“Se não escrevo as coisas, elas não se completam. Terão apenas sido vividas.” À guisa de epígrafe, assim Annie Ernaux, laureada com o Nobel de Literatura nesta quinta-feira (6), abre seu livro mais recente, “Le Jeune Homme” (O jovem). Pode-se dizer que, na frase, está contida sua profissão de fé.
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Com a premiação, a Academia Sueca mais uma vez faz um reconhecimento ao valor da experiência e da não ficção dentro do ofício literário, que já havia afirmado ao premiar a belarussa Svetlana Aleksiévitch em 2015.
No entanto, agora o faz numa chave muito diferente – e, se quisermos, mais facilmente identificável como literária. Se a obra de Aleksiévitch se inscreve no quadro mais distanciado do jornalismo, trabalhando a partir do relato coletado, a de Ernaux, de 82 anos, parte do particular para tocar o coletivo.
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Ao reconhecer o trabalho da escritora francesa, o comitê destacou a coragem e acuidade clínica pela qual desvenda as raízes, as estranhezas e constrangimentos coletivos ligados à memória pessoal. De memória pessoal se trata a obra de Ernaux, e de seu trânsito para a inscrição na história.
“A imaginação não tem lugar nos meus livros”, disse a autora a esta repórter quando do lançamento de seus dois primeiros títulos no Brasil, “O Lugar” e “Os Anos”, pela editora Fósforo, no ano passado.
A recusa, pois, ao mecanismo mais associado à literatura, o da invenção, dá um nó na cabeça dos que insistem em associar o belo à ficção e a chamar de literatura somente o inventado. Em que lugar se encaixa a prosa de Ernaux, agora alçada ao mais alto patamar da condecoração literária?
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Ernaux não à toa é tida como precursora da autoficção, gênero dos romances que se nutrem de maneira pouco disfarçada da experiência pessoal, jogando com os limites da identificação entre personagem e autor, embora ela própria prefira catalogar como etnografia de si os títulos nos quais repassa sua vivência.
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Com “O Lugar”, livro de 1983 no qual, após a morte do pai, vendeiro em um vilarejo normando, retrata sua figura em paralelo à questão de sua ascensão social por meio da intelectualidade, ela inventou uma espécie de “romance de si” de cunho sociológico.
O livro, escrito em uma prosa descarnada, que comove sem nenhuma concessão ao sentimentalismo é, segundo a própria autora, aquele pelo qual se deve começar a ler sua obra.
Décadas mais tarde, seu pioneirismo nesse gênero encontraria ecos na obra de Didier Eribon e Édouard Louis. A genealogia é clara, como o leitor brasileiro pode comprovar em livros como “Retorno a Reims” (Âyiné), de Eribon, e “O Fim de Eddy” (Tusquets), de Édouard Louis.
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“La Place”, título original de “O Lugar”, tem um duplo sentido -a praça do vilarejo e também, como optou a tradução, o lugar. Escolha muito acertada se considerarmos a fagulha detonadora da inovação em Ernaux, que ela mesma localiza na obra de Pierre Bourdieu.
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Lido pela jovem professora em pleno movimento de 1968 e objeto de estudo tanto de Eribon quanto de Édouard Louis, Bourdieu explorou o conceito de lugar social e do deslocamento do sujeito em seus escritos. É o que Ernaux faz em sua literatura.
Aqui cabe, então, frisar um aspecto que não pode ficar de fora, que é o lugar da mulher.
Os limites de gênero e o seu questionamento são marcantes em sua obra, embora não sejam seu tema único. Como contraexemplo, podemos lembrar o registro que ela faz de visitas a um hipermercado da região metropolitana parisiense, em “Regarde les Lumières, Mon Amour” (Veja as luzes, meu amor).
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Ainda naquela entrevista no ano passado, a escritora reivindicou seu lugar de vanguarda na corrente feminista, a partir de “La Femme Gelée” (A mulher gelada). Nesse que foi seu terceiro livro, em 1981, ela percorre sua infância entre mulheres fortes e independentes, que a colocaram fora dos estereótipos da desigualdade de gênero.
No Brasil, foi recentemente publicado, sempre pela Fósforo, “O Acontecimento”, em que narra o aborto clandestino a que se submeteu em 1963. O livro, de 2000, foi transposto para o cinema por Audrey Diwan, adaptação que venceu o Leão de Ouro em Veneza no ano passado.
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“Le Jeune Homme”, lançado há pouco, recupera a experiência amorosa e sexual, aos 54 anos, com um estudante quase 30 anos mais jovem do que ela.
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“Como você pode sair com uma mulher na menopausa?” era a pergunta que, suspeita a autora, o amante ouvia dos amigos. Uma mulher na menopausa que busca ativamente, e obtém, o gozo.
Se o comitê do Nobel elogiou a coragem de Ernaux, certamente o fez pelo arrojo de renegar a imaginação mas também por notar a constância de sua inquirição dos limites sociais.
Quanto aos limites da ficção, estes talvez não estejam tão fixados. A própria autora teceu, na conversa com esta repórter, uma indagação que agora remetemos ao leitor.
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Mencionando a necessidade que demonstramos hoje, nas redes sociais, de nos colocarmos como “seres ficcionais”, procurando o tempo todo “inventar uma história”, ela afirmou que sempre quis separar bem da ficcionalização de si. “Mas será que, mesmo sem querer, a forma não é ficção?”.
* Reportagem de Francesca Angiolillo
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