Alguma vez você já teve vontade de morar em uma lembrança? Qualquer uma que desperte sentimentos bons e que seja tão, mas tão bonita, a ponto de te encontrar sempre entre um suspiro e a passagem do tempo? Eu tenho memórias muito especiais, que guardo em uma gavetinha discreta, separada no coração.

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Quando estou triste, meio distante de mim, precisando relembrar minha trajetória e me fortalecer apoiada no que me trouxe até aqui, recorro a algumas dessas recordações. Como o dia em que passeei pelas ruas de Paris, a noite da minha formatura no curso de jornalismo, os momentos preciosos, divertidos e breves ao lado do meu pai.

Junto de cada lembrança, vem uma saudade leve, fininha, gostosa, dessas incapazes de machucar. Me dou o direito de sentir e, embora deseje reviver algumas dessas situações tão amorosas só pelo prazer dos sentidos, não fico ali, presa para sempre no que passou. Apenas uso dessa nostalgia para voltar a me reconhecer e a me abrigar em lugares que me fortalecem e impulsionam para alcançar espaços novos no agora.

O que é a nostalgia?

O psicanalista Renan Regueiro me explicou que “a nostalgia indica uma saudade de algo que não existe mais”. Embora as duas sejam tão próximas em seus significados, a nostalgia carrega um certo sofrimento porque, geralmente, ela vem acompanhada por um desejo de permanecer em nossas histórias do passado, trazendo assim uma certa insatisfação diante do presente.

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Em outras palavras, quando a nostalgia não é saudável, sentimos tanta falta do já vivido que paramos no tempo, pensando que nada mais conseguirá nos satisfazer ou alegrar. E ficamos ali, remoendo essas lembranças. “Por isso é importante que a pessoa elabore esse passado no qual ficou presa. Por que ela ainda está lá? O que daquele vivido precisa ser falado e interpretado num processo terapêutico para que a energia investida nessa nostalgia possa ser liberada e colocada no presente?”, observa Keila Bis, também psicanalista.

Efeitos da nostalgia

Revisitar nossas memórias não é exatamente ruim. Costumo dizer que, quando existe saudade, é sinal de que vivemos momentos importantes, que nos marcaram de algum jeito. O complicado é quando nos envolvemos tanto com o que já foi a ponto de não conseguir viver o presente em sua plenitude. Afinal, uma pessoa nostálgica, que fica muito presa àquilo que passou, não está fazendo um “bom uso” de suas memórias, me disse o psicanalista Renan.

Ele ressalta que a nostalgia em excesso e essa fixação pelo passado estão ligadas diretamente à dificuldade que nós, seres humanos, temos de lidar com a realidade, com o presente. Segundo ele, estamos sempre comparando as coisas e tentando reviver algumas situações de nossa vida, mesmo que de forma inconsciente.

“Esse desejo de retorno é algo que faz parte de nós. Buscamos sempre por um lugar mais acolhedor, mais seguro”, ele me disse. E me lembrou também que só tivemos isso, essa espécie de segurança, uma vez na vida, quando estávamos ainda na barriga de nossa mãe. E um pouquinho na infância, quando nos sentíamos mais felizes, bem cuidados e menos responsabilizados pelo que fazíamos.

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Mulher deitada no chão com criança sentada olhando álbum de fotos
Memórias afetivas fazem parte da construção psicológica das pessoas (Foto: Shutterstock)

Memórias afetivas fazem parte do processo de amadurecimento

No entanto, não dá para nos reconhecermos como adultos se ficarmos presos para sempre na ideia e nas experiências da criança que fomos um dia. “São memórias afetivas que fazem parte da nossa construção psíquica. Mas eu não sou mais aquele menino. E preciso me entender como o homem que sou hoje”, explica Renan.

Esse processo de amadurecimento é algo que todos nós precisamos fazer para não ficarmos infantilizados. “Essa segurança da infância, dos cuidados da família, teve seu papel em nossa caminhada. Mas, conforme entramos na adolescência e na idade adulta, é imprescindível que a gente saia desse lugar para assumir responsabilidades, para nos sentirmos capazes de cuidar da própria vida. Isso nos torna potentes”, enfatiza Keila.

Ou seja, é usar o passado como uma lição, e não como aquele lugar único de desejo, que nos prende às lembranças e impede de olharmos para o novo. Afinal, como o Renan também disse, “é saudável manter nossas experiências no lugar delas, compondo quem a gente é”.

