Era o primeiro sábado de janeiro. Na praia da Solidão, no Sul de Florianópolis, banhistas riam e aproveitavam o calor do verão sob o sol de mais de 30ºC. A poucos metros dali, do outro lado da rua, a alegria do fim de semana se transformou em luto. Era por volta das 9h30min quando a Polícia Militar bateu na casa de Ernesto Schmidt Neto, de 48 anos. Foi em questão de minutos — e praticamente no mesmo endereço — que o som ambiente de um dia ensolarado de praia dava lugar ao barulho de gritos e tiros. De um lado, enquanto a água do mar varria a areia, o sangue de Betinho, como era conhecido na região, escorria no chão da casa.
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Segundo a PM, a morte de Betinho, conhecido também como o “Anão da Solidão”, foi um confronto — um dos 15 registrados na Capital catarinense até 31 de maio de 2025. A polícia afirma que o homem estava armado com uma faca e uma pedra, dentro da própria casa, quando a equipe entrou no imóvel após um desentendimento dele com a inquilina.
Leia a segunda reportagem da série: Grande Florianópolis lidera número de mortes em confronto com a polícia em SC desde 2022
Dois anos antes, na outra ponta da Ilha, outro suposto caso de confronto policial. Era uma noite de maio de 2022 quando Gabriel Correa da Silva Piazzolli saiu de casa, nas Dunas dos Ingleses, para buscar uma marmita. No caminho, encontrou os amigos, mas também a PM. Foi morto com um tiro no peito. Os policiais alegam que o jovem, que tinha 19 anos na época, estava armado e em um ponto de tráfico.
Ambos os casos foram registrados como “mortes em confrontos policiais”, embora as famílias questionem as versões dos agentes. Para Mariana*, filha de Betinho, foi usada força desproporcional contra o pai, um homem com nanismo, de cerca de um metro de altura, que estaria segurando uma faca contra as armas de longa distância dos policiais. Inclusive, vizinhos teriam se disposto a intervir para acalmar Betinho, que teria problemas de saúde mental, mas foram impedidos pela PM.
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No outro caso, a mãe de Gabriel, Luiza*, alega que o filho não estava armado. Os casos foram arquivados após investigação da Polícia Civil e recebimento do Ministério Público, que, com a falta de testemunhas, entenderam haver legítima defesa dos agentes. Em ambas as ocorrências, as famílias afirmam que ninguém quis depor a favor das vítimas com medo da retaliação dos policiais militares.
Betinho e Gabriel estão entre as 481 pessoas que morreram em supostos confrontos com a Polícia Militar entre janeiro de 2019 e maio de 2025 em Santa Catarina — só na Grande Florianópolis, foram 161. Dados da Secretária de Segurança Pública (SSP) demonstram que houve uma crescente nos números. De 1º de janeiro até 31 de maio de 2025 foram 44 mortes de suspeitos no Estado — um crescimento de 10% em relação ao ano passado, quando foram 40 óbitos no mesmo período.
Para a Polícia Militar de Santa Catarina, o número de confrontos policiais não aumentou de forma significativa. Além disso, alegou que vem intensificando suas ações preventivas e operacionais, alcançando recordes históricos na apreensão de drogas e armas, o que contribui para o reconhecimento de Santa Catarina como o estado mais seguro do país.
Especialistas como advogado e autor do livro “História da Polícia no Brasil”, Almir Felitte, no entanto, apontam que o Estado tem investido na segurança pública com repressão policial sem intervir em outros direitos constitucionais, como lazer, educação, saúde e saneamento básico, o que interfere nos índices de qualidade de vida da população, deixando as pessoas à margem e em vulnerabilidade social — o que pode contribuir para o aumento de ocorrências.
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Guilherme Stinghen Gottardi, vice-presidente da Comissão de Segurança, Criminalidade e Violência Pública da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em SC, aponta que o aumento nas mortes decorrentes de confrontos pode ter ligação com os crescentes confrontos entre as próprias facções criminosas. Mas, ainda que Santa Catarina tenha registrado recentemente um aumento na violência policial, como evitar esse caminho que coloca em risco a vida de policiais e civis? A resposta vai além da segurança pública.
Grande Florianópolis lidera número de mortes em confronto com a polícia em SC desde 2022
Mortes em supostos confrontos pelas polícias Militar ou Civil
Falta de depoimentos causa arquivamentos
Betinho morava na praia da Solidão, praticamente em frente ao mar, em um terreno com duas casas. Enquanto vivia no andar de cima de um dos imóveis, os outros espaços eram alugados para inquilinos fixos ou que aproveitavam a temporada de verão. Foi, inclusive, por conta de uma confusão entre ele e uma dessas pessoas que Betinho acabou sendo morto no dia 4 de janeiro deste ano.

