Quem rola a tela do celular pode ver influenciadores exibindo carros de luxo, mansões e viagens que dizem ter conquistado com apostas em jogos on-line. Os anúncios e estímulos para tentar a sorte nesses sites estão por toda a parte. Do outro lado da tela, no entanto, o que não faltam são exemplos de pessoas que descobriram ter muito mais a perder do que a ganhar com as famosas bets.

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Thiago*, hoje com 42 anos, chegou a frequentar alguns bingos ainda jovem no início dos anos 2000, mas a proibição da atividade no país dificultou o acesso à prática. Em 2020, quando enfrentou um processo de separação, começou a apostar em jogos on-line. Passou a gastar o salário que recebia como executivo de marketing em uma empresa e as economias com as rodadas de cassino pela internet. Em pouco tempo, perdeu o controle.

— Eu ficava de madrugada esperando o salário entrar na conta. Eu recebia às quatro horas da manhã, e às seis horas eu já não tinha mais nada — conta.

Os jogos de cassinos on-line, semelhantes às máquinas de caça-níquel, mas ao alcance das mãos 24 horas por dia pelo celular ou computador, foram o ponto fraco de Thiago. Ele chegava a pedir ajuda de familiares e amigos para transferir valores via Pix e poder jogar. Perder R$ 10, R$ 100 ou R$ 1 mil passou a se resumir à mesma coisa, sem a dimensão exata do valor apostado.

— Eu já cheguei a fazer um churrasco na minha casa, na sacada, fingir que eu tinha que responder um e-mail do trabalho para ir lá jogar, e perder R$ 30 mil. Absurdo. Hoje eu não tenho nada no meu nome, devido ao jogo — afirma.

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Thiago só perdeu a vontade de jogar quando entrou em cena outro problema: a dependência química. A combinação, comum em pacientes segundo especialistas, agravou a situação financeira. Perdeu metade do apartamento que tinha, vendido após o divórcio, e o valor de uma rescisão trabalhista com os gastos em apostas e drogas. Somente em um mês chegou a pagar uma fatura de cartão de crédito de R$ 98 mil.

— Hoje, quando eu olho programas de televisão, times de futebol, todos estão patrocinados por bets. Isso me deixa bem triste, porque eu sei o que é você olhar para tua família, para as pessoas, eles olharem para você e falarem: “Meu, de novo? Não acredito que você perdeu” — conta.

Veja fotos sobre as bets

O risco de dependência em jogos que acometeu o executivo de marketing é um problema em ascensão no país. Segundo um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgado em abril deste ano, 7,3% da população adulta brasileira apresenta características de jogo de risco ou problemático. O número equivale a quase 11 milhões de brasileiros com 14 anos ou mais. Em todo o país, 25,9% das pessoas já apostaram ao menos uma vez na vida e 17,6% tinham apostado no último ano do levantamento, que traz dados de 2023. A maior prevalência está justamente na região Sul do país, onde 20,4% das pessoas fizeram apostas on-line no último ano.

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Saúde mental

De acordo com a psicóloga especialista em dependência em jogo Elizabeth Carneiro, 96% dos jogadores têm pelo menos uma outra condição a ser tratada — que pode ser outro tipo de dependência ou quadros de saúde mental, como depressão, ansiedade e compulsão alimentar. Em 60% dos casos, os pacientes chegam a ter até três desses diagnósticos. A procura por ajuda ou atendimento médico às vezes pode vir somente quando as finanças já estiverem totalmente comprometidas.

— Então, ao receber um paciente, eu tenho que ver se esse cara tem risco de suicídio, se está tendo crise de ansiedade, se está bebendo. E o que acontece com os profissionais? Geralmente eles recebem um alcoólatra, mas não perguntam se ele está jogando, porque não faz parte da prática habitual — explica Elizabeth.

Nos casos mais extremos, até mesmo uma interdição do paciente, com bloqueio de acesso a contas bancárias, acaba sendo estratégia discutida com os familiares.

A terapia e o tratamento de outros transtornos psiquiátricos que podem coexistir no paciente são as principais estratégias de tratamento adotadas. Além disso, outra aliada pode ser a participação em grupos como os Jogadores Anônimos (JA), que possuem uma unidade em Florianópolis, com reuniões em três dias da semana.

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A médica psiquiatra Alessandra Diehl, do Bem Viver Centro de Saúde Integrada, de Camboriú, detalha quais os sinais que devem receber atenção para a dependência em jogos.

