, por ser o ponto de encontro da água salgada com a doce, cria a condição para o surgimento das plantas exclusivas do manguezal, em especial os três tipos de mangue.

Ao navegar pelo Rio Córrego Grande, gradativamente o som da cidade fica para trás e dá lugar ao canto dos pássaros. Biguás, tapicurus, savacu-de-coroa, maçarico-pintado e socó-dorminhoco estão entre algumas das espécies flagradas em meio à vegetação, por vezes solitárias, outras em bando. A garça-moura, esbelta e de canto marcante, se exibe no topo das árvores. Um filhote de gavião-carrapateiro se esconde por trás dos galhos das árvores.

Natureza exuberante se esconde no mangue

Já o colhereiro, de penas cor-de-rosa e bico achatado chama atenção por sua excentricidade. As simpáticas capivaras atravessaram de uma margem a outra do rio em família. Não muito tempo depois, um jacaré-do-papo-amarelo tambémsurge, só com os olhos de fora.

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Além dos pássaros e dos próprios peixes, os crustáceos são a característica principal do manguezal, explica o geógrafo da Floram. Entre eles, o caranguejo-uçá, com suas cores que variam do verde ao azul e roxo, se esconde na lama das áreas mais secas. As aves, por sua vez, vêm até o local atraída pelos peixes miúdos, que se tornam alimento.

Manguezal e a pesca

A preservação desse ecossistema, além de questões ambientais, também se reflete na economia da região. Isso porque a proteção dos manguezais irá refletir na proteção da própria pesca, com o estoque pesqueiro tendo um ambiente propício para reprodução.

— Esse peixe tendo resguardo e proteção para procriar aqui, quando se torna adulto, ele vai sair para fora [do manguezal], e é onde ele corre o risco de ser pescado, e que bom, porque daí a gente tem uma dinâmica econômica colocada, onde os pescadores vão fazer essa coleta, vão pegar esse recurso, vão comercializar — explica Cid Neto.

É o caso de pescadores como Silvani Ferreira, presidente do Conselho da Associação de Pescadores Artesanais da Praia do João Paulo e do Saco Grande. A comunidade do João Paulo, onde ele atua, é a segunda maior colônia de pesca de Florianópolis, atrás somente da Barra da Lagoa.

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O próprio Silvani, nascido no Bairro João Paulo, de onde é possível sair da Praia do Saco Grande, passando pela Ponta do Goulart, e entrar no Manguezal do Itacorubi, reforça a importância do ecossistema para quem, como ele, tem a pesca como atividade principal.

— O manguezal tem que ser preservado, porque ele tem influência em todo o nosso ecossistema aqui, é muito importante para criação, sem o mangue não teria criação. Tanto que o peixe vem do alto mar para entrar para dentro das baías, para usar o mangue, para poder ter essas desovas. Acredito que uma porcentagem bem grande de todo o pescado que a gente vê no oceano, a maioria se cria dentro das baias né, nos manguezais — afirma o pescador.

Ele explica que a pesca depende da atuação das marés e corrente marítima, que não pode estar nem muito forte, nem muito fraca. Dependendo do dia, a pesca acontece em frente ao manguezal, ou mais na parte externa da baía. O principal pescado da região é o camarão branco, mas os pescadores também capturam pescada branca, robalo, papa-terra e linguado, entre outras espécies.

Um mangue em meio à cidade

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O pescador conta que a relação com o manguezal mudou com o passar do tempo. Quando era criança, o local servia de fonte de alimento para a comunidade local, que extraía animais, pássaros e até ovos do ambiente.

— Nós vivíamos bastante do mangue, sim. Tanto extraindo o marisco do mangue, pegando o catanhão do mangue para revender, a gente se alimentava de alguns ovos também, de algumas aves do mangue também. Coisas que a gente não faz mais hoje — pontua.

Além da conscientização ao longo dos anos, Silvani explica que a vida mudou de lá para cá, sem tanta necessidade de extrair do meio ambiente para se alimentar. A pesca também evoluiu, com embarcações e redes melhores, que fazem com que a produtividade seja maior e mais lucrativa. 

Ainda é possível flagrar carros estacionados na beira da Avenida da Saudade, que param no local para pescar do alto da rodovia dentro do Rio do Sertão. A prática não é permitida, já que o parque natural não permite o uso direto do recurso. A pesca só é permitida a partir da entrada do manguezal para fora. Porém, quando se está na rodovia, em tese a pessoa está pescando fora da unidade, o que torna a configuração jurídica da prática delicada.

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— A gente ainda botou na lei, sabendo dessa colônia grande de pesca aqui de João Paulo e tal, que a unidade de conservação tem que valorizar e potencializar a economia local, a cultura. Mas quando tu tá pescando ali de cima, tu tá fora da unidade, porque a estrada tá fora — explica Cid.

