Os muros são altos. A segurança é reforçada. Dentro da casa, cujo endereço é mantido em segredo, mulheres vítimas de violência doméstica encontram amparo, proteção e chance de recomeçar. No entra e sai marcado por dor, tristeza e esperança, muitos nem se dão conta de que o espaço tem um nome: Casa Eliza — uma espécie de homenagem a uma acolhida que, infelizmente, morreu nas mãos do marido.

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Daiane Eliza Machado ainda carrega viva na memória a cena do assassinato da mãe. Era uma menina de 13 anos na noite em que o padrasto Joel Oliveira da Silva, à época com 36 anos, matou a companheira com golpes de faca. Na laje de casa em Blumenau, onde Eliza, aos 48 anos, tentava se esconder, também estavam outros três filhos pequenos do casal. Por sorte, os mais novos dormiam naquele momento aterrorizante. Agora a filha consegue falar sobre o assunto, mas só ela sabe o que enfrentou.

— Tenho pesadelos. Volta aquela cena e eu tento fazer diferente, para evitar que ela fosse morta. Acordo apavorada, chorando. Hoje é menos, mas foi bem difícil — confessa.

Ao entrar pela primeira vez na Casa Eliza, um filme passou diante dos olhos de Daiane. Ela, a mãe e os irmãos caçulas ficaram quatro meses acolhidos ali antes do assassinato. Na época, em 2003, o local se chamava Casa Abrigo. Mais tarde, foi rebatizado. Hoje é uma referência em Santa Catarina na proteção às mulheres. Daiane nunca mais tinha entrado ali, retornou em fevereiro deste ano, com a reportagem.

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Foi preciso amadurecer para entender tudo o que tinha acontecido. Recorda os episódios em que a mãe aparecia com hematomas pelo corpo e sempre tinha uma justificativa. Agora, compreende que eram as marcas das agressões, que aconteceram a portas fechadas, no quarto do casal. Quando Eliza decidiu dar um basta na relação, foi para o abrigo com os quatro filhos pequenos.

Lá, recebeu apoio e só saiu no dia em que teria ouvido de um oficial de Justiça que podia retornar ao lar, pois Joel já tinha sido tirado da casa e sabia que não era mais para voltar.

As cidades de SC que oferecem abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica.

— Ela estava muito preocupada sobre como o Joel ia reagir, mas ficamos felizes quando pudemos voltar para casa. Lembro de a casa estar bem suja, a gente fez uma faxina e a minha mãe ficava falando que a partir dali ia ser diferente. Mas à noite ela ficou incomodada, falou que íamos ter uma noite especial para ver as estrelas. Hoje entendo que ela achou que na laje estaríamos mais seguros — relembra Daiane.

A intuição fez Eliza pegar um colchão e, com a ajuda dos filhos, levar para a laje. Os pequenos dormiram sob a luz do luar, protegidos do sereno por um guarda-chuva. Parecia que seria mesmo só precaução, até que a mulher e a filha adolescente ouviram o barulho na parte de baixo. Era Joel. Ele tinha passado aquele dia inteiro na delegacia e, tão logo conseguiu sair, foi à caça da ex-companheira.

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Daiane diz que na hora nem conseguiu entender o que estava acontecendo, parecia apenas que o homem chacoalhava a mulher. Mais tarde, ela percebeu a grande quantidade de sangue e correu para pedir ajuda em meio ao caos dos irmãos pequenos, na época com quatro, sete e nove anos, acordando aos gritos. Tem a impressão de que chegou a empurrar o padrasto na tentativa de defender a mãe, mas as lembranças são um borrão por causa do nervosismo do momento.

Os bombeiros não conseguiram salvar Eliza. Daiane e os irmãos voltaram para um abrigo por mais dois meses e receberam apoio psicológico até que a irmã mais velha, fruto de uma relação anterior da vítima, conseguiu pegar a guarda das crianças e evitar que os caçulas fossem colocados para adoção.

— Ela era muito jovem, casada, tinha uma filha pequena, mas cuidou da gente. Nós mudamos para Florianópolis onde morava meu outro irmão. Ficamos muito unidos — conta.

Joel se sentou no banco dos réus em 11 de agosto de 2003 e recebeu pena de 12 anos de prisão por homicídio qualificado por recurso que dificultou a defesa da vítima. O crime de feminicídio só foi criado em 9 de março de 2015. No ano passado, a pena para esse tipo de crime aumentou para até 40 anos. O assassino da mãe de Daiana não ficou nem uma década atrás das grades, afirma.

O abrigo que hoje leva o nome de Eliza foi o primeiro de Santa Catarina para mulheres vítimas de violência doméstica com os filhos pequenos, que não têm onde buscar amparo. Nos últimos anos, o serviço avançou e já está presente em pelo menos 11 cidades do Estado, com estruturas mantidas pelas prefeituras, sem custo algum para as acolhidas.

Para acessar esses espaços, na maioria das vezes, as mulheres são encaminhadas pela polícia, delegacia, judiciário ou até mesmo assistência social.

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