A filha Mariana conta que, naquela manhã, o pai foi tirar satisfações com a inquilina por conta da falta do pagamento do aluguel. Ele já havia pedido que ela fosse embora em outra ocasião, o que não surtiu efeito.
— Ele tinha um pouco mais de um metro de altura e as pessoas não davam bola, tipo, “está me mandando embora, vai fazer o quê?” Ele tentava de toda forma passar algum tipo de intimidação para a pessoa, seja falando alto, seja pegando alguma coisa, porque só falando não adiantava, ninguém levava a sério ele pelo tamanho dele. Aí a inquilina não ia embora. Eu acho que o ápice foi que ela trouxe a família dela para passar o verão aqui, morar de graça. Aí pronto, ele explodiu — lembra.
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Durante a discussão, Betinho, ao bater na mesa, derrubou café no colo da inquilina, o que foi visto como uma forma de violência pela mulher. O bate boca seguiu até que, nervoso e para se impor, o homem teria pego uma faca de serra e ameaçado a mulher para que deixasse a casa. Neste momento, ela chamou a Polícia Militar e Beto subiu as escadas de volta para casa.
Segundo a filha, a PM foi até o local no momento em que a discussão já tinha terminado. No entanto, a inquilina teria dito que Betinho estava armado com uma faca e que ela estava com medo. O policiamento tático foi chamado em seguida.
— Daí a partir do momento que ele viu que estavam chegando policiais e eles ficaram ali na frente, ele se trancou. Tanto é que, depois, a porta ficou totalmente arrombada. Ele não queria conversar — diz a filha.
Betinho tinha passagens policiais por crimes como ameaça e dirigir sob efeito de álcool, mas era conhecido na região — por isso, os vizinhos e amigos já saberiam como lidar com ele. Inclusive, no dia em que foi morto, o grupo perguntou aos policiais se eles queriam ajuda para tentar acalmar o homem, que tinha epilepsia e questões de saúde mental. Porém, conforme a filha e um amigo da família, eles foram impedidos. Foi neste momento que o Tático teria chego no endereço, já com armas em punho.
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— A polícia falou que ele saiu na sacada e ameaçou jogar uma pedra nos policiais. Só que detalhe: a sacada era quase o tamanho dele, ou seja, o braço dele vem até aqui (faz um movimento curto com as mãos). Qual seria a verdadeira ameaça para a polícia, se ele jogasse? Primeiro que eu acho que ele não ia nem conseguir jogar a pedra de lá. Qual seria a verdadeira ameaça? Aí, dali deram um tiro de bala de borracha que pegou no teto da sala. A partir disso, ninguém viu Beto, só os policiais falaram que viram ele saindo na sacada com uma pedra — cita a filha.
A PM teria, então, arrombado a porta da casa de Betinho, subido as escadas e, segundo a versão policial, sido surpreendida pelo homem segurando uma faca e uma pedra, uma espécie de lajota. Foi neste momento que os policiais apertaram o gatilho mais de uma vez. Um vídeo, divulgado na época, mostra o momento em que os disparos foram ouvidos pela vizinhança.
Com lágrimas pelo rosto, Mariana mostra o local onde o pai foi morto com quatro tiros, dentro de casa, além da marca da bala que ficou alojada na parede. A família não tinha voltado para o imóvel até então.
— Quatro tiros, todos na parte superior do corpo, para imobilizar uma pessoa? Como que o Tático que, justamente, tem mais capacidade de lidar com a situação, imobiliza uma pessoa de um metro com quatro tiros no tórax? — questiona a filha com indignação, ainda aos prantos.
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Mariana diz, ainda, que o Samu demorou a chegar e que os policiais não teriam oferecido socorro ao homem. De acordo com a filha, uma amiga chegou a subir para ver Beto e identificou que ele respirava. Entretanto, quando o atendimento chegou, ele já estava sem vida.
A filha não estava no local quando tudo aconteceu, mas ouviu todo o relato de vizinhos e amigos, que acreditam que o desfecho poderia ter sido diferente caso pudessem ter intervido para acalmar o amigo.
O caso do “Anão da Solidão”, como ele era conhecido, foi investigado pela Polícia Civil de Florianópolis. Entretanto, com medo de retaliações, ninguém quis depor em favor da vítima, diz.
