Os prejuízos com as bets e jogos on-line podem ir muito além dos financeiros e deixar marcas para toda uma família. Estudos apontam que pessoas com transtorno de jogo podem ter até 15 vezes mais chances de cometer suicídio. Adriana Rafaela Corrente, professora de Joinville, viveu na pele esse drama, já que perdeu o filho para os jogos de azar.
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Leo, como Leonardo Lucio Pereira era carinhosamente chamado, era surfista, gostava de acampar, sair para lanchar com os amigos e amava o trabalho que tinha como sushiman. Porém, durante um período desempregado, em que havia perdido o movimento do dedo por conta de um acidente, começou a jogar.
A mãe acredita que Leo tenha começado a apostar há cerca de dois anos porque estava sem dinheiro. Para ela, o filho chegou a ganhar nas primeiras apostas entre R$ 500 e R$ 1 mil, o que o incentivou a continuar apostando.
— No início ganha, e ganha muito bem. A partir daí, esses jogos já te dão uma esperança, o que já está errado. Então, o Leo, se eu não estou enganada, no começo ganhava porque, às vezes, ele soltava, “ah, ganhei 500, ganhei mil”. Só que foi só por um tempo. Depois ele só perdeu. Tanto é que ficou todos esses meses patinando. Ele não ganhava, mas já estava tão fissurado que ele próprio não enxergava isso — conta a mãe.
Adriana descobriu só em abril de 2024 que o filho estava viciado em jogos de azar. Na época, chegou a pegar um empréstimo de R$ 10 mil para que Leo pagasse dívidas contraídas pelas apostas.
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— Foi naquele dia que eu soube que ele estava viciado em apostas e que para isso ele pegava dinheiro de outras pessoas para continuar jogando. No primeiro momento, o que a gente fez? Ele pediu ajuda e disse: “Mãe, me ajuda, um psiquiatra, uma terapia, alguma coisa assim?” No mesmo dia eu entrei em contato com uma terapeuta e a gente já conseguiu encaminhar ele para uma terapia de dependência. Assim, aparentemente, ele ficou bem por uns dois ou três meses — lembra Adriana.
Veja fotos de Adriana Corrente
Por conta dos empréstimos e outros problemas financeiros, a família havia ficado sem dinheiro e a mãe não tinha mais como pagar as terapias de Leo, que então foram suspensas. Como ele estava aparentemente melhor, Adriana não sabia que o filho voltaria a jogar.
— Em junho de 2024, as minhas contas foram bloqueadas por um processo de divórcio que eu tenho. E aí eu fiquei sem dinheiro. Não tinha mais, eu não tinha dinheiro para nada. Só para comprar o alimento básico de casa — conta Adriana.
Leo não contou para a mãe que tinha voltado a jogar, mas ela desconfiou por conta do comportamento do filho. Ele, que costumava ser alegre e brincalhão, passara a ficar mais nervoso, angustiado e agitado.
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— Quando eu ia conversar com ele sobre isso, ele ficava angustiado, porque não conseguia sair das apostas. Eu percebia, era nítido, sabe? A pessoa que ele era se transformava — conta a mãe.
No final de julho, Adriana chegou a antecipar o 13º salário para pagar mais uma dívida do filho. A mãe acreditava que tinha dado fim aos débitos. Nos últimos dias do mês, Leo estava mais contente, fazia planos de se mudar para Portugal com a irmã, que já morava na Europa. Queria voltar a ser guarda-vidas na praia e ajudar os avós.
— Ele era um cara bacana, todo mundo gostava dele, estava sempre brincando, sempre sorrindo. Ele tinha um coração gigante — lembra a mãe.
Com lágrimas nos olhos, Adriana conta que foi no dia 4 de agosto de 2024 que perdeu Leonardo. Acordou cedo na manhã de uma quinta-feira e não ouviu o filho no quarto. Achou que estivesse dormindo. Pouco tempo depois descobriu que Leonardo tinha tirado a própria vida. A mãe acredita fielmente que foi por conta das dívidas das apostas e da falta de perspectiva de sair daquela situação.
