A escolha do ator Thammy Miranda como uma das 14 personalidades selecionadas por uma marca de cosméticos para divulgar nas redes sociais a campanha de Dia dos Pais da empresa causou polêmica e provocou um debate nas redes sociais nas últimas semanas: afinal, o que é necessário para ser pai? O que define um bom pai? O que caracteriza um “pai presente”, como diz a campanha da marca? Isso tudo porque Thammy é um homem trans. Pai do menino Bento, de seis meses, Thammy foi atacado nas redes sociais por sua identidade de gênero, e teve seu papel como pai (ou mesmo sua “capacidade” de ser pai) questionado.

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Para muita gente, porém, a questão da identidade de gênero não se faz presente apenas aqui e ali, pontualmente, a cada nova polêmica na internet.

– A disforia de gênero é um stress, um mal-estar, uma tristeza que o paciente sente quando percebe que a forma como ele se entende não é a forma como ele se vê no espelho – explica o médico cirurgião José Carlos Martins. – Não é uma doença: é uma condição. A abordagem psicológica, a abordagem hormonal e a abordagem cirúrgica que são adotadas pelos médicos, geralmente nessa sequência, buscam atuar no sentido de controlar a disforia; aproximar o que o paciente vê no espelho daquilo que ele realmente é.

O conceito parece simples – e de fato é, uma vez removidas as camadas de preconceitos a respeito de gênero, masculinidade, feminilidade e mesmo sexualidade. O que não quer dizer que o processo de transição – como é chamada a combinação de abordagens citadas no parágrafo anterior – seja, em si, simples. Hoje, ainda são relativamente poucos os médicos especializados em tratar pacientes trans. Não são todos os profissionais da medicina que oferecem os tratamentos psicológicos, hormonais e principalmente cirúrgicos necessários para que a transição aconteça de forma segura. No Brasil, existe apenas um centro de saúde integrado especializado em pacientes transgênero: e ele fica em Santa Catarina; mais especificamente, em Blumenau.

José Carlos Martins e seu sócio Cláudio Eduardo de Souza inauguraram, em 2015, o Transgender Center Brazil; especializado em saúde de pessoas transgênero. Além de orientar o processo de transição e realizar diversos procedimentos cirúrgicos, o local também oferece outros serviços, como atendimento por um ginecologista especializado em saúde de mulheres trans.

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Martins tem dupla formação: odontologia, com residência em cirurgia bucomaxilofacial, e medicina, com especializações em cirurgia geral, cirurgia plástica, cirurgia facial. Depois de anos se dedicando a trabalhar com pacientes com deformidades faciais – sequelas de tumores ou acidentes, por exemplo -, descobriu a existência de uma cirurgia até hoje pouco realizada no Brasil: a feminização facial.

– Descobri um médico na Tailândia que lixava os ossos do crânio para fazer com que as pacientes trans tivessem um rosto mais parecido com os das mulheres cis – conta o médico. – Eu me interessei muito por isso e comecei a pesquisar, ver vídeos no YouTube… Tentei entrar em contato com esses médicos para aprender, mas eles não quiseram me receber. Então descobri que existia um cirurgião plástico na Filadélfia, nos Estados Unidos, que trabalhava com esse tipo de cirurgia, e enviei um email a ele me apresentando. Um mês depois eu estava na Filadélfia, para poder aprender as técnicas cirúrgicas necessárias para esse tipo específico de transformação.

Foi depois da viagem que o cirurgião decidiu abrir uma clínica especializada em Blumenau, onde já mora há quinze anos: ele e seu amigo e colega Cláudio Eduardo de Souza voltaram aos Estados Unidos em seguida, para aprender a cirurgia de redesignação sexual em si. Mas Martins garante que, nessas viagens, acabou aprendendo muito mais que técnicas cirúrgicas:

– Aprendi a respeito dessas pessoas que são negligenciadas, sofrem preconceito, e existem no mundo todo: pessoas de todas as idades, profissões, em todos os tipos de família – relata Martins. – Presenciei demonstrações de amor gigantescas: logo de cara já conheci uma esposa que estava levando o marido para fazer sua cirurgia de transição. Foi uma jornada de conhecimento médico, mas principalmente de conhecimento humano, social.

