No Colégio Menino Jesus, em Blumenau, o sinal bate às 9h45min para o intervalo. No refeitório, ninguém está curvado sobre uma tela ou em silêncio com fones de ouvido. Cinco alunas discutem a lição de matemática com os cadernos abertos, outros dois jogam xadrez em um canto, três estudantes conversam enquanto jogam cartas, um grupo de meninos compete um torneio emocionante de tênis de mesa enquanto um campeonato acirrado de pebolim acontece no lado oposto da sala — ambos dignos de torcidas fanáticas. Nenhum celular à vista. A cena, que pode parecer nostálgica, é o novo normal após a implementação da lei que proíbe o uso de dispositivos móveis, como os celulares ou tablets, nas escolas de todo o país.
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Passados quatro meses de aulas após a entrada em vigor da lei, os efeitos já são visíveis tanto no comportamento quanto no rendimento, nas relações e até na saúde mental dos alunos. Na falta de um aparelho eletrônico, surgem cenas improváveis até pouco tempo atrás — fila para jogar xadrez no recreio, roda de conversa na hora do intervalo, livro na mão em vez de uma tela. Porém, especialistas alertam que também existe um outro lado da moeda: sintomas claros de abstinência digital, ansiedade, inquietação e uso excessivo fora do ambiente escolar.
Reviravolta na rotina dos alunos
Antes, os celulares acompanhavam os estudantes onde quer que fossem e eram o foco da atenção de cada um dos jovens. Agora, com a proibição, os espaços escolares antes esquecidos voltam a ser frequentados: quadras, bibliotecas, pátios… É o que diz a secretária adjunta de Educação de Santa Catarina, Patrícia Lueders, que ouviu relatos unânimes de professores de todo o estado: a rotina escolar ganhou um novo ritmo.
— Os benefícios pedagógicos são inquestionáveis e perceptíveis nas salas de aula, desde a aprendizagem do estudante até a valorização do professor. Houve também uma melhora na aprendizagem e nas notas, segundo a diretoria de ensino. Tivemos também uma melhora no desenvolvimento da escrita, nos registros dos conteúdos no caderno e até na coordenação motora — afirma Patrícia.
Antes mesmo de iniciar o semestre letivo deste ano, a lei já estava valendo. Por isso, as aulas presenciais retornaram já desconectadas. A secretária adjunta destaca que não houve casos de resistência à aceitação das novas regras, mas lembra que, no começo, a maioria dos estudantes barganhava que o uso dos celulares deveria ser liberado ao menos no horário do intervalo. Com o tempo, os alunos conseguiram se adaptar ao novo cotidiano e mudaram os hábitos, retomando brincadeiras para passarem o tempo de intervalo.
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— Percebemos crianças brincando de amarelinha, tênis de mesa, brincadeiras de resgate cultural que já estavam perdidas. Hoje, vemos alunos lendo na hora do recreio. Também melhorou a comunicação e a relação entre eles, diminuiu a situação de bullying. Então, sim, a avaliação é muito positiva — completa Patrícia.
Outro destaque frequente de professores e coordenadores, e reiterado pela psicóloga infantil Ana Claudia Zabel Schmitt, é uma melhora no foco e na concentração, possível pela ausência dos aparelhos digitais. O relatório de Monitoramento Global da Educação de 2023, feito pela Unesco e com base em dados de 14 países, revelou que apenas estar próximo de um celular já pode distrair e prejudicar a aprendizagem dos estudantes.
O mesmo resultado consta em uma das principais avaliações mundiais da educação, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), que aponta que oito em cada 10 estudantes brasileiros com 15 anos relataram se distrair facilmente com o celular durante as aulas de Matemática, por exemplo. Além disso, também mostrou que no ranking geral de Matemática, sete em cada 10 estudantes brasileiros não sabem o básico esperado.
— Essa concentração que veio pela ausência dos celulares está fazendo com que eles aprimorem essa capacidade de concentração, de foco nas tarefas, engajamento, aprendizado colaborativo e ativo. Então, faz com que eles colaborem mais, engajem, absorvam mais. Por isso, está sendo ótimo — reitera a psicóloga infantil.
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Como as escolas têm se virado
Para ocupar o tempo livre sem os celulares, a Secretaria de Educação orientou que as escolas, tanto públicas quanto privadas, oferecessem atividades alternativas aos estudantes. Jogos de mesa, esportes, atividades recreativas como brincadeiras de antigamente e mais acesso à biblioteca são algumas das opções.
No Colégio Menino Jesus, em Blumenau, a coordenadora do Ensino Fundamental, Claudimara Pfiffer, relata mudanças expressivas no comportamento dos alunos desde que os celulares foram proibidos. Para ela, a mudança foi além da rotina: mexeu na estrutura das relações entre os estudantes.
