Um estudo inédito publicado nesta terça-feira (2) revelou que os danos associados às bets e jogos de azar custam anualmente à saúde ao Brasil cerca de R$ 30,6 bilhões. O dossiê “A Saúde dos brasileiros em jogo” é uma iniciativa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) em parceria com a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental (FPSM) e a Umane. O documento analisa, de forma integrada, os efeitos sanitários, econômicos e sociais da rápida expansão das apostas online no Brasil.
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De acordo com o Banco Central (BC), os brasileiros destinaram cerca de R$ 240 bilhões às bets em 2024 e os beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em bets, por meio de Pix, em agosto de 2024. As casas de aposta, vale lembrar, foram legalizadas no Brasil em 2018, regulamentadas apenas em 2023 e só passaram a pagar volume maior de impostos a partir de 2025. Até setembro deste ano, a arrecadação com a atividade chegou a R$ 6,8 bilhões, diz o relatório. No mês seguinte, o acumulado passou para perto de R$ 8 bilhões.
Para além das perdas associadas à saúde, estima-se que essas apostas geram custo social anual total de R$ 38,8 bilhões, sendo R$ 17 bilhões causados por mortes adicionais por suicídio. Em Joinville, no Norte de Santa Catarina, Adriana Rafaela Corrente, professora, viveu na pele esse drama, já que perdeu o filho para os jogos de azar. Leonardo Lucio Pereira tirou a própria vida por conta de dívidas relacionadas às apostas online.
Perdas causadas pelas apostas em números
- Custo social anual total de R$ 38,8 bilhões, sendo:
- R$ 17 bilhões por mortes adicionais por suicídio
- R$ 10,4 bilhões por perda de qualidade de vida com depressão
- R$ 3 bilhões em tratamentos médicos para depressão
- O custo total ligado à saúde chega a R$ 30,6 bilhões (78,8% do total).
- R$ 1,3 bilhões com perda de moradia
- R$ 2,1 bilhões com benefícios de seguro-desemprego (R$ 2,1 bilhões)
- R$ 4,7 bilhões por encarceramento por atividade criminal
Leo era surfista, gostava de acampar, sair para lanchar com os amigos e amava o trabalho que tinha como sushiman. Porém, durante um período desempregado, em que havia perdido o movimento do dedo por conta de um acidente, começou a jogar.
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Veja fotos de Adriana Corrente
A mãe acredita que Leo tenha começado a apostar há cerca de dois anos porque estava sem dinheiro. Para ela, o filho chegou a ganhar nas primeiras apostas entre R$ 500 e R$ 1 mil, o que o incentivou a continuar apostando.
— No início ganha, e ganha muito bem. A partir daí, esses jogos já te dão uma esperança, o que já está errado. Então, o Leo, se eu não estou enganada, no começo ganhava porque, às vezes, ele soltava, “ah, ganhei 500, ganhei mil”. Só que foi só por um tempo. Depois ele só perdeu. Tanto é que ficou todos esses meses patinando. Ele não ganhava, mas já estava tão fissurado que ele próprio não enxergava isso — conta a mãe.
Adriana descobriu só em abril de 2024 que o filho estava viciado em jogos de azar. Na época, chegou a pegar um empréstimo de R$ 10 mil para que Leo pagasse dívidas contraídas pelas apostas.
— Foi naquele dia que eu soube que ele estava viciado em apostas e que para isso ele pegava dinheiro de outras pessoas para continuar jogando. No primeiro momento, o que a gente fez? Ele pediu ajuda e disse: “Mãe, me ajuda, um psiquiatra, uma terapia, alguma coisa assim?” No mesmo dia eu entrei em contato com uma terapeuta e a gente já conseguiu encaminhar ele para uma terapia de dependência. Assim, aparentemente, ele ficou bem por uns dois ou três meses — lembra Adriana.
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Por conta dos empréstimos e outros problemas financeiros, a família havia ficado sem dinheiro e a mãe não tinha mais como pagar as terapias de Leo, que então foram suspensas. Como ele estava aparentemente melhor, Adriana não sabia que o filho voltaria a jogar.
— Em junho de 2024, as minhas contas foram bloqueadas por um processo de divórcio que eu tenho. E aí eu fiquei sem dinheiro. Não tinha mais, eu não tinha dinheiro para nada. Só para comprar o alimento básico de casa — conta Adriana.
