João Pedro tinha 11 anos quando chegou em casa da escola e pediu que a mãe preparasse um bolo de cenoura. O que Jéssica Lamin não imaginava, nem no pior pesadelo, é que o filho jamais chegaria a ver a receita sair do forno naquela tarde de 23 de maio. Em uma reviravolta repentina, o primogênito, de saúde boa, morreu. E no momento de maior dor para a família, ela e o marido, Samuel, disseram “sim” à doação de órgãos. A decisão não reduziu a tristeza provocada pela ausência do garoto, mas trouxe outro contorno à história.
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Jéssica e Samuel ainda são tomados pela emoção ao recordar o momento em que o menino entrou em casa se queixando de forte dor de cabeça. O pai o colocou no carro e levou para o Hospital Ruth Cardoso, em Balneário Camboriú. Ao chegar lá, já desacordado e após ter convulsionado no caminho, um exame constatou um Acidente Vascular Cerebral (AVC). João Pedro chegou a ser intubado, passou por cirurgia e, apesar dos esforços médicos, teve morte cerebral constatada alguns dias depois.
Era o trágico 29 de maio de 2023.
Os pais do garoto nunca tinham conversado sobre doação de órgãos, embora sempre achassem a atitude bonita quando viam reportagens. Evangélico, o casal diz ter se questionado sobre o que Jesus faria naquela situação, e então concordaram. João tinha uma má formação nas veias e ninguém sabia, só um exame poderia detectar o problema. Hoje, o coração, os rins e o fígado dele dão vida a desconhecidos e isso é um acalento.
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— É um momento de muita dor. Mas se a gente tivesse a oportunidade de receber um órgão que tirasse nosso filho daquela situação, nós íamos querer. Então seria hipocrisia dizer não. E ficamos felizes por saber que outros conseguiram viver por isso — reflete Samuel.
Os “sim” das famílias de Santa Catarina, como ocorreu com Jéssica e Samuel, colocam o Estado em posição de destaque, com a segunda menor taxa de recusa à doação de órgãos no Brasil. Dados publicados em abril deste ano pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos mostram que, em 2024, apenas 32% dos familiares de potenciais doadores não permitiram que os órgãos de um parente fossem doados em 2024. Isso significa três negativas a cada 10. Apenas o Paraná tem percentual melhor, na casa dos 28%.
Indicadores de níveis europeus
Os indicadores de Santa Catarina colocam o Estado mais próximo dos números obtidos na Espanha, que é referência no tema, do que com os do Brasil. No ano passado, a taxa de recusa em solo verde e amarelo ficou em 46%, enquanto no país europeu é na ordem de 10%. Mas como SC chegou a esse resultado? Joel de Andrade, coordenador Estadual de Transplantes de Santa Catarina, diz que o segredo foi investir em treinamento das equipes hospitalares para acolher melhor as famílias que acabaram de perder um familiar. Não existe improviso, amadorismo ou falta de empatia, frisa ele ao citar que a doação nasce da solidariedade.
— Em 2007, a taxa de recusa em Santa Catarina era de 70%. Em 2010, Carmen Segovia, então coordenadora da Organização Nacional de Transplantes da Espanha veio ao Estado para fazer um treino com os nossos profissionais. Se entendeu que a questão não era sensibilizar as famílias para a doação, mas saber como abordá-las no momento de luto — afirma.
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Atualmente, Santa Catarina tem 2,4 mil profissionais treinados em comunicação de situação críticas. E tão importante quanto a capacitação, é que elas ocupem os cargos certos dentro dos hospitais, pois são médicos e enfermeiros que cuidam desde a detecção da morte encefálica até a entrevista familiar para o aval da doação, explica Joel.
— Enquanto em muitos lugares do mundo as pessoas estão vislumbrando o receptor do órgão como o principal beneficiário dessa cadeia, na Espanha eles já entenderam há muito tempo que a família que doa é a maior beneficiada com isso. Elas conseguem ressignificar a morte e nos contam isso — afirma o coordenador.
Taxa de recusa de doação de órgãos 2024
- Espanha 10%
- Brasil 46%
- Santa Catarina 32%
Taxa de doadores efetivos em 2024
- Espanha 49,3 pmp (por milhão de população)
- Brasil 18,6 (por milhão de população)
- Santa Catarina 39,3 (por milhão de população)
Um coração em outro peito
Jéssica e Samuel nunca foram atrás de informações sobre para onde tinham ido os órgãos do filho. Conforme a lei federal 9.434/1997, isso é inclusive proibido, para evitar vínculos nocivos. Mas em alguns casos as famílias acabam se encontrando, muitas vezes por causa de conexões feitas nas redes sociais. Embora não tenha confirmação oficial, a família de Camboriú acredita que o coração de João Pedro hoje bate no peito de Lavínia, uma garota de 12 anos, de Minas Gerais.
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A aproximação entre as duas famílias começou pela internet, foi lenta para respeitar os sentimentos de cada um. Até que no fim de 2023 ocorreu o primeiro encontro. Um vídeo compartilhado nas redes sociais mostra a emoção, a saudade e a gratidão envolvidos (assista abaixo).
— Escutei o coração da Lavínia batendo. É muito emocionante e passa um filme na cabeça — conta Jéssica.
“É um coração lindo e perfeito”
Lavínia nasceu com cardiopatia congênita e enfrentou uma série de limitações durante a infância. Aos 10 anos, precisou ser internada em São Paulo e a única saída era receber um novo coração. Foram três meses na UTI e 42 dias na lista de espera por um transplante. A mãe da garota, Michelle Cruvinel, conta que algumas vezes surgiram corações, mas não havia compatibilidade.
Até chegar o de João Pedro.
— Eu lembro de que o doutor falou: “É esse, o coração é lindo e perfeito” — recorda Michelle.
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A família mineira fez da necessidade de Lavínia, uma luta de vida em prol da doação de órgãos que continua até hoje nas redes sociais. Em 2018, quando o Jornal Nacional, da Rede Globo, lançou a campanha “O Brasil que eu quero”, Lavínia tinha apenas três anos de idade e já sabia que em algum momento da vida o transplante seria necessário. Ela protagonizou um vídeo exibido no telejornal com uma mensagem especial:
“Olha para o lado. Tenha mais amor no coração. E avisa a sua família: “Sou doador de órgãos”.
No post sobre o primeiro encontro entre as duas famílias, em outubro de 2023, Michelle escreveu: “Eles [os pais e a irmã caçula] não conseguem explicar como dói a saudade do João Pedro, mas conseguimos sentir através do sorriso triste. Nós também não conseguimos explicar a emoção que é estar ao lado deles. Um olhar que transmite uma paz”.
Hoje a sala em Medeiros, no interior de Minas Gerais, tem uma série de porta-retratos que refletem o laço criado através da doação de órgãos.
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— No dia que a gente recebeu a notícia de que tinha o coração, foi uma mistura de emoções. A gente chorava de alegria pela Lavínia estar transplantada, e também de tristeza, pensando que tinha uma família que naquele momento enterrando o filho. Então eu acredito nos propósitos do João Pedro aqui na Terra, que veio para salvar várias crianças — afirma Michelle.
Hoje a pequena Lavínia estuda, corre, nada, tudo como sempre sonhou.
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