— Eu sempre fui a favor das crianças não estarem com o celular na escola porque não existia mais aquela interação face a face entre os alunos. Agora com a proibição, vou dar um exemplo: uma aluna do sétimo ano que vivia isolada, só jogando no celular, hoje está jogando cartas e interagindo com os colegas. A gente conseguiu tirar dela um sorriso que antes não aparecia — conta.
A própria escola investiu em mesas de xadrez, ping-pong e pebolim foram instaladas no refeitório, e agora há filas no intervalo para jogarem. As meninas voltaram a pular corda, alunos levam as próprias bolinhas e raquetes de casa, outros trazem jogos de cartas. Segundo a coordenadora, a mudança impactou até na postura física: antes sentados e imóveis com os celulares; hoje, os alunos estão em pé, mais ativos e presentes.
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— Com a saída do celular da escola, a gente tirou as distrações. Então, quando o aluno chega na sala, ele está mais concentrado. Antes, a gente dizia para o estudante guardar o celular porque já tocou o sinal e o aluno continuava jogando porque ele queria terminar aquele jogo. Então, ele não está mais distraído por já chegar sem o aparelho — explica.
Ainda assim, houve espaço para ajustes à proibição. Ana Clara Hellmann, estudante de 14 anos do Colégio Menino Jesus, se viu diante de uma preocupação ao chegar no 9º ano: se formar e não ter registros do último ano do Ensino Fundamental ao trocar de escola e seguir para o Ensino Médio. A coordenação quis evitar que a turma ficasse sem memórias, enquanto as anteriores tinham fotos na escola e, por isso, permitiu que a aluna trouxesse uma antiga câmera digital da família do modelo Cyber-Shot. Com amigos e o restante da turma, a jovem registra o dia a dia na escola. As imagens são armazenadas em uma pasta compartilhada e supervisionada pelas professoras regentes, que reunirão em um vídeo para a formatura. A ideia, segundo Claudimara, foi garantir a memória sem abrir brecha para abusos.
— Ficávamos muito no celular, eu acho que até estamos conversando um pouco mais, por causa dessa proibição. Apesar dessa mudança ter impactado e que muita gente não gostou, acho que não foi tão ruim quanto eu imaginava — reflete a estudante Ana Clara.
Além da questão social, o clima dentro da escola também melhorou, como comenta a coordenadora. O cyberbullying, que era alimentado pela exposição indevida de colegas com fotos não autorizadas, praticamente desapareceu. Claudimara afirma que, até o mês de abril, não houve uma única advertência por uso indevido de celular. A escola também estabeleceu uma regra clara com os pais: se o aluno for flagrado com o aparelho, o professor pode recolher e encaminhar à coordenação. Porém, até agora, nada precisou ser confiscado.
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E o que dizem os alunos?
Desde que a lei entrou em vigor em Santa Catarina, os corredores escolares ganharam uma nova trilha sonora: o barulho das bolinhas de tênis de mesa, o embaralhar das cartas, o som alto do pebolim e as risadas entre amigos. Mas, afinal, como os estudantes têm reagido a essa proibição?
A aluna do 8º ano do Colégio Menino Jesus, Gabrieli Batistoti, de 13 anos, conta que a adaptação foi tranquila porque a escola já não permitia os aparelhos em sala de aula. Por isso, foi mais fácil se adaptar para também deixar de usar os dispositivos no horário do recreio. A estudante lembra que usava o celular principalmente para jogar com as amigas nos intervalos, mas isso foi facilmente substituído por outras atividades em grupo.
— Quando tenho prova, eu estudo. Senão, eu jogo baralho com as minhas amigas ou então Uno. As outras meninas da minha sala ficavam mais nas redes sociais, mas agora elas conversam bastante. Os meninos têm o ping-pong e eles ficam jogando. Então, não fez tanta diferença — explica Gabrieli.
Em casa, ela conta que também não tem tanto apego ao celular. Ela até criou limites para o tempo de tela por conta própria por perceber o quanto tempo gastava nas redes sociais.
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— Antes eu ficava bastante tempo no TikTok, mas aí comecei a colocar limite: duas horas, depois uma e meia. Agora é no máximo uma hora e, às vezes, nem fico todo esse tempo — explica.