Leo não contou para a mãe que tinha voltado a jogar, mas ela desconfiou por conta do comportamento do filho. Ele, que costumava ser alegre e brincalhão, passara a ficar mais nervoso, angustiado e agitado.
— Quando eu ia conversar com ele sobre isso, ele ficava angustiado, porque não conseguia sair das apostas. Eu percebia, era nítido, sabe? A pessoa que ele era se transformava — conta a mãe.
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No final de julho, Adriana chegou a antecipar o 13º salário para pagar mais uma dívida do filho. A mãe acreditava que tinha dado fim aos débitos. Nos últimos dias do mês, Leo estava mais contente, fazia planos de se mudar para Portugal com a irmã, que já morava na Europa. Queria voltar a ser guarda-vidas na praia e ajudar os avós.
— Ele era um cara bacana, todo mundo gostava dele, estava sempre brincando, sempre sorrindo. Ele tinha um coração gigante — lembra a mãe.
Com lágrimas nos olhos, Adriana conta que foi no dia 4 de agosto de 2024 que perdeu Leonardo. Acordou cedo na manhã de uma quinta-feira e não ouviu o filho no quarto. Achou que estivesse dormindo. Pouco tempo depois descobriu que Leonardo tinha tirado a própria vida. A mãe acredita fielmente que foi por conta das dívidas das apostas e da falta de perspectiva de sair daquela situação.
— Eu acredito mesmo que ele estava angustiado, que ele queria acabar com aquilo e não conseguia — conta a mãe, em meio às lágrimas.
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Ainda hoje, Adriana recebe mensagens de promoções de jogos on-line, e denuncia todas as publicações e propagandas que vê. No coração, ficou a saudade do filho e a revolta por quem incentiva jogos como o Fortune Tiger, o famoso “jogo do tigrinho”, e bets esportivas.
— Não é uma questão de “joga quem quer”. A partir do momento que eles mostram que você pode ficar rico, que você vai ficar milionário, que você vai comprar um carrão, as pessoas influenciam — diz Adriana, com revolta.
A mãe que perdeu o filho para as bets espera que, de alguma forma, esses jogos tenham regras mais rígidas no país. Também acredita que a mudança pode começar com as pessoas deixando de propagar os jogos. Para ela, é importante alertar as famílias sobre o risco dos jogos e a importância do tratamento.
— A terapia deu uma boa ajuda para ele. E é isso que talvez me doeu mais, de eu não poder ter feito mais porque não tinha dinheiro. Porque eu acho que se ele tivesse continuado, ele estaria aqui hoje — diz a mãe.
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Um ano depois da partida de Leo, o que mais permaneceu foi a saudade. O quarto dele ainda está mantido do mesmo jeito. Na decoração da sala, uma prancha com o rosto dele pintado, feito por amigos. Nos retratos, a lembrança do jeito alegre e divertido. Na vida, a luta para seguir em frente e ajudar outras pessoas que enfrentam o mesmo problema de dependência, sempre acompanhada da pergunta:
— Quando essa realidade vai mudar?
Saúde mental
De acordo com a psicóloga especialista em dependência em jogo Elizabeth Carneiro, 96% dos jogadores têm pelo menos uma outra condição a ser tratada — que pode ser outro tipo de dependência ou quadros de saúde mental, como depressão, ansiedade e compulsão alimentar. Em 60% dos casos, os pacientes chegam a ter até três desses diagnósticos. A procura por ajuda ou atendimento médico às vezes pode vir somente quando as finanças já estiverem totalmente comprometidas.
— Então, ao receber um paciente, eu tenho que ver se esse cara tem risco de suicídio, se está tendo crise de ansiedade, se está bebendo. E o que acontece com os profissionais? Geralmente eles recebem um alcoólatra, mas não perguntam se ele está jogando, porque não faz parte da prática habitual — explica Elizabeth.
Nos casos mais extremos, até mesmo uma interdição do paciente, com bloqueio de acesso a contas bancárias, acaba sendo estratégia discutida com os familiares.
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A terapia e o tratamento de outros transtornos psiquiátricos que podem coexistir no paciente são as principais estratégias de tratamento adotadas. Além disso, outra aliada pode ser a participação em grupos como os Jogadores Anônimos (JA), que possuem uma unidade em Florianópolis, com reuniões em três dias da semana.
A médica psiquiatra Alessandra Diehl, do Bem Viver Centro de Saúde Integrada, de Camboriú, detalha quais os sinais que devem receber atenção para a dependência em jogos.