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— Eu acredito mesmo que ele estava angustiado, que ele queria acabar com aquilo e não conseguia — conta a mãe, em meio às lágrimas.
Ainda hoje, Adriana recebe mensagens de promoções de jogos on-line, e denuncia todas as publicações e propagandas que vê. No coração, ficou a saudade do filho e a revolta por quem incentiva jogos como o Fortune Tiger, o famoso “jogo do tigrinho”, e bets esportivas.
— Não é uma questão de “joga quem quer”. A partir do momento que eles mostram que você pode ficar rico, que você vai ficar milionário, que você vai comprar um carrão, as pessoas influenciam — diz Adriana, com revolta.
A mãe que perdeu o filho para as bets espera que, de alguma forma, esses jogos tenham regras mais rígidas no país. Também acredita que a mudança pode começar com as pessoas deixando de propagar os jogos. Para ela, é importante alertar as famílias sobre o risco dos jogos e a importância do tratamento.
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— A terapia deu uma boa ajuda para ele. E é isso que talvez me doeu mais, de eu não poder ter feito mais porque não tinha dinheiro. Porque eu acho que se ele tivesse continuado, ele estaria aqui hoje — diz a mãe.
Um ano depois da partida de Leo, o que mais permaneceu foi a saudade. O quarto dele ainda está mantido do mesmo jeito. Na decoração da sala, uma prancha com o rosto dele pintado, feito por amigos. Nos retratos, a lembrança do jeito alegre e divertido. Na vida, a luta para seguir em frente e ajudar outras pessoas que enfrentam o mesmo problema de dependência, sempre acompanhada da pergunta:
— Quando essa realidade vai mudar?
Risco de dependência renova fenômeno antigo
O risco representado pela dependência em apostas e jogos virtuais não chega a ser um fenômeno novo. Os antigos bingos, as máquinas de caça-níquel e o jogo do bicho são roupagens mais antigas dos jogos que também provocavam prejuízos. No entanto, ao longo do tempo, a proibição levou essas práticas à clandestinidade e dificultou o acesso a elas, reduzindo a procura dos interessados.
No caso das bets e dos atuais cassinos on-line, as novidades mais recentes estão na popularização das plataformas e na legalização da atividade. A Lei das Bets, aprovada no fim de 2023 e em vigor desde janeiro de 2025, permitiu que empresas de apostas atuem legalmente no país desde que cumpram alguns critérios, como ter sede em território nacional, pagar uma outorga ao governo e operar apenas com Pix, transferência ou cartão de débito. Uma alíquota de 12% sobre o rendimento bruto das apostas também foi definida pelo governo federal — que chegou a tentar aumentar essa taxa para 18%, mas teve a proposta derrubada no mês passado pelo Congresso Nacional.
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O imposto atual já rendeu R$ 6,8 bilhões aos cofres do governo federal em arrecadação entre janeiro e setembro. Uma lista atualmente com 187 bets autorizadas a atuar no Brasil é divulgada no site do Ministério da Fazenda. Outras atividades, como jogo do bicho e bingos e cassinos físicos, até são alvos de projetos no Congresso Nacional que almejam à legalização, mas permanecem proibidos no país.
A legalização dos jogos on-line, somada à popularização dos sites em razão da propaganda constante e ao fácil acesso — já que estão a todo instante disponíveis na tela do celular — são fatores apontados como agravantes que explicam o aumento de casos críticos de dependência e transtorno de jogos.
A psicóloga Elizabeth Carneiro, especialista em dependência química e comportamental e uma das referências em tratamento de transtorno do jogo no país, confirma um aumento de atendimentos no consultório e relaciona o caso com a liberação da atividade das bets no país.