— Os sinais são os mesmos de dependência química: quando a pessoa começa a gastar mais tempo com os jogos do que outras atividades que antes eram prazerosas para a vida dela. No consultório, o que eu ouço é: doutora, ele passa a noite inteira com a luz do celular ligada, eu não vejo ele dormindo porque está jogando. De manhã, ele está cansado e muitas vezes deixa de ir trabalhar porque ganhou. Mas quando perde, fica super aborrecido. Outro critério é a tolerância, quantas vezes ele está se expondo ao jogo, e a fissura, a vontade — afirma.

Solução passa por serviços de saúde e ações preventivas

Se a legalização e os casos de dependência de jogos avançam no Brasil, a estrutura de saúde pública para tratamento desses casos ainda engatinha. Algumas experiências de ambulatórios na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) são alguns exemplos de iniciativas que oferecem atendimento gratuito especializado a pacientes com transtorno de jogo.

Em contato com as prefeituras das três maiores cidades de Santa Catarina, os municípios de Florianópolis, Joinville e Blumenau informaram que as unidades de saúde são a porta de entrada para pacientes com problemas como dependência em jogos. É a partir destas unidades que as pessoas também podem ser encaminhadas aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), especialmente os Caps AD, que atendem aqueles com dependência de álcool, drogas e outros comportamentos. Os municípios informaram não ser possível indicar um tempo médio de espera para consulta com um psicólogo na rede pública porque isso depende do quadro de cada paciente.

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A carência de oferta para tratamento na rede pública, no entanto, é apenas um dos desafios do atual cenário de crescimento das apostas e jogos on-line. A psicóloga Elizabeth Carneiro avalia que outra discussão importante deve incluir a publicidade e um aumento de restrições a propagandas destas plataformas.

— A caminhada preventiva vai ter que ser a mesma que a gente teve com o tabagismo, por exemplo. Antes, o carro de Fórmula 1 podia correr com a marca de cigarro estampada, depois não pôde mais. Então, é como a gente recomeçar uma caminhada de prevenção. Da mesma forma que grupos de especialistas conseguiram que o cigarro fosse proibido dentro do avião, dentro de lugares fechados, passando pelo marketing, onde pode e quem pode ser exposto às propagandas, a gente vai ter que começar essa mesma caminhada com as bets — defende a profissional.

A médica psiquiatra Alessandra Diehl, do Bem Viver Centro de Saúde Integrada, defende que a proteção dos adolescentes, um público também vulnerável às apostas e jogos on-line, deve ser uma das preocupações do ponto de vista das políticas públicas. Durante a campanha Setembro Amarelo, a profissional conduziu uma palestra com médicos do litoral de SC sobre como identificar e tratar pacientes com quadro de dependência em bets.

— Nós psiquiatras precisamos aprender cada vez mais a como investigar, como manejar. Porque a queixa nem sempre aparece tão clara. Muitas vezes ele não enxerga, porque passa pela fase em que está ganhando dinheiro. Tem crenças distorcidas, de que teve sorte, de que na próxima vai ganhar. E isso é um problema mundial — avalia.

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Em muitos casos, o apoio da família e o suporte de redes particulares que trabalham com dependências acabam sendo as ferramentas disponíveis para quem enfrenta problemas com jogos — e consegue pagar por elas. Foi o caso de Thiago*. O quadro crítico financeiro e de saúde o fez pedir ajuda aos familiares. Concordou em ter as contas bloqueadas e parou de usar celular. Frequentou reuniões de grupos como Jogadores Anônimos (JA) e iniciou tratamento com psicólogo e psiquiatra. Em agosto deste ano, ficou internado em um centro de saúde particular com programa de reabilitação para dependentes químicos e em jogos em Camboriú, no litoral de SC. Participou de um programa de internação por 60 dias, com atividades como leitura, pintura e palestras sobre como lidar com a dependência, tanto em jogos quanto na droga.

— Não é brincadeira. Qualquer substância, jogo, impulso. Não brinquem. Busquem assistência. Eu não perdi a minha família porque sou um privilegiado de eles também verem o jogo como uma doença e me ajudarem a buscar tratamento — conta.

A poucas semanas de ganhar alta do tratamento na clínica, ele já fazia planos para a nova vida longe das bets e da dependência química.

— É muito importante a gente substituir. E é isso que estou fazendo. Substituindo por leitura, pintura, educação física, várias outras coisas, e voltando a ser a pessoa que eu era — afirma.

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*Nome fictício, a pedido do entrevistado