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Histórias impressionantes e “demonstrações de amor gigantescas” são comuns entre os pacientes do Transgender Center Brazil – mesmo que a jornada de transição nem sempre seja fácil.

– Todos os meus amigos continuaram meus amigos, entenderam perfeitamente a minha realidade. Hoje eles têm plenas condições de falar sobre a disforia, sobre o que é, baseado no que a gente conversa – conta a funcionária pública aposentada Maria Antônia, que, aos 58 anos de idade, está em meio ao processo de transição: já passou por duas cirurgias, e tem mais duas a caminho.

Mas, mais do que a reação dos amigos, o que desperta um sorriso ao ouvir o relato de Maria Antônia é a reação de seus filhos; o mais velho, de 28 anos, e a mais nova, de 25:

– Antes da cirurgia, eu já tinha tirado algumas fotos vestida como mulher; com peruca, maquiagem – ela conta. – Eu sempre procurei criar meus filhos com a mente muito aberta, sem preconceitos. Então, antes de abordar o assunto diretamente, mandei as fotos para os meus filhos. Meu filho elogiou, disse que aquela moça era bonita, que podia ser uma boa namorada. (risos) Uns dois dias depois eu falei que aquela mulher na foto era eu. E meu filho reagiu dizendo que a foto tinha ficado muito boa. Eu sei que, infelizmente, não é assim que acontece em todas as famílias; mas sou muito agradecida por meus filhos terem me apoiado tanto. Meu irmão mais velho disse que a notícia era “um choque”, o que eu entendo perfeitamente. (risos) Mas ele aceitou bem também.

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– Acho que, ao longo da vida, nós temos vários papéis; e eu sempre busquei, em todos os papéis que desempenhei, dar o melhor de mim – diz Maria Antônia, a respeito de sua transição aparentemente tardia. – Estou em um momento da vida em que posso me dedicar mais a mim mesma; e foi nesse momento que descobri minha essência. Quando temos mais tempo para nós mesmos, nós conseguimos nos conhecer melhor. Eu comecei a rever vários momentos da minha vida e identificar o que realmente acontecia comigo. Eu me lembro que, com dez anos de idade, em um momento em que meus pais não estavam em casa, eu experimentei um vestido e gostei bastante, achei que ficou super bem em mim. Naquela época, claro, nem se falava disso; não se ouvia a palavra “trans”. A informação não circulava desse jeito.

“Acho que, ao longo da vida, nós temos vários papéis; e eu sempre busquei, em todos os papéis que desempenhei, dar o melhor de mim”, diz Maria Antônia, a respeito de sua transição aparentemente tardia (Foto: Acervo pessoal)

– Quando comecei a me entender, eu passei a pesquisar, buscar informações médicas, científicas – ela prossegue. – Existe uma dificuldade de encontrar médicos que sejam especialistas em tratar pessoas trans. Muitas vezes os profissionais que a gente encontra nunca nem tiveram contato com uma pessoa trans. Mas, primeiro, eu decidi procurar uma psiquiatra. Eu tinha certeza de que eu estava bem, de que minha saúde mental estava boa, mas vai saber, né? Melhor conferir – Maria Antônia brinca, rindo. – Foi ótimo. Felizmente essa psiquiatra já tinha experiência com pessoas trans; e me explicou o que é a disforia de gênero.

Já Guilherme Voos de Souza começou sua transição bem mais cedo: o tratamento hormonal com testosterona foi iniciado aos 16 anos.

– Eu sempre senti que tinha alguma coisa de diferente comigo. Quando era pequeno, eu não sabia direito o que era, mas eu sentia que eu não me encaixava – ele relata. – Aos 16 anos, eu estava fazendo um intercâmbio e, durante esse intercâmbio, eu comecei a me sentir muito pra baixo; talvez por estar meio sozinho, longe da família… Eu ainda não tinha conhecimento do que é uma pessoa trans; eu pensava que talvez fosse lésbica. Então eu conversei com a minha família de lá e comentei isso com eles. Acho que me senti mais à vontade porque eles ainda não me conheciam muito bem: eu senti que não decepcionaria eles falando disso, como eventualmente poderia decepcionar a minha família aqui.

