A prefeitura de Florianópolis sancionou nesta segunda-feira (4) o projeto de lei que permite a internação involuntária de pessoas com dependência química ou transtornos mentais que vivem em situação de rua na cidade. A proposta partiu do próprio Executivo e tem gerado críticas por parte da oposição e de movimentos sociais. As defensorias públicas da União e do Estado chegaram a emitir recomendação para que o município não adote a internação psiquiátrica como política pública.
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Especialistas ouvidos pelo NSC Total defendem que a medida teria motivação política e que fere o artigo 5° da Constituição Federal, já que tira a liberdade individual de decisão.
Em relação ao argumento de inconstitucionalidade, o prefeito Topázio Neto (PSD) disse que os técnicos e outros especialistas consultados pelo Executivo acreditam na “constitucionalidade da medida”, batizada como “internação humanizada”, e que também creem que a ação trará auxílio para o trabalho.
Sobre a alegação de uso político como motivação para a criação do projeto, o chefe do Executivo municipal comentou que “os especialistas deveriam acompanhar a abordagem de rua por algumas semanas, nas noites de Florianópolis” para entender a situação, mas não entrou no mérito da acusação.
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Como vai funcionar a nova lei
Uma das principais críticas é de que o projeto não especifica se a medida vale também para crianças e adolescentes. Inclusive, a 9ª Promotoria de Justiça da Capital instaurou um inquérito civil solicitando à Câmara de Vereadores, à prefeitura e à Procuradoria Geral do município que detalhem se essa medida também será aplicada para menores de 18 anos, já que o texto não deixa isso claro e, caso abrangesse, seria ilegal. Questionado pela reportagem, o Executivo municipal argumenta que não há menores em situação de rua na cidade.
Conforme levantamento da prefeitura, atualmente, o número de moradores em situação de rua que vivem na Capital varia de 800 a 1 mil pessoas. O projeto, que passou na Câmara de Vereadores com 17 votos a favor e quatro contrários, será regulamentado via decreto. O governo municipal expõe que a intenção é de que a lei seja aplicada em “casos extremos”, em que a pessoa “está colocando em risco a própria vida ou a de terceiros”.
A proposta prevê que a internação pode se dar de forma consentida ou não. Em caso de não consentimento, a decisão pode ser tomada por um familiar ou responsável legal. Na falta deles, profissionais da área da saúde, assistência social ou de órgãos públicos ligados a políticas sobre drogas podem dar o aval. Nessas situações, o Ministério Público, a Defensoria e outros órgãos de fiscalização devem ser comunicados, em prazo de 72 horas.
Após ser retirada da rua, a pessoa será levada para a Secretaria de Saúde, onde passará pelo processo de desintoxicação e, em seguida, será encaminhada para um serviço de saúde mental. A internação terá um prazo máximo de 90 dias, tendo o término determinado pelo médico responsável. No entanto, a família ou o representante legal tem a possibilidade de requerer a interrupção do tratamento, a qualquer momento.
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Durante o período de internação, o texto cita que a prefeitura deverá manter “atendimento intersetorial” mediado pelas secretarias de Saúde, Assistência Social e Educação, visando preparar o paciente “para inserção na sociedade, no mercado de trabalho e/ou convívio familiar”. O município também ficará responsável tanto por desenvolver programas técnicos profissionalizantes como por custear o transporte de familiares que moram fora da cidade e queiram visitar os internados, a fim de “restabelecer vínculos”.
Após os três meses previstos, a prefeitura diz que, “possivelmente”, essas pessoas serão levadas para comunidades terapêuticas, e que a regulamentação dispõe sobre o encaminhamento para cada caso.
Cidadãos em situação de rua que já estão acessando outros espaços municipais, como abrigos, por exemplo, não serão enquadrados nesta lei, a não ser que haja determinação de profissionais da saúde.
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Especialista diz que medida é inconstitucional e higienista
Em julho de 2023, uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu em estados e municípios a remoção e o transporte forçados de pessoas em situação de rua. A liminar veio em resposta à medida de internação compulsória para combate ao crack adotada pela prefeitura de São Paulo.
Em Santa Catarina, a proposta da prefeitura de Florianópolis também deve esbarrar no STF, no entendimento de Vera Regina Pereira de Andrade, professora titular de Criminologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para a especialista, internação involuntária de usuários de drogas e de pessoas em situação de rua é uma medida inconstitucional, já que significa a privação de liberdade sem o devido processo legal.