Diante de uma única versão e, também das perícias, o delegado Ênio Mattos, que ficou à frente da investigação, apurou que Beto estava armado e ofereceu perigo, tendo os policiais agido em legítima defesa. Por isso, o caso foi para o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) sem indiciamento dos responsáveis pelos disparos. Após apreciação do promotor, foi arquivado. Conforme Geovani Werner Tramontin, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MP, é comum que inquéritos desse tipo sejam arquivados devido à falta de depoimentos que defendam a versão da vítima.
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Mesmo após o arquivamento do caso, a família tenta através de um advogado, desarquivá-lo e levar o policial militar a júri. Procurada, a Polícia Militar de SC não quis comentar o caso.
O que explica o uso da força pela polícia
A Polícia Militar foi constituída para a repressão e controle social desde sua criação, explica o advogado e autor do livro “História da Polícia no Brasil”, Almir Felitte. Quando houve a abolição da escravidão e as pessoas foram libertadas sem nenhum apoio do governo federal, acabaram ficando à margem da sociedade, muitas sem moradia ou trabalho.
— O sistema de segurança pública brasileiro é historicamente baseado em leis penais para muita arbitrariedade da polícia, que tem um poder muito grande de decidir a partir de leis que são colocadas de forma muito aberta. Isso começou lá com a lei de vadiagem no século 19. O crime era basicamente a pessoa não ter trabalho e não ter um teto. A coisa mais arbitrária possível. Era época em que a escravidão estava sendo encerrada sem qualquer política de trabalho, emprego e moradia para as pessoas negras — conta Felitte sobre a repressão contra a população preta já naquela época.
Para o especialista, este é um padrão que até hoje se repete, inclusive com as leis sobre drogas. Almir explica que, desde 1970, quando surge o tema, a lei penal segue muito abrangente.
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— É muito genérica. Os indícios de traficância que são usados pela polícia, quem já trabalhou com justiça criminal, sabe muito bem do que eu estou falando. Existem frases padrões que os policiais usam para enquadrar qualquer pessoa na lei de drogas. ‘A pessoa estava com comportamento que indicava indícios de traficância’. Mas o que seriam esses indícios? — questiona.
Polícia ganha mais representatividade
Almir fala que houve um aumento na repressão policial em todo o Brasil, principalmente porque, além de ser um órgão estatal, a Polícia Militar acabou ganhando representantes em outras instâncias. Ou seja, a PM não age apenas com o controle social histórico, mas também no controle político e civil, inclusive com representação dentro do Congresso Nacional, participando da construção de leis, por exemplo.
— A partir desse processo, de maior autonomia, é uma polícia cada vez mais fora do alcance de qualquer mecanismo de controle civil e você tem uma polícia que vai cometer mais abusos, vai cometer mais violências, protegida por uma impunidade cada vez maior — exemplifica.
A psicóloga Maíra Marchi Gomes explica, ainda, que a população mais afetada pela falta de políticas públicas acaba sendo a classe socioeconômica menos favorecida, o que inclui jovens, negros e periféricos. Ela aponta que, para além da ação policial, a sociedade civil também tem responsabilidade sobre todo o tipo de violência que pode atingir a população mais pobre
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— Temos ao lado disso um discurso repressivo que convida a sociedade civil a não ser parte de uma solução de um problema. Você vê uma sociedade individualizada — cita.
Segundo Felitte, a violência e a criminalidade são resultado de vários problemas e, portanto, teriam soluções diferentes. Além disso, cita que, em muitos casos, essa violência não tem relação com as instituições policiais, mas com outras formas de violações de direitos: falta de moradia, saúde e educação, por exemplo.
— A gente, enquanto sociedade e Estado, tem colocado a polícia para resolver problemas que não são necessariamente policiais. Várias vezes a gente vê o Estado colocando a polícia para resolver problemas que são de saúde mental, de falta de moradia, de pessoas em situação de rua, em conflitos escolares. Quando a gente faz isso, estamos incrementando um estado policial que não é bom na nossa democracia ou para resolver problemas — comenta.
A psicóloga Maíra complementa que a própria polícia é capacitada para agir com repressão na maioria dos casos:
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— Nossa sociedade está pregando esse discurso de resolver pela violência, mas a solução seria, ao meu ver, não só em termos preventivos, uma mudança cultural no sentido do que a gente acredita que é solucionar conflitos.
