Em 2025, vai emergir do solo do Contestado algo inédito para Santa Catarina. Alunos da escola pública estadual 30 de Outubro, em Lebon Régis, vão ser protagonistas de uma Ópera Xucra Cabocla. Os estudantes vão apresentar a peça Páscoa Sangrenta, rememorando os 110 anos da Páscoa de 1915 que colocou fim ao Reduto de Santa Maria, resistência cabocla da Guerra do Contestado naquele município.

Continua depois da publicidade

Clique aqui para receber as notícias do NSC Total pelo Canal do WhatsApp

A apresentação é uma produção da Associação Cultural Coração do Contestado em parceria com a Escola 30 de Outubro. O espetáculo está previsto para a 11ª Semana do Contestado, evento anual que acontece na cidade durante o mês de outubro, onde circula um público de cerca de 2 mil pessoas.

— A Ópera Xucra sela a ousadia e comprometimento da comunidade escolar com as questões regionais. Desde 2015, a escola extrapolou o âmbito local, apresentando sua produção sociocultural e ambiental em diversos municípios de Santa Catarina, mas o filme “Para não esquecer a Guerra (Plural Filmes, 2022) produzido, dirigido e encenado por eles, levou a escola e o Contestado para todo o Brasil, por meio do cinema e da TV, a partir do Globoplay. Agora, o empenho para esse espetáculo grandioso — diz o professor universitário e geógrafo Nilson Cesar Fraga, idealizador da peça e que cedeu os direitos autorais para a escola.

A Ópera Xucra Cabocla será um espetáculo cênico de luz, imagem e som, com danças coreografadas. A apresentação contará com uma cidade cenográfica, formando um quadro santo caboclo, quatro cruzes e tochas, e uma fumaça cenográfica que se mantém no nível do solo. A ideia é apresentar uma estrutura que lembra espetáculos como a Tomada da Laguna e a Fúria Cabocla, encenações já conhecidas em Santa Catarina.

Continua depois da publicidade

Filme que inspirou peça teatral venceu festivais

A ideia da encenação tem como referência o ano de 2022, a partir de uma peça teatral criada, escrita, coreografada e apresentada na escola. Na ocasião, alunos e professores, junto com a Associação Cultural Coração do Contestado, em parceria com a Plural Filmes, produtora de Florianópolis, decidiram realizar uma versão cinematográfica da peça teatral, resultando no filme Para Não Esquecer a Guerra, estrelado pelos próprios alunos.

O filme foi um sucesso no Festival Internacional de Cinema Infantil, em Florianópolis, e ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Cinema Infantil no Rio de Janeiro. Também foi levado para sessões na Europa e diversas sessões itinerantes em Santa Catarina.

Para orgulho da comunidade, Para Não Esquecer a Guerra foi selecionado e está na programação do Canal Futura. Ele também pode ser assistido pelo canal de streaming Globoplay.

Veja fotos da produção da peça

Continua depois da publicidade

Crematórios dos cadáveres estão perdidos pela ação do tempo, diz professor

Nilson Cesar Fraga é uma das referências sobre o Contestado. Pesquisador do CNPq/PQ, é geógrafo e professor no Curso de Geografia na Universidade Estadual de Londrina, e doutor em meio ambiente e desenvolvimento. Também dá aulas no Programa de Pós-graduação em Geografia na Universidade Federal de Rondônia. É autor de 10 livros e tem 60 artigos relacionados com a região da Guerra do Contestado e a cultura cabocla catarinense e paranaense.

No acervo estão memórias recolhidas em centenas de horas de entrevistas com moradores antigos, muitos já falecidos, e cerca de 40 mil fotografias que fez na região, além de documentos originais. Foi Fraga quem descobriu os crematórios de cadáveres usados durante a guerra, motivo de preocupação do professor:

— Quase todos os 32 crematórios de cadáveres do Contestado estão perdidos pela ação do tempo na região, uma perda incalculável para se estender profundamente o processo de formação socioespacial catarinense, paranaense e brasileiro. Alguns estão soterrados pelos plantations de pinus, outros foram arrancados por arados, por máquinas que abriram estradas pela região, estão soterrados pelos prédios e praças das cidades, alguns foram simplesmente destruídos intencionalmente.