Acolher o passado é importante para o presente

Relembrar é tão saudável quanto essencial. Somos feitos por nossas memórias, elas são parte da nossa história. Encarar a nostalgia como algo bom passa pela experiência de extrair das lembranças os aprendizados possíveis e entender que não é possível nem desejável voltar no tempo. “A gente pode olhar para aquilo, ter clareza sobre a nossa história, mas entender que não dá para viver naquele lugar. Eu acolho esse passado e dou um lugar para ele no meu presente, para que eu possa seguir, caminhar e me entender com a realidade, que é a de hoje”, completa Renan.

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Esperança de reviver as mesmas sensações do passado

Tudo isso que falamos até aqui fica ainda mais evidente quando olhamos para as nossas relações, sejam elas amorosas, entre amigos, com o trabalho ou, até mesmo, com algum objeto. Já aconteceu com você? Em algum momento você já se pegou comparando uma relação com a outra, preferindo sempre aquela que já foi encerrada? Se esperamos reviver hoje a mesma sensação e o mesmo amor de anos atrás, nos fechamos e nos privamos de viver bons relacionamentos no agora.

“Muitas pessoas esperam que o segundo encontro seja igual ao primeiro. Que o beijo seja igual, que a convivência seja igual. E nunca vai ser. Sempre que a gente tenta repetir, a gente falha”, Renan analisa. E esse apego à repetição de um prazer já vivido vai contra a ampla experiência do viver. “Se ficamos em busca dessa repetição, negamos a diversidade, a pluralidade das experiências, das pessoas e dos lugares a que temos acesso. O novo é um presente que a vida nos dá. E isso nos transforma, nos alarga, nos enriquece. A repetição faz justamente o contrário”, explica Keila.

Sensações proporcionadas pela nostalgia

Além de cenas, cheiros e sabores vividos também são uma forma de entender a nostalgia como algo positivo. “Me recordo de uma tia que fazia um bolinho de chuva incrível quando eu era criança e tenho memórias muito boas com isso”, confessa Renan. Há mais ou menos dois anos, ele se encontrou com a tia e contou sobre esse afeto saboroso. Então, ela foi para a cozinha reviver as recordações do sobrinho e fritou os bolinhos. “Não é só aquela experiência do sabor, mas é a forma saudável que eu encontro de trazer para a realidade um pouco daquela memória afetiva que eu tenho.”

Essa também é a maneira que a Ana Laura Faria encontrou de preservar a memória de sua infância e sua família. Designer por formação e cozinheira por paixão, ela fundou a Julieta, uma marca de biscoitos artesanais com gostinho e aroma de casa de vó. A receita? Foi passada para ela pela tia-avó, que sempre fazia os famosos biscoitinhos de queijo e goiabada nos encontros em família. Ana recorda essas reuniões e o cheiro que sempre invadia toda a casa, despertando desejo em todos, principalmente nas crianças. “Foi daí que eu criei a Julieta, inspirada nesse carinho e nesse cuidado da minha tia-avó.”

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Na receita tradicional, Ana acrescentou bastante queijo parmesão e alguns segredinhos que não divide com ninguém. O cheiro dos biscoitos se espalha por toda a rua de um bairro residencial em Belo Horizonte e quem passa na porta não resiste: acaba dando uma paradinha para perguntar o que é. Alguns adivinham de cara e rememoram também as suas infâncias. “Minha ideia é despertar sensações, memórias e ver a reação das pessoas diante do sabor. Isso me motiva”, justifica Ana.

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Ressignificar a nostalgia é um passo para o futuro

Descobrir o que nos move e ressignificar nossas memórias é, talvez, o maior passo que podemos dar para cultivar nostalgias saudáveis. Mas, claro, nem sempre vamos conseguir acessar sozinhos esses campos de autoconhecimento dentro de nós. Para isso, Renan recomenda disposição para encarar a nossa história, se possível, junto de alguma ajuda profissional.

“Fazer uma boa leitura ou conversar com um amigo pode ser muito significativo. Gosto de pensar que o autoconhecimento depende sempre de um interlocutor. Senão a gente fica preso no mesmo pensamento e não se escuta.” Todo processo de terapia nos ajuda a compreender melhor quem somos e a escutar, rememorar e elaborar o que vivemos. “As dores deixam de doer tanto e a gente dá um novo lugar para elas. Isso também é um pouco de fazer as pazes com nossa história e nossas perdas”, ele diz.

Não é errado lembrar nem sentir saudade. O que cabe a nós é fazer um bom uso do passado, para construir novas memórias e equilibrar as emoções no presente, seguindo em frente. E lembrar do conselho, disfarçado de canção, na voz de Gilberto Gil: “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”.

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Texto originalmente publicado na revista Vida Simples (Edição 248).

*Por Débora Gomes

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