— Os sinais são os mesmos de dependência química: quando a pessoa começa a gastar mais tempo com os jogos do que outras atividades que antes eram prazerosas para a vida dela. No consultório, o que eu ouço é: doutora, ele passa a noite inteira com a luz do celular ligada, eu não vejo ele dormindo porque está jogando. De manhã, ele está cansado e muitas vezes deixa de ir trabalhar porque ganhou. Mas quando perde, fica super aborrecido. Outro critério é a tolerância, quantas vezes ele está se expondo ao jogo, e a fissura, a vontade — afirma.
Solução passa por serviços de saúde e ações preventivas
Se a legalização e os casos de dependência de jogos avançam no Brasil, a estrutura de saúde pública para tratamento desses casos ainda engatinha. Algumas experiências de ambulatórios na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) são alguns exemplos de iniciativas que oferecem atendimento gratuito especializado a pacientes com transtorno de jogo.
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Em contato com as prefeituras das três maiores cidades de Santa Catarina, os municípios de Florianópolis, Joinville e Blumenau informaram que as unidades de saúde são a porta de entrada para pacientes com problemas como dependência em jogos. É a partir destas unidades que as pessoas também podem ser encaminhadas aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), especialmente os Caps AD, que atendem aqueles com dependência de álcool, drogas e outros comportamentos. Os municípios informaram não ser possível indicar um tempo médio de espera para consulta com um psicólogo na rede pública porque isso depende do quadro de cada paciente.
A carência de oferta para tratamento na rede pública, no entanto, é apenas um dos desafios do atual cenário de crescimento das apostas e jogos on-line. A psicóloga Elizabeth Carneiro avalia que outra discussão importante deve incluir a publicidade e um aumento de restrições a propagandas destas plataformas.
— A caminhada preventiva vai ter que ser a mesma que a gente teve com o tabagismo, por exemplo. Antes, o carro de Fórmula 1 podia correr com a marca de cigarro estampada, depois não pôde mais. Então, é como a gente recomeçar uma caminhada de prevenção. Da mesma forma que grupos de especialistas conseguiram que o cigarro fosse proibido dentro do avião, dentro de lugares fechados, passando pelo marketing, onde pode e quem pode ser exposto às propagandas, a gente vai ter que começar essa mesma caminhada com as bets — defende a profissional.
A médica psiquiatra Alessandra Diehl, do Bem Viver Centro de Saúde Integrada, defende que a proteção dos adolescentes, um público também vulnerável às apostas e jogos on-line, deve ser uma das preocupações do ponto de vista das políticas públicas. Durante a campanha Setembro Amarelo, a profissional conduziu uma palestra com médicos do litoral de SC sobre como identificar e tratar pacientes com quadro de dependência em bets.
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— Nós psiquiatras precisamos aprender cada vez mais a como investigar, como manejar. Porque a queixa nem sempre aparece tão clara. Muitas vezes ele não enxerga, porque passa pela fase em que está ganhando dinheiro. Tem crenças distorcidas, de que teve sorte, de que na próxima vai ganhar. E isso é um problema mundial — avalia.
Em muitos casos, o apoio da família e o suporte de redes particulares que trabalham com dependências acabam sendo as ferramentas disponíveis para quem enfrenta problemas com jogos — e consegue pagar por elas. Foi o caso de Thiago*. O quadro crítico financeiro e de saúde o fez pedir ajuda aos familiares. Concordou em ter as contas bloqueadas e parou de usar celular. Frequentou reuniões de grupos como Jogadores Anônimos (JA) e iniciou tratamento com psicólogo e psiquiatra. Em agosto deste ano, ficou internado em um centro de saúde particular com programa de reabilitação para dependentes químicos e em jogos em Camboriú, no litoral de SC. Participou de um programa de internação por 60 dias, com atividades como leitura, pintura e palestras sobre como lidar com a dependência, tanto em jogos quanto na droga.
— Não é brincadeira. Qualquer substância, jogo, impulso. Não brinquem. Busquem assistência. Eu não perdi a minha família porque sou um privilegiado de eles também verem o jogo como uma doença e me ajudarem a buscar tratamento — conta.
A poucas semanas de ganhar alta do tratamento na clínica, ele já fazia planos para a nova vida longe das bets e da dependência química.
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— É muito importante a gente substituir. E é isso que estou fazendo. Substituindo por leitura, pintura, educação física, várias outras coisas, e voltando a ser a pessoa que eu era — afirma.







