A generosidade é comum nas famílias quando elas têm de decidir sobre a doação. É o que conta uma integrante da Comissão Hospitalar de Transplantes do Hospital Santa Isabel, em Blumenau. O nome dela é mantido em sigilo para não criar estigmas em torno da função que desempenha. Cabe a equipe dela acompanhar as famílias desde o momento da entrada do paciente no hospital, explicar o diagnóstico, orientar, tirar dúvidas e, quando a morte é o desfecho, falar sobre a doação.
Continua depois da publicidade
— A maioria envolve muito sentimento. Então a pessoa diz: “ah, meu pai era muito bom em vida, então ele iria querer doar — conta.
Receba notícias de Blumenau e região por WhatsApp
Em um dos casos mais marcantes para ela, a profissional relembra um Dia das Mães quando uma mulher perdeu o filho. A data era simbólica, aumentando ainda mais a dor da perda prematura do jovem. Mesmo assim, a família concordou com a doação de órgãos.
Na rotina diária, ela conta que a doação ainda tem alguns tabus. Como fica o corpo após a retirada dos órgãos, por exemplo, é um dos tópicos esclarecidos durante a abordagem. A equipe explica também quais órgãos podem ser doados e como é definido para onde vão. Com profissionais altamente preparados para lidar com a situação, o Hospital Santa Isabel teve no ano passado a menor taxa de recusa à doação de órgãos no Estado — de 15,9%.
Continua depois da publicidade
— A morte de um paciente não é algo que se gostaria, mas pode ser ressignificada — pontua.
Quando vem o “não”, na maioria das vezes os parentes dizem que essa já era uma decisão tomada pelo paciente antes da morte, frisa a profissional do Hospital Santa Isabel. Mesmo assim, a equipe explica, porque a informação abre a mente das pessoas, defende.

Carmen Segovia, ex-coordenadora da Organização Nacional de Transplantes da Espanha (ONT), diz que chegar aos 100% de aceitação é difícil. Mas equipes bem treinadas nos hospitais podem fazer o número de “nãos” cair significativamente. Em nova passagem por Santa Catarina para palestrar a profissionais da saúde, ela contou à reportagem da NSC como o país dela fez para se tornar atualmente o com maior taxa de doadores efetivos em relação à população.
— Quando começamos esse trabalho na Espanha, em 1989, a taxa de doação era a mais baixa da Europa e a de recusa familiar a mais alta da Europa. No entanto, passado muito pouco tempo, vimos que o importante era formar os profissionais para ajudar e intervir no luto. Se comunica a pior notícia para uma família, que é a morte de um ente querido, e geralmente o doador em potencial é uma pessoa que morre muito rápido. E então, em um momento de crise, tem que fazer a proposta da doação. É importante que os profissionais estejam preparados. A Espanha investiu muito na formação desses profissionais — conta.
Carmen ressalta que as pessoas têm direito de decidir e, às vezes, o estado emocional não lhes permite decidir com tranquilidade. Aí entra o papel do profissional bem preparado.
Continua depois da publicidade
— O objetivo do profissional é acolher a dor emocional, as emoções, acolher incondicionalmente os comportamentos, tentar baixar esse nível emocional, para que sejam capazes de decidir. Uma das características do luto é a dificuldade de assimilar a informação. E há vezes que não se pode conseguir isso.
Atualmente, 90% das famílias consultadas na Espanha dizem “sim” à doação de órgãos.
— É certo que quanto mais pessoas doam e doam nessa situação de acolhida fraterna das emoções, com todo o respeito, facilitando o direito de decidir e com apoio profissional sanitário em relação de ajuda. É o melhor validador de doação. Uma família doadora satisfeita serve mais para promover uma doação que uma campanha de doação a nível nacional — diz a ex-coordenadora da Organização Nacional de Transplantes da Espanha.
“Que bom seria se todos fizessem”
Dulce Buss da Silva não consegue conter o choro ao lembrar do pequeno Bruno. Ela e o marido, Cláudio, sempre desejaram muito ter filhos. Até que aconteceu. Era a alegria da casa, sonhava em ser bombeiro para ajudar pessoas, recorda a mãe. Os planos eram muitos, mas foram interrompidos na noite de 24 de março de 2023. A família tinha acabado de sair de casa, em Blumenau, quando um carro invadiu a pista contrária na BR-470 e atingiu o veículo deles.
Dulce, Cláudio e Bruno precisaram ser internados. O garoto teve traumatismo craniano, lutou pela vida, mas acabou tendo morte cerebral após uma semana. Os pais ainda estavam hospitalizados quando receberam o resultado do terceiro exame que confirmava a parada das funções cerebrais. O assunto doação de órgãos já era algo bem resolvido dentro da casa da família, embora nunca imaginassem ter que pensar no tema se tratando do único filho. A mãe se adiantou à equipe médica e disse que queriam doar os órgãos de Bruno.
Continua depois da publicidade
A decisão não era a esperada pelos avós do menino, mas os pais estavam convictos.
— Eu só pensava que não queria que outra família passasse pelo que nós estávamos passando. Isso hoje faz muito bem para a gente. Que bom seria se todo mundo fizesse. Porque a partir do momento que o coração ou cérebro param, a gente não precisa mais dos órgãos — defende Dulce.
O “sim” à doação
No ano passado, conforme a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, 317 famílias disseram “sim” à doação de órgãos em Santa Catarina e outras 179 recusaram. Os dados revelam ainda a morte de 78 pessoas no Estado enquanto estavam na fila de espera por um transplante. Joel, coordenador Estadual de Transplantes de SC, diz que há espaço para alcançar resultados ainda melhores e que a equipe catarinense está comprometida.
Leia também
Catarinenses podem manifestar vontade de ser doador de órgãos de forma gratuita em cartórios