O fim do uso das câmeras corporais
Santa Catarina foi o primeiro estado brasileiro a incorporar as chamadas “câmeras corporais”, que filmam as ocorrências de policiais em ação. O projeto, lançado em agosto de 2019, foi feito em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado (TJSC) onde parte dos recursos vieram do fundo reparador do órgão. Entretanto, depois de pouco mais de cinco anos, houve o encerramento do uso do dispositivo. Entre as justificativas para o fim temporário do programa estão problemas operacionais e falta de recursos financeiros, conforme informou a PM em setembro do ano passado.
Em um despacho, a Polícia Militar determinou o recolhimento e baixa de todas as câmeras, além do início de um estudo para “soluções tecnológicas mais adequadas aos interesses institucionais e à preservação da ordem pública”. O documento também previa a busca por alternativas de financiamento para um novo programa de monitoramento. A recomendação, segundo a PM, ocorreu após diagnóstico interno que indicou que havia problemas no programa. O impasse incluía a manutenção das câmeras, que não é mais feita pela empresa que forneceu os equipamentos, falta de armazenamento adequado de imagens e instabilidade de acionamento — câmeras que, mesmo acionadas, não gravavam.
O coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do MPSC, Geovani Werner Tramontin, afirma que o órgão vem marcando reuniões com a Polícia Militar para tentar resolver o impasse.
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— O MP é plenamente favorável ao uso de câmeras corporais porque a ciência comprova que ela é efetiva na diminuição da letalidade penal — aponta.
Conforme Tramontin, as câmeras protegem não só a população contra possíveis abusos, mas os próprios policiais que podem ser acusados de violências de forma injusta e, tendo o dispositivo, podem provar inocência. No caso de Betinho e Gabriel, não há informações se os agentes usavam câmera de monitoramento no momento da abordagem.
Sobre o tema, a PM informou, em nota, que já divulgou amplamente os encaminhamentos adotados e que, assim que novas soluções forem viáveis, a corporação fará os devidos anúncios. Os prazos, no entanto, não foram informados. Já a SSP disse à reportagem que o aumento nas mortes por intervenção de agentes do Estado é uma “inevitável resposta contra criminosos armados e de alta periculosidade”.
Veja a nota da Polícia Militar na íntegra
“A Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC) considera que o número de confrontos policiais não aumentou de forma significativa, conforme mencionado em seu questionamento. Por esse motivo, encaminhamos esta resposta por escrito, sem vislumbrar a necessidade de prolongar o assunto. A PMSC vem intensificando suas ações preventivas e operacionais, alcançando recordes históricos na apreensão de drogas e armas, o que contribui para o reconhecimento de Santa Catarina como o estado mais seguro do país. Destaca-se a queda em 22% no número de mortes violentas, atualmente com um dos menores patamares do índice de homicídio da série histórica. Em relação às câmeras corporais, a PMSC já divulgou amplamente os encaminhamentos adotados sobre o tema. Assim que novas soluções forem viáveis, a corporação fará os devidos anúncios. Dessa forma, os resultados, reconhecidos pela sociedade catarinense como positivos, qualificam o efetivo da PMSC para desempenhar suas funções operacionais e administrativas da melhor forma possível”.
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Confira a nota da SSP na íntegra
O trabalho ostensivo das forças policiais no combate à criminalidade tem produzido resultados extremamente positivos nos últimos anos em Santa Catarina, a exemplo dos inúmeros recordes computados no primeiro semestre de 2025. Com destaque para as quedas nos indicadores de mortes violentas, homicídios e roubos que, nos seis primeiros meses do ano, superam todos os resultados da série histórica.
O aumento das mortes por intervenção legal de agente do estado (MILAE) surge como uma inevitável resposta do trabalho policial contra criminosos armados e de maior periculosidade. Nos esforços contra a violência, em especial no combate ao tráfico de drogas, roubos e homicídios, as forças policiais são inúmeras vezes recebidas com resposta armada e são alvos de atentados contra a vida, gerando a necessidade de agir em legítima defesa. Prova disso, no primeiro semestre de 2025, cerca de 70% dos mortos em confronto com a polícia tinham antecedentes criminais relevantes, tais como crimes contra a vida, tráfico de drogas, crimes contra o patrimônio e porte ilegal de arma de fogo.
A Secretaria da Segurança Pública reforça que as Polícias Militar e Civil de Santa Catarina têm caráter humanitário e, acima de tudo, atuam na defesa da vida e na proteção dos cidadãos, incluindo os agentes de segurança que diariamente arriscam suas vidas para garantir a ordem social.
*Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar suas identidades.
                                    
                            
                            