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Ainda durante o intercâmbio, Guilherme foi levado a um grupo LGBTI – e, em seu primeiro dia, um ato aparentemente muito simples despertou seu entendimento para o que realmente podia estar acontecendo:

– Eles me pediram para preencher um formulário com informações básicas sobre mim, e nesse formulário eles perguntavam por qual pronome eu preferia ser tratado – conta Guilherme. – E eu não consegui responder essa parte, porque fiquei em dúvida. E aí que me deu esse estalo: talvez seja isso que falta, talvez seja essa parte da minha identidade que me deixa confuso e frustrado. Foi nesse momento que eu comecei a pesquisar informações sobre a transexualidade. Comecei a ler relatos e histórias de homens trans, e conseguia me identificar em algum nível com tudo o que era falado.

– A partir do momento em que eu entendi que não havia nada de errado comigo, que eu não era “anormal”, foi tudo muito mais tranquilo. Eu não tive dificuldade em aceitar isso a meu respeito – ele afirma. – Então eu percebi que precisava conversar com meus pais, até porque eu ainda era menor de idade: se quisesse fazer qualquer tipo de tratamento, precisaria da autorização deles. Conversei com meu pai ainda longe, por uma chamada de vídeo, e foi meu pai quem conversou com minha mãe. Ela teve um pouco mais de dificuldade de entender; ficou algum tempo sem conseguir falar direito comigo.

No próprio processo de entendimento, a mãe de Guilherme começou a pesquisar mais sobre o assunto: e descobriu que, no Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde a família morava, havia um grupo de terapia voltado para adolescentes trans. Quando voltou do intercâmbio, Guilherme já estava na fila para participar da terapia.

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– Aos poucos todo mundo na minha família começou a ficar mais confortável com a situação – diz Guilherme. – Eu entendo o baque inicial da minha mãe, o susto. Hoje vejo que tenho muito a agradecer a ela, porque foi ela que correu atrás de tudo para mim.

Mas não são apenas os próprios homens e mulheres transgênero que precisam lidar com preconceitos, adaptações e mudanças de mentalidade: o cirurgião José Carlos Martins conta que o tabu em torno do assunto ainda existe mesmo dentro da comunidade médica.

– No começo eu ouvi coisas do tipo: “Martins, você estudou tanto tempo, fez duas faculdades, pra operar travesti?” – ele relata. – Um médico, colega meu, me disse: “Martins, o que você faz não é de Deus.” Já escutei muita piadinha transfóbica dentro de centro cirúrgico. Muita gente me pergunta se eu não imaginei que teria problemas ao abrir a clínica justamente em Blumenau, que é considerada uma cidade conservadora; mas eu sabia que esse tipo de problema eu teria em qualquer lugar. Hoje, pela persistência, nós conseguimos impor respeito. E meu objetivo não é agradar todo mundo: é ajudar a cuidar de uma parcela da população que é muito negligenciada.

Também com esse objetivo, Martins lançou recentemente o livro Transgêneros: Orientações Médicas para uma Transição Segura, com 180 páginas e colaboração de Cláudio Eduardo de Souza: a obra, disponível online, é voltada não à comunidade médica, e sim ao público transgênero.

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O livro
O livro “Transgêneros: Orientações Médicas para uma Transição Segura” é voltado ao público transgênero, não à comunidade médica (Foto: Lucas Gonçalves)

– Eu percebo que fazer a informação correta chegar à população trans é muito difícil – ele afirma. – Tem muita gente por aí se submetendo a procedimentos de fundo de quintal, injetando silicone industrial no corpo, usando hormônios por conta própria. Na internet tem muita informação errada, ou no máximo adaptada: falando de cirurgias de colocação de prótese mamária em mulheres cis, por exemplo, como se a cirurgia para mulheres trans fosse idêntica. Então eu decidi pegar meu conhecimento, minha experiência, e colocar em um livro; mas em uma linguagem simples, acessível, cheio de ilustrações.