— Quando os bingos fecharam, os grupos de tratamento de dependência esvaziaram. O fato de ser legal faz diminuir a percepção de risco da população. Há uma sensação de que “não tem problema”, e isso vem acontecendo agora. Muitos meninos, por exemplo, nas bets esportivas, começam a jogar com seus próprios pais. Têm contas abertas para o jogo em nome do pai. Porque quando algo é legalizado, a percepção de risco diminui. Então, a tendência agora é o jogo ser um comportamento um pouco mais prevalente — afirma.
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Confira dados
- 7,3% da população adulta brasileira apresenta características de jogo de risco ou problemático;
- Em todo o país, 25,9% das pessoas já apostaram ao menos uma vez na vida;
- 17,6% tinham apostado no último ano do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgado em abril deste ano.
O que faz as bets e os jogos serem tão viciantes?
Mesmo antes das mudanças de legislação as apostas e jogos on-line já vinham registrando aumento de usuários. A explicação passa pelo grau de dependência que eles são capazes de provocar. A psicóloga Elizabeth Carneiro, diretora do Espaço Clif, no Rio de Janeiro, explica que quanto mais rápido o reforço positivo de uma prática ou substância, maior o risco de dependência. Na tradicional máquina de caça-níquel, por exemplo (que continua proibida), a resposta entre o disparo e a recompensa em caso de acerto é sempre rápida, em uma lógica reproduzida nos cassinos on-line.
— Onde tem celular, tem cassino na mão. Então, ele vai conseguindo jogar em várias áreas ao mesmo tempo — resume a profissional.
Para o ex-jogador Thiago*, o estímulo maior vinha em uma hora específica do jogo no celular.
— A minha emoção maior era quando vinha a mensagem de notificação de “jogada grátis”, o bônus, ou um grande prêmio. “Cem vezes o valor da sua aposta”. Essa era a minha grande emoção. Por isso era difícil eu sacar o valor recebido. Quantas vezes eu falei: vou sacar quando chegar em R$ 1.000. Aí eu ficava, e o valor baixava de R$ 1.000 — relembra o jogador, sobre o ciclo de perdas durante os jogos.
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O médico psiquiatra Mário João Bisi Junior explica que o sistema de recompensa no caso dos jogos é semelhante ao de uso de uma droga, em que inicialmente a pessoa sente um prazer, mas ao longo do tempo pode começar a ter prejuízos e sofrimento.
— É uma droga e não é nova. Apostas existem desde sempre. A questão é a vulnerabilidade de algumas pessoas. A bebida é uma coisa ruim? Não necessariamente. A pessoa que tem problema de alcoolismo não pode beber. A gente coloca os jogos da mesma forma. Tem aquela pessoa que vai conseguir jogar e vai ficar tudo bem, vai conseguir se divertir com aquilo, mas tem aquela pessoa que é suscetível, que não vai conseguir ter esse freio e vai ter prejuízos — avalia.
Dois tipos de jogadores
Dois tipos básicos de jogador se destacam no perfil dos pacientes, segundo a psicóloga. Um é o chamado buscador de emoção, em que há maior predomínio do público masculino. É o que gosta de estar com todas as fichas na mesa e sentir a excitação, a euforia e o frio na barriga. O outro perfil clássico de jogador, conforme a profissional, seria o que busca nos jogos a fuga de problemas. É quem busca nesta prática um escape para emoções negativas, problemas familiares ou de relacionamento. Esse grupo já costuma ser composto tanto por homens quanto por mulheres. Há, ainda, usuários que recorrem às apostas para lidar com problemas como a solidão ou que acreditam nas próprias habilidades para “levar a melhor” nas disputas.
Em geral, segundo Elizabeth Carneiro, as pessoas mais vulneráveis ao risco da dependência em apostas e jogos on-line são as que têm valores de vida muito ligados ao dinheiro. São pessoas que, em alguns casos, já foram muito humildes e sonham com a ascensão social ou um salto patrimonial grande, que pode ser representado pelas promessas de multiplicação das apostas.
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