“Uma dose de história não faz mal a ninguém”. É o que disse Eglê Malheiros em entrevista ao documentário “Eglê” (2023), que conta a história de vida da catarinense que é militante, poeta, professora, editora, roteirista e tradutora. A produção será exibida de graça na 3ª edição do Festival Internacional de Cinema Ambiental de Garopaba (FICA), no dia 7 de novembro, a partir das 19h, na Praça Central de Garopaba.
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Natural de Tubarão, no Sul de Santa Catarina, Eglê tem 96 anos e atualmente mora em Brasília, ao cuidado dos filhos: cinco, no total, que teve com o companheiro Salim Miguel. Eles já lhe deram oito netos e, agora, quatro bisnetos.
Imagens da baronesa Edla von Wangenheim mostram cotidiano em Florianópolis no século passado
“O preço da ilusão” (1957)
Eglê, junto de Salim, foi responsável pelo roteiro e argumento do primeiro longa-metragem filmado em Santa Catarina, chamado de “O preço da ilusão”, de 1957.
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O longa, que se passa em Florianópolis, conta duas histórias simultâneas: a de Maria da Graça, uma funcionária pública que desiste do noivado para participar de um concurso de Rainha do Verão, e a de Maninho da Silva, menino que trabalha como engraxate para sustentar a família. A mãe dele é rendeira e o pai um apostador de brigas de canário.
As raízes “manezinhas” são evidenciadas no filme: durante a narrativa, Maninho organiza uma rifa para montar um conjunto de boi de mamão, que virou patrimônio imaterial e intangível de Florianópolis em 2019.
As histórias paralelas se encontram na última cena, quando o carro onde Maria estava, tentando fugir da cidade conservadora, perde o controle ao desviar de Maninho e despenca da Ponte Hercílio Luz.
— É uma coisa bem “Floripa” e as duas histórias, que são paralelas, se encontram na última cena. O filme tem uma narrativa muito de vanguarda para aquele tempo, em que as histórias eram mais lineares — diz Adriane Canan, jornalista responsável pela direção do documentário “Eglê”.
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Participar da produção do longa fez de Eglê a primeira mulher roteirista de que se tem notícia no Estado, segundo Adriane.
Mas a paixão pelo cinema, que é apenas uma das cultivadas pela percursora, começou muito antes. Ela, junto do Grupo Sul, movimento artístico que levou o modernismo a Santa Catarina entre os anos 1940 e 1950, fundou um cineclube na Capital nos anos 40.
— Eles assistiam filmes franceses e o que estava dentro das possibilidades deles. Assistiam o que estava sendo debatido no cinema ao redor do mundo — conta Adriane.
O Círculo de Arte Moderna, como o grupo se denominou inicialmente, defendeu um modernismo que não fazia rejeição ao passado, mas questionava os parâmetros tradicionalistas das artes. Além de Eglê e o companheiro Salim Miguel, compunham o grupo: Armando Carreirão (VIII Prêmio Funcine Armando Carreirão de Florianópolis), Silveira de Souza, Ody Fraga, Walmor Cardoso da Silva, Adolfo Boos Jr., Aníbal Nunes Pires, Archibaldo Neves e Hamilton Ferreira.
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Eglê foi a única mulher a participar do Grupo Sul durante toda a trajetória. Em 1952, pelas Edições Sul, ela publicou o primeiro livro de poemas, intitulado Manhã.
Eglê foi a primeira mulher a se formar em Direito no Estado
Nascida em Tubarão em 1928, Eglê logo se mudou para Lages, na Serra catarinense. No entanto, em 1932, quando tinha quatro anos, a mãe, Rita da Costa Ávila Malheiros, se mudou para Florianópolis com ela e os irmãos após o assassinato do pai de Eglê. Odílio Cunha Malheiros foi morto por motivações políticas e era advogado, diretor do jornal A Defesa e militante da então Aliança Liberal.
Crescendo em Florianópolis, em 1940, Eglê escreveu um texto sobre Getúlio Vargas, que foi censurado pela escola onde estudava. No documentário, ela conta que o movimento aconteceu porque o escrito “falava em democracia e eleições”. Um ano depois, aos 13 anos, Eglê criou um grupo antifascista no colégio, que ia contra a Segunda Guerra Mundial.
Veja fotos de Eglê
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— Eglê foi uma mulher muito potente num estado conservador. Ela não fica nem no passado, nem no presente: já está no futuro. A dona Eglê joga as coisas o tempo inteiro para o futuro — pontua Adriane, que se encontrou com a intelectual em 2018 e 2021 para a produção do documentário, que teve apenas mulheres por trás das câmeras.
Aos 18 anos, Eglê cursou a Faculdade de Direito de Santa Catarina, se tornando a primeira mulher a se formar no curso no Estado. Na mesma época, ela passou a participar do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A mãe dela também era filiada ao partido e foi candidata a deputada federal nas eleições de 1947.
Aos 20 anos, Eglê era professora concursada do Instituto Estadual de Educação (IEE). Na época, em 1948, a instituição de ensino ainda era chamada de Instituto de Educação Dias Velho. Lá, ela ensinou História Geral, História do Brasil e História de Santa Catarina.
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Eglê, por ser militante, era vigiada.
— Quando ela passou no concurso do Instituto, teve um documento da Igreja Católica dizendo para ela não assumir, por ser do partido comunista — relembra Adriane.
Por isso, quando a ditadura militar teve início, em abril de 1964, ela foi presa pelas tendências políticas e proibida de continuar lecionando até 1979. Em Florianópolis, ela ficou detida por uma semana no Hospital da Polícia Militar e enfrentou mais 50 dias de prisão domiciliar.
Quando os dois foram soltos, eles e os cinco filhos se mudaram para o Rio de Janeiro, onde viveram entre 1965 e 1979. Lá, mesmo sendo mãe e dona de casa, ela trabalhou como tradutora, roteirista de cinema e na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, onde foi diretora-secretária. De acordo com Adriane Canan, na cidade maravilhosa, Eglê também foi uma das editoras da revista Ficção (1976/79), além de fazer o Mestrado em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em 1979, após a anistia — concessão de perdão para que a ficha criminal seja zerada —, a família retorna a Florianópolis. Não desistindo de lecionar, Eglê retomou a atuação no IEE por mais dois anos, até se aposentar. Em 1986, ela foi candidata a Deputada Constituinte pelo PCB.
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Entre a produção literária pulicada por Eglê, está o livro infantil Desça, menino (1985), Vozes veladas (1996) e Os meus fantasmas (2002). Por vários anos, ela também assinou uma coluna no Diário Catarinense e continuou fazendo parte da vida cultural, social e política em Santa Catarina, embora não mais filiada ao partido, de acordo com Adriane.
Por volta de 2010, Eglê se mudou para Brasília com o marido, Salim, pela facilidade no acesso a cuidados médicos. Em 2016, Salim morreu. Os dois foram casados por 64 anos.
*Sob supervisão de Luana Amorim
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