– A transição segura é operar o paciente certo, no momento certo, com o procedimento certo – diz José Carlos Martins. – Muitas vezes, o procedimento cirúrgico nem é necessário para que o paciente passe a se sentir bem com o próprio corpo. No caso dos homens trans, por exemplo, a testosterona faz mudanças fantásticas: engrossa a voz, faz crescer barba, muda até o formato do rosto, a estrutura corporal. Mas as mamas não desaparecem, é claro; então entra a mastectomia masculinizadora, que não é simplesmente a retirada das mamas, é retirar as mamas e dar um contorno masculino para o tórax.

Guilherme, além do tratamento hormonal, iniciado já aos 16 anos, fez também a mastectomia, poucos meses depois do aniversário de 18 anos:

– Mais que um desejo, a mastectomia era uma necessidade para mim – ele explica. – Eu não conseguia lidar com ter seios; era uma coisa que me incomodava demais no meu corpo. Sempre tive muita dificuldade em usar sutiã, biquíni; mesmo antes de saber que eu era um homem trans. Poder me olhar no espelho e ficar confortável com o que eu vejo é uma sensação surreal até hoje. Colocar uma camiseta branca e não me preocupar com nada marcando… O conforto que eu tenho agora é indescritível. Passei a vida inteira usando moletom largo, pra não marcar; fizesse frio, fizesse calor. Era a única maneira de eu ficar um pouco mais tranquilo para sair de casa.

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O médico José Carlos Martins acha que a mentalidade da sociedade vem, aos poucos, mudando em relação à realidade das pessoas transgênero.

– Uns 30% dos nossos pacientes hoje são de um desses dois extremos: ou são pessoas que estão começando a vida, jovens adultos que já têm um entendimento maior do que são e do que acontece com eles; ou são pessoas mais velhas, de 50, 60 anos, que passaram a vida toda sem poder viver o que realmente são, e agora finalmente têm entendimento e apoio suficiente para fazer a transição – ele comenta. – Os homens trans também estão tendo muito mais visibilidade. E a medicina também evoluiu muito, é claro: há algumas décadas era impossível fazer esse tipo de cirurgia com tanta segurança.

– É muito nítido o quanto o assunto ganhou espaço nos últimos anos; até mesmo na mídia. Há mais abertura para discussão. – concorda Guilherme. – Não acho que seja mais fácil de lidar: o mundo ainda é o mesmo, ainda existe muito preconceito, inclusive parece que o preconceito ficou mais escancarado de certa forma. Mas acho que é mais fácil as pessoas acessarem informação e se entenderem.

“Poder me olhar no espelho e ficar confortável com o que eu vejo é uma sensação surreal até hoje”, diz Guilherme (Foto: Acervo pessoal)

E tanto Maria Antônia quanto Guilherme compartilham uma opinião: é preciso dar tempo para todas as pessoas envolvidas em um processo de transição – incluindo aí familiares e amigos.

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– Acho que temos que ter a mente sempre aberta para o novo. Precisamos nos libertar de certas crenças pessoais, não necessariamente religiosas, que às vezes nem percebemos que temos – diz Maria Antônia. – O desconhecido sempre gera medos, incertezas; mas acho que, quando você se conhece e tem certeza da sua essência, você não depende tanto da aprovação dos outros. Você sabe quem é, e é isso o que mais importa. E temos que ter compaixão: eu sou budista, e no budismo se fala muito em compaixão, que é ter paciência, empatia, bondade e amor pelos outros.

– Logo que se entende, se assume, a gente fica muito ansioso por mudanças – explica Guilherme. – Então a gente fala para a família, os amigos, que nosso nome é esse, que a gente quer ser chamado por esse pronome e não por aquele; e acaba até mesmo ficando irritado quando as pessoas esquecem. Mas uma coisa que eu aprendi é que não dá para esperar que as pessoas mudem tudo do dia para a noite. Para você, a sua identidade pode ser muito clara, porque está dentro de você a vida inteira: quando você fala em voz alta pela primeira vez, é um alívio. Mas, muitas vezes, para as pessoas que convivem com você, é uma surpresa. Claro, você não precisa aguentar situações de desrespeito proposital. Mas todo mundo precisa passar por um processo de aceitação, de se acostumar. Cada um tem seu tempo.