A professora defende que as ações previstas no projeto são respostas “profundamente desumanas e simbólicas” ao problema enfrentado por esta população e que o projeto é “higienista” e “excludente”.
Ela pontua que, mesmo ao usuário flagrado fazendo o consumo de drogas e condenado pelo delito, por lei, é proibida a internação involuntária, por isso, define a proposta como “inconcebível”.
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— A motivação subjacente a esse projeto, como ao movimento mais geral de rejeição e retirada das ruas das pessoas em “situação de rua” não é jurídica, mas política, expressando ações de controle social preconceituosas, classistas e racistas excludentes, de “limpeza das ruas”. O projeto de lei não tem amparo da Constituição Federal e só se explica como exercício de poder e dominação sobre os mais fracos e vulneráveis, com toda a carga da violência e estigmatização que essas medidas de privação de liberdade implicam — argumenta.
Defesorias públicas entendem medida como “recurso extremo”
Enquanto o projeto de lei ainda tramitava no Legislativo, a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPSC) assinaram em conjunto um documento direcionado aos vereadores elencando orientações e fazendo críticas à proposta.
Os órgãos públicos também entendem a medida como “recurso extremo” e recomendam não adotar a internação psiquiátrica como política pública, mas priorizar o tratamento ambulatorial às pessoas em situação de rua, em sofrimento mental, ou com abuso de substâncias entorpecentes.
As instituições ainda citam problemas na estruturação e déficit em equipes dos serviços de referência, como Centro Pop e CAPS, e defendem o fortalecimento desses dispositivos sociais.
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“A legislação federal rompe com a lógica segregacionista de internação como centro da política de atenção à saúde. Nesse novo contorno legal, as internações são entendidas como recursos extremos, de curto prazo, aplicáveis somente quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, possíveis apenas após a submissão a tratamento ambulatorial”, cita o documento encaminhado à Câmara.
As críticas do movimento social
André Schafer, coordenador do Movimento Nacional em Defesa da População em Situação de Rua em Santa Catarina, diz que a lei tem cunho político e, tratando-se de uma legislação municipal, pontua ser inconstitucional dar à segurança pública o poder de gerenciar sanções de cunho social relacionadas à população vulnerável.
— Estamos em meses que antecedem o pleito eleitoral e usar a população vulnerável como massa de manobra se tornou hábito de alguns políticos para dividir opiniões e angariar mais eleitores — opina.
Schafer ainda argumenta que a medida traz insegurança e medo a todos que se encontram em situação de rua e que, na visão do movimento, a saída para auxiliar essas pessoas seria investir em políticas públicas efetivas e de qualidade, com ações planejadas que ouçam movimentos sociais, equipes de saúde, assistência social, gestores públicos e sociedade civil, além da implementação e ampliação de programas para redução de danos, como abertura de mais um Centro Pop (atualmente, há dois na cidade), e um consultório de rua descentralizado e humanizado.
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O que diz o prefeito
Para o prefeito Topázio Neto, com base na opinião de técnicos e especialistas consultados pela prefeitura, a lei não fere a Constituição, mas a complementa. Segundo o chefe do Executivo, a medida foi aplicada após o aumento de “casos de violência e importunação envolvendo pessoas em situação de rua” denunciados nos últimos meses.
— E é justamente aquele cidadão que não aceita nenhum tipo de ajuda. Alguém que está ameaçando outras pessoas, mas que há dificuldade também em enquadrar como crime — argumenta.
Além disso, Topázio destaca que o município tem um trabalho de referência no Brasil, “robusto e complexo”, que oferece abordagem humanizada e todo tipo de auxílio, como dormitório, alimentação, capacitação, apoio psicológico e de saúde e que, “ao contrário do que algumas pessoas imaginam, a lei não vai fazer o município sair recolhendo pessoas na rua”.
— No entanto, há pessoas que não conseguem mais responder por si, seja por transtornos mentais ou dependência química. Essas pessoas colocam a si e a outros em risco, com inúmeros casos de surtos envolvendo violência. É para essas pessoas, que até então pouco poderíamos fazer, que a lei serve — acrescenta.
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