Cinco décadas de histórias e investigações que marcaram o Brasil. É com essa bagagem que Caco Barcellos, um dos nomes mais respeitados da imprensa nacional, reflete sobre o cenário atual da informação. 

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Autor dos livros Abusado e Rota 66, Caco se especializou em grandes reportagens sobre injustiça social e violência. Durante a carreira, cobriu momentos emocionantes, como o rompimento da barragem de Mariana, o acidente da Chapecoense e foi até “sequestrado” por guerrilheiros na Colômbia durante a produção de uma reportagem. 

Todas essas vivências contribuíram para a elogiada atuação dele no Profissão Repórter, programa semanal na TV Globo. Em entrevista exclusiva ao NSC Total, o repórter conta sobre os desafios enfrentados na profissão e dá conselhos para novos jornalistas.

Qual foi o momento de maior adrenalina ou risco que você enfrentou em uma reportagem?

Acho que foi a Guerra Civil na Angola, que durou 42 anos. Quando eu fui para lá, 400 crianças morriam, todos os dias, segundo as Nações Unidas, extremamente trágico. Os lados dessa guerra eram muito cruéis e impunham uma vida ultrajante para quem morava na área de conflito. Já que não passava alimento, além de morrerem metralhados, muitas pessoas morriam de subnutrição. 

Só consegui entrar na guerra com autorização dos Médicos sem Fronteiras. Conseguimos ficar no coração do conflito e no único lugar onde havia ajuda humanitária para os feridos. Passei uma semana acompanhando um pediatra chinês e toda hora chegavam crianças baleadas. 

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O meu maior sofrimento foi ver uma menininha de 3 anos, mesma idade da minha filha na época, que tinha recebido uma bala de fuzil que destruiu muitos órgãos internos. O hospital não tinha eletricidade, então o médico me pediu para fazer compressão de borracha para ela ter oxigênio durante a cirurgia, e não havia nem bisturi elétrico. 

Nesse meio tempo, um enfermeiro, amigo do médico, foi baleado enquanto tentava buscar a mãe dessa criança e voltou ao hospital. O pediatra teve que decidir qual vida salvaria primeiro e escolheu a menina, por conta da idade. Algumas horas depois ele descobre que o grande amigo faleceu, mas ele continuou tentando lutar pela [vida da] criança. Logo pela manhã, a menina também não resistiu. 

Esse momento de luta com os médicos me abalou demais. Porque eu contei a história de uma criança, mas a cada minuto aquilo acontecia com outras. Você participa do drama de um, mas olha para o lado e vê o drama de tantos outros. 

E na subnutrição, não adianta alimentar muito. Tem que dar gotinhas de soro ou de leite porque, se der muita quantidade, a criança morre precocemente. Fiquei muito impressionado também que eles colocavam as crianças no colo das mães, ambas subnutridas, e davam lençol de alumínio para aquecer o corpo da criança.  Pelo menos, dessa forma ela morria aquecida. 

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Depois dessa história eu fiquei com dificuldade para dormir por um ano, lembrando de todas as cenas que tinha visto. Sem dúvidas, foi a reportagem que mais sofri. Também foi a mais arriscada pois a qualquer momento poderia cair uma bomba onde a gente estava. 

O que isso te ensinou sobre o valor da notícia?

Acabo de chegar do Peru, onde aconteceu a final da Libertadores. Em meio a maior  alegria e emoção de todo mundo, um médico jovem, palmeirense, de 38 anos, que estava passeando e saltando em um ônibus de turismo, não viu que estava passando por um viaduto e bateu a cabeça. 

Quando há essa proximidade em episódios assim, quando acontece uma tragédia desse tamanho, a gente se dá conta que a notícia arrasa as histórias. Se você estivesse lá, contaria essa história no meio de 90 mil pessoas em festa, vibrando? 

No nosso programa a gente gosta de discutir ética, conduta. A gente parou o trabalho para decidir se contaria a história dele ou não. Sou o líder do grupo, mas o nosso processo é democrático. Então, em votação, decidimos contar a história sim, porque é um programa jornalístico. 

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Mas dividiu-se em dois lados. Um dos lados achava que seria uma agressão à família. “Para quê contar a história da morte num episódio que não tem relação nenhuma com a tragédia?” A gente acha que tem relação, sim. A vida é assim, né? 

E quem não queria contar a história defendeu a importância de manter a privacidade da família em situação de tragédia. Eu discordei. Acho que, infelizmente, a gente tem que saber que quanto mais a gente souber dos acontecimentos, melhor a gente cumpre a nossa missão. 

Você acha que ainda temos espaço para fazer pautas que podem surpreender ou o jornalismo está preso ao que o algoritmo considera relevante? 