Sirlene Ferreira, presidente do Conselho Comunitário do Bairro João Paulo e também envolvida com a pesca artesanal no bairro, reforça a importância da preservação do manguezal para a comunidade local e para a colônia de pescadores.

— Não é um berçário só da vida marinha, mas também das espécies de aves. Ali eles colocam os ovinhos deles, onde o ser humano não consegue muito ir. Todo mundo ganha com isso, né? Eu acho que o mangue bem preservado, a gente ganha, os animais ganham e todo mundo ganha — afirma.

A presidente do Conselho tem junto à comunidade do bairro planos para que um turismo de base comunitária consiga trazer atenção e conscientização para a região. A ideia é realizar uma visita guiada ao manguezal, que possibilite conhecer a área, sua fauna e flora. Além do passeio, Sirlene conta da ideia de tornar a Ponta do Goulart um parque possibilite o contato com a natureza e a preservação da área.

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— A gente pretende fazer diretamente sair daqui do nosso trapiche do bairro de João Paulo, né, para fazer essa conscientização aí, para eles verem também a importância do mangue, ver o quão lindo, quantas espécies têm ali — explica.

Outros manguezais

Em Florianópolis, os manguezais ocupam uma área equivalente a 1.907 hectares e se espalham pela porção oeste da ilha. A exceção é um pequeno manguezal dentro do Parque Natural Municipal da Lagoinha do Leste, na Armação, segundo o geógrafo da Floram. Ainda que pequeno e incompleto, ele é o único do lado leste da Ilha.

Diferente dos demais, que estão em áreas de movimentação menor, nas Baías Sul e Norte, esse está virado para o mar, e não para o continente, abrigado em uma reentrância do Rio Sangradouro, que vem da Lagoa do Peri, e o Rio Quincas, que vem do Pântano do Sul.

Na porção oeste, o manguezal do Saco Grande, próximo ao Manguezal do Itacorubi, porém mais ao norte, é protegido pela Estação Ecológica de Carijós. O mesmo ocorre com boa parte do Manguezal do Ratones. Mais ao sul, o Manguezal do Rio Tavares é protegido pela Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé, sendo que as duas unidades de conservação são geridas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

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Distribuição dos manguezais no Brasil e em SC

O Parque Natural Municipal do Manguezal do Itacorubi – Fritz Miller é gerido pelo Departamento de Unidades de Conservação – DEPUC/Floram. Ainda, há um pequeno manguezal na Tapera. Cid Neto destaca também a importância dos manguezais na área continental da Grande Florianópolis, que inclui um manguezal em Coqueiros, um no Centro de Palhoça, e manguezais na beira dos rios Imaruí e Cubatão protegidos pelo Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.

O Manguezal do Rio Tavares também possui uma característica que o diferencia dos demais: ele é convexo, ou seja, é um manguezal “ao contrário”. Cid Neto, da Floram, explica que essa formação acontece por conta da mudança na direção do vento e das correntes marítimas em Florianópolis.

A maior parte do vento e das correntes na região é de direção Norte, porém quando ele vira para Sul, vira com uma maior intensidade. Assim, os períodos de vento e correntes de Sul são menos frequentes, porém mais intensos. O choque entre os períodos seguidos de vento e corrente Norte, com a mudança para Sul, é o que resulta na formação.

— A confluência disso geralmente acontece ali na Baía Sul. E ali então fica uma bancada, por isso aqueles bancos de areia que se formam ali muito grandes. Porque é onde acontece essa maior confluência, esse choque dessas duas correntes. E aí para aquela areia toda ali. E logo depois desse vento Sul, vai empurrar tudo para fora. E logo vai virar para norte e vai ficar dez dias fraquinho de norte de novo. Depois vai vir forte de sul. Então esse choque acontece ali, faz esse manguezal ter essa característica um pouco diferente — pontua o geógrafo.

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Ainda que o Manguezal do Itacorubi sofra uma pressão maior, por estar muito próximo da área central de Florianópolis, os outros manguezais da Capital também sofrem com os impactos do processo de urbanização e com a poluição. Contudo, isso acontece de forma mais lenta.

Ainda assim, o papel deles é fundamental e vai além do que pode ser mensurado a nível local. Tanto que algumas das unidades de conservação são federais ou estaduais, o que reforça a importância maior do que a abrangência das comunidades que as abrigam. Ao mesmo tempo, o manguezal tem uma relação intrínseca com essas populações.

— Para as comunidades que vivem no entorno deles, eles são mais do que importantes só nesse aspecto, eles são parte da vivência, da história e acabam sendo referência e identidade para eles, então uma relação mais familiar, mais forte — destaca Cid.

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