No ambiente das redes sociais, não é raro encontrar crianças reproduzindo poses, roupas e maquiagens típicas do mundo adulto. Por trás das fotos bem produzidas e das dancinhas virais, especialistas alertam que a adultização, fenômeno caracterizado pela adoção precoce de comportamentos, estéticas e linguagens associadas ao mundo adulto por crianças e adolescentes.

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O termo “adultização” ganhou destaque na última semana após o influenciador digital e youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, publicar um vídeo denunciando produtores de conteúdo de explorarem crianças e adolescentes nas redes sociais. O vídeo ultrapassou 38 milhões de visualizações e fez famílias e autoridades discutirem o fenômeno. Apenas na Câmara dos Deputados foram propostos 32 Projetos de Lei sobre o tema na última semana. 

Segundo a psicóloga Shirlene Gonçalves, especialista em terapia cognitivo-comportamental com crianças e adolescentes, a adultização antecipa demandas emocionais e sociais para as quais o jovem ainda não está preparado. 

— Isso gera insegurança, ansiedade e dificuldade de se relacionar. A criança fica deslocada, não se encaixa no grupo de amigos da mesma idade, mas também não é aceita pelos mais velhos — explica.

Embora o debate costume focar nas meninas, os meninos também sofrem com a adultização, mas de forma diferente. No caso delas, há uma forte pressão estética e sexual, desde a busca por um corpo “ideal” até a adoção de roupas e comportamentos mais sensuais para ganhar visibilidade. Já os meninos enfrentam uma cobrança para serem “fortes” e “pegadores”, muitas vezes estimulada pelo acesso precoce a conteúdos pornográficos.

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Shirlene destaca que a adultização nem sempre envolve sexualização, embora esta possa ser uma de suas formas mais nocivas.

— Nem toda adultização é sexual, mas a sexualização pode ser uma forma de adultização — resume.

Quando uma criança passa a adotar comportamentos com conotação sexual, mesmo sem intenção, ela se torna mais vulnerável a abusos. A exposição na internet amplia esse risco. 

Sinais da adultização

Os sinais de que uma criança está passando por adultização incluem mudança na forma de falar, no modo de se vestir, perda de interesse em atividades adequadas à idade e preocupação excessiva com a aparência.

— Se a criança está reproduzindo comportamentos de adulto nas redes, é porque o problema já está avançado — alerta a psicóloga.

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Para prevenir, a recomendação é clara: adiar ao máximo o acesso irrestrito a celulares e redes sociais, monitorar de perto o uso e estabelecer limites. Quando a adultização já ocorreu, é possível minimizar danos com apoio profissional, reforço da autoridade dos pais e reintrodução de atividades compatíveis com a idade. Para a psicóloga, a chave é que os pais retomem o papel de referência.

— A rede social não pode criar seus filhos. Educação digital, diálogo sobre emoções e limites, e tempo de qualidade juntos são fundamentais. Jogar uma partida de Uno em família pode fazer muito mais pelo desenvolvimento de uma criança do que horas de likes e visualizações — diz.

Cristina Scheibe Wolff, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenadora do Projeto Internet Segura com Perspectiva Crítica de Gênero também alerta para o uso das redes sociais e a publicação de conteúdos de crianças e adolescentes. 

— O grande perigo reside na perda irreversível de privacidade, uma vez que o conteúdo é publicado na internet, ele pode ser replicado e levado para ambientes menos regulados, como fóruns, onde não há controle algum. Mesmo que o conteúdo seja apagado da plataforma original, ele pode permanecer e ser reproduzido em outros locais, gerando consequências tanto no presente como no futuro dessas crianças, afetando sua saúde mental e até mesmo suas futuras carreiras — explica.

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Além disso, a professora alerta que a linha que separa o mundo digital do real tornou-se tênue, quase inexistente, e é nesse contexto que a violência digital se manifesta de formas cada vez mais complexas. 

— A educação sobre os direitos e sobre o que acontece no mundo digital é muito importante, porque a criança vai poder reconhecer que o que está sendo feito com ela pode ser uma violação aos seus direitos — aponta.

Adultização x Exploração sexual 

A adultização pode ultrapassar ainda mais o limite e se transformar em crime. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a indução de sexualização precoce com conotação erótica ou pornográfica é enquadrada como exploração sexual infantil ou produção de material de pornografia infantil. 

Em 2024, o Brasil registrou crescimento de 14,1% de produção ou distribuição de material de abuso sexual de crianças e adolescente, conforme o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado 2025. Ao todo, foram 3.158 ocorrências, sendo que a maioria dos casos ocorreu nas faixas etárias de 5 a 9 anos (+26,8%) e de 0 a 4 anos (+21,2%). 

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Conforme o promotor de justiça Mateus Minuzi, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), ao expor crianças a pressões e expectativas adultas, a adultização ameaça o direito ao desenvolvimento integral, garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e cria cenários de vulnerabilidade física, emocional e social.

— Cada fase da vida de uma pessoa tem suas peculiaridades e quando uma criança começa a se comportar como se fosse uma adulta, fazer danças sensuais em rede social, isso certamente vai impactar a estrutura psíquica dela, seus relacionamento e o desenvolvimento geral — pontua o promotor.

O dever de dirigir a educação do filho e garantir seu pleno desenvolvimento e segurança é imposto pelo ECA e pelo Código Civil. Assim, pais, mães ou guardiões são responsabilizados não apenas por atos intencionais de exposição, mas também por omissão e negligência. 

— Alegar desconhecimento ou falta de acompanhamento não é uma justificativa aceita legalmente, pois o responsável tem o dever de supervisão, de acompanhamento, orientação e de estabelecer os limites do que pode ou não pode — afirma

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O não cumprimento desses deveres pode acarretar medidas de proteção aplicadas pelo Conselho Tutelar, como orientações e advertências, ou, em casos mais graves, a aplicação de multas de três a vinte salários mínimos, conforme o Artigo 249 do ECA. 

Nos cenários mais severos, onde há exploração sexual por terceiros ou pelos próprios pais, pode-se configurar crimes como a produção de material de pornografia infantil ou estupro de vulnerável, com penas que podem variar de 8 a 20 anos. E não é apenas quem produz o conteúdo que pode ser responsabilizado criminalmente.

— Quando uma pessoa salva o conteúdo, dá like, comenta, manda para outras pessoas, ações que aumentam a distribuição do conteúdo por meio dos algoritmos, também está em conflito com a lei e pode ser responsabilizada criminalmente por isso — diz.

Para denunciar adultização ou exploração sexual infantil, os canais mais indicados são o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a Polícia Civil, o Disque 100 e em caso de vídeos nas redes sociais, a denúncia pode ser feita na própria plataforma onde a publicação foi realizada.

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