Essa é uma pergunta importantíssima, né? A gente ainda está ao lado do algoritmo, das redes sociais, a gente quer tá no meio do povo para entender um pouco melhor como são as coisas, a realidade do país. 

Eu acho que a inteligência artificial é fundamental, vai ajudar muito, sobretudo quem é pesquisador. Vai ajudar também os preguiçosos, que não querem apurar e querem receber informação de graça da inteligência artificial. Vai também ajudar os falsários, quando você imita alguém sem dar crédito, né? E esses terão uma vida facilitada. 

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Mas eu acho que é um instrumento fundamental para pesquisa, que acelera o processo. Eu considero a nossa profissão ainda imprescindível, porque um robô, por exemplo, é difícil ir à rua, interpretar as coisas da rua. A inteligência artificial é muito eficiente, mas você tem que ter já a apuração feita. O grande avanço que ela traz é sintetizar e sobretudo agilizar a pesquisa, mas tem que ter algo para ir atrás.

Agora, quem é que alimenta esse arquivo para ela trabalhar melhor? Ainda é a pessoa, é o repórter de rua, sobretudo, que faz o registro dos acontecimentos. Se não tiver o registro de um acontecimento, por exemplo, com uma a morte desse médico no Peru, se ninguém observou a morte dele, quando você consultar a inteligência artificial: “O que é que aconteceu no jogo? Alguma tragédia no jogo da final da Libertadores?” Ela diria absolutamente não, porque ninguém registrou aquela morte, não está arquivada.

Então, eu acho que inteligência artificial combina com o passado. Já foi, está lá. Agora, o novo quem traz ainda é o repórter ou jornalista, quem estiver na rua nessa missão de fazer a captação do novo.

Qual foi a reportagem mais surpreendente para você e sua equipe?

Olha, eu me surpreendo, acho que todo dia, viu? Por isso que eu vou para a rua. Tenho 51 anos de rua. Me nego a fazer jornalismo que não seja na rua, porque a rua te traz a oportunidade de aprender algo novo todo dia. 

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Qualquer pessoa que a gente venha a conhecer, ela guarda consigo sempre uma grande história se a gente tiver curiosidade de descobrir a história. Eu não quero perder esse privilégio que a profissão me dá. Então, eu estou sempre sendo surpreendido, porque eu vou à procura da surpresa. Se eu vou atrás de coisa que eu já sei, qual é a graça? Eu quero ser surpreendido.

Sou louco por multidão. Mas também uma pessoa me interessa. O que é a multidão? É a somatória de várias pessoas, várias unidades. Eu acho que cada história, cada pessoa pode esconder, guardar com ela, grandíssimas coisas, né? Valiosas para o conhecimento. Tomara que ela me surpreenda. Estou sempre com essa expectativa. Por isso que o que eu mais exercito na vida, no trabalho, são essas duas ferramentas aqui [aponta para as orelhas]: ouvir, ouvir, ouvir.

Você forma novos repórteres tanto no seu programa quanto quem te assiste pela televisão. Qual habilidade técnica ou emocional você considera mais importante desenvolver? 

A gente tem várias ferramentas nesse tempo da revolução digital que traz tanta coisa maravilhosa para o nosso exercício, né? Acho que isso tem que ser aliado da gente, todos os equipamentos, mas eu acho que os melhores ainda estão aqui nessa caixinha [aponta para a cabeça]. 

Os olhos para observar a realidade. Claro que a boca para a gente contar a história, mas isso aqui, os ouvidos, eu acho essencial. Ele que te traz tudo que você precisa para exercer seu trabalho.

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Então, se eu vou, por exemplo, ter que entrevistar alguém que é conhecido pela violência extremada, não vou conversar com ele diretamente sem antes ouvir todo mundo que o conhece. Então, esse equipamento de ouvir, é para ir atrás de um ponto vulnerável. Toda pessoa tem um ponto vulnerável.

Esse, digamos, serial killer, o matador extremado, ele tem mãe, tem namorada, tem filho. Tem um momento de fragilidade onde ele fica mais humanista, eu diria, que é o momento que você deve entrar na história dele. Porque ele vai estar mais sensibilizado, vai te ouvir.

Essas ferramentas que a gente tem e não precisa nem de manutenção ainda, eu acho que são essenciais para o exercício permanente do trabalho. Porque aí você se prepara melhor, né? Se você estiver bem informada. Então, não vá para a rua sem uma boa informação quando existe o risco no trabalho. Se há risco, então eu vou estudar esse risco para tentar driblar esse risco e exercer o meu trabalho.

Assista a entrevista completa

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