Mas, conforme Fraga, resta um, como símbolo máximo dos horrores perpetrados pelo Estado durante a Guerra do Contestado, o de Perdizinhas.

Continua depois da publicidade

— Esse, em uma ação inédita com a comunidade lebonregense, via Associação Cultural Coração do Contestado, incluindo trabalhadores do campo e da cidade, pesquisadores, entusiastas pela história regional, foi restaurado entre janeiro e março de 2016, tornando um processo histórico recente de grande impacto na ressignificação da cultura cabocla e da que a envolve em coexistência — diz.

Confira onde fica o local

De acordo com o professor, houve sensibilização da família proprietária das terras onde se localiza o crematório, pela luta coletiva em instituir uma lei municipal de tombamento dos bens materiais, imateriais e ambientais municipais, culminando com o tombamento do Crematório de Cadáveres de Perdizinhas, em agosto de 2021.

— Entendemos como uma ação mais do que simbólica, pois se caracterizou como um enorme passo no rompimento da invisibilidade, do silenciamento e do esquecimento da Guerra do Contestado e do seu povo, sendo esse o primeiro bem tombado em nível federal de um dos patrimônios da Guerra do Contestado — explica.

Órgãos públicos precisam agir para salvaguardar memória e patrimônio imaterial

Para o pesquisador, é preciso que algo seja feito para salvaguardar a memória do Contestado. Conforme Fraga, sobraram mais cemitérios seculares caboclos do que os espaços de cremação de cadáveres daquele período. Os cemitérios caboclos datam, minimamente, do período do tropeirismo que passava pela região desde o século XVII, se estendendo até o início do século XX, assim como há cemitérios do período da guerra, incluindo cemitérios de anjos, exclusivos para crianças, muitas das quais não batizadas.

Continua depois da publicidade

Mas há valas comuns, cemitérios secretos militares, carneiras perdidas nos fundos de propriedades agrícolas, e locais de rios e cachoeiras transformados em carneiras humanas, onde eram lançados caboclos degolados e mortos à bala. Esses a ação das águas lançou sua carne e ossos para locais distantes, podendo estarem depositados nas margens de muitos rios e riachos da região.

— Esses espaços sagrados estão desaparecendo pelo plantio e colheita do pinus, das lavouras, das construções de casas, prédios, açudes. Todo o patrimônio material do Contestado deve desaparecer, não apenas pela dinâmica do desenvolvimento regional, por uma ação do Estado. Esse é o planejamento, ou seja, seu sumiço. Os órgãos públicos federais e estaduais nunca agiram sobre a região, nunca desenvolveram um projeto de salvaguarda desse patrimônio, esse é o segundo crime do país contra o Contestado, o seu apagamento — salienta.

Carência de reconhecimento público federal

Fraga observa que a questão do Contestado no Paraná e em Santa Catarina sempre dependeu da conjuntura política estadual, ou seja, governos que possuem maior sensibilidade para tais questões. Os dois estados possuem legislação sobre o Contestado, sendo ela mais antiga em Santa Catarina do que no Paraná.

Para o professor, isto é uma demonstração de que o Contestado ainda é um tabu, pois assusta os fazedores de legislação e de políticas públicas. Fraga também entende que existe a necessidade de algum tipo de reconhecimento público federal para o Contestado, afinal, foi a última grande guerra da formação socioespacial brasileira.

Continua depois da publicidade

— O pouco interesse se deve ao fato de ter que explicar para a sociedade brasileira que a República se lançou sobre uma população empobrecida para dizimá-la em nome dos interesses políticos regionais e do capital que avançava sobre as terras secularmente pertencentes aos sertanejos e caboclos — pontua.

Para Fraga, é preciso que o Brasil, assim como os estados de Santa Catarina e do Paraná, olhe para o Contestado pois precisam diminuir o peso do genocídio cometido sobre uma população com frágil armamento defensivo, mas que foi calada com a canhões, granadas explosivas e outros aparelhamentos. 

Leia também

Colheita simbólica abre a Vindima da Uva Goethe, fruta exclusiva do Sul de SC

Nova lei de defesa civil em SC faz dinheiro chegar mais rápido nas prefeituras