Lucas Eduardo Schigatto, de 13 anos, do 7º ano, destaca a mudança nos relacionamentos entre os colegas, especialmente durante os “torneios” nos intervalos. Com revezamentos de acordo com os pontos, os alunos aguardam as partidas com as raquetes nas mãos em fila diante da mesa de ping-pong, assistindo atentamente aos amigos jogarem e esperando a própria vez com direito a torcida. Antes da proibição, ele confirma que até havia interação e amizade, mas os jogos eram on-line. Por isso, Lucas lembra que o celular também era uma ferramenta de socialização, mesmo que diferente do olho no olho.
— Acho que a gente estava muito trancado dentro do celular. Então, não foi tão ruim a proibição porque a gente conseguiu novos jogos como o ping-pong e o pebolim — ele conta enquanto ri com os amigos.
Lucas relata que, em casa, o uso do celular também é controlado pelos pais. A regra é clara: ele só pode usar nos finais de semana. Já para o colega Henrique Hartmann Schipmann, de 12 anos, que também está no 7º ano, a lei da proibição passou quase despercebida porque ele não tem celular. Mesmo sendo incomum, ele acredita que seja positivo porque, assim, ele consegue dedicar muito tempo aos estudos.
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— Mas eu acho que a proibição foi boa porque lembro que tinha professores que pediam para alguns alunos pararem de mexer no celular e ir comer no intervalo. Na mesa que eu sento, a gente joga truco e, antes, não jogávamos porque eles ficavam só no celular — reflete Henrique.
Quem também viu a rotina mudar foi Marcelo Bosco Nunes, de 14 anos, aluno do 8º ano. Ele admite que também não sentiu o impacto da aplicação da lei, especialmente por não permitir que o celular impedisse a concentração durante os estudos. O aluno pensa que a proibição dos dispositivos tenha agradado mais aos adultos, como os pais e professores.
— No início, foi ruim porque, no ano passado, o celular era uma coisa bem importante. Era a maior parte da nossa vida. Só que agora, depois de um tempo, eu acho que a gente se acostumou — relata Marcelo.
Entre os baralhos de cartas, as disputas no tênis de mesa e as novas formas de interação, os estudantes mostram que a vida escolar segue — com ou sem celular. A maioria relata ter se adaptado bem, mas sem esconder que o aparelho, para muitos, era também uma ponte de conexão e um porto seguro. A escola, agora, testa um outro tipo de rede: aquela que se constrói olho no olho.
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Confira fotos de como são os recreios no Colégio Menino Jesus, em Blumenau
Menos cyberbullying, mais empatia
A coordenadora Claudimara Pfiffer menciona que, com os celulares fora de cena, os casos de cyberbullying, também conhecido como assédio virtual, caíram. A Organização Mundial de Saúde fez um estudo entre adolescentes em 44 países e regiões sobre os padrões de bullying e violência e concluiu que, em 2022, um em cada seis adolescentes de 11 a 15 anos já sofreu cyberbullying.
Ana Claudia Zabel Schmitt é psicóloga infantil em Blumenau e faz consultorias em escolas voltadas para as equipes pedagógicas, com foco nas questões socioemocionais e riscos psicossociais. Ela explica que os casos de cyberbullying praticamente desapareceram não apenas pela ausência do celular, que impede que registros sejam feitos ou divulgados: a mudança teria sido ainda mais complexa.
— O aumento da interação olho no olho está desenvolvendo neles esse senso de empatia. Então, quando eles se conectam diretamente, há um desenvolvimento maior de habilidades sociais e emocionais. Também está trazendo uma maior compreensão e facilidade de perceber o que é o bullying. Sem a distração dos celulares durante a permanência no ambiente escolar, eles ficam mais inclinados a interagir e respeitar uns com os outros — explica a profissional.
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A psicóloga defende que a interação direta entre os estudantes, sem intermédio dos celulares, favoreceu a prática de habilidades sociais como a construção de relacionamentos, compreensão, respeito mútuo, o que reduz comportamentos agressivos ou até antissociais. Ana Claudia elabora que a pandemia de Covid-19 e o isolamento social causou um forte impacto na saúde mental e sociabilidade de muitos jovens, especialmente no ambiente escolar, por eles terem aquele longo período de distanciamento em anos fundamentais da infância.
— Eles perderam uma fase importante do desenvolvimento social e não estou falando só de habilidades sociais, da interação, conexão social, mas muitas vezes até da compreensão e o desenvolvimento da empatia. Isso é essencial para um desenvolvimento emocional saudável — elabora.
Além das visitas presenciais e contato direto, a Secretaria de Estado da Educação faz o monitoramento através de um sistema chamado Nepre, que é uma sigla para “Núcleo de Educação, Prevenção, Atenção e Atendimento às Violências na Escola”. O programa é implementado pelas coordenadorias das escolas estaduais de Santa Catarina e que, conforme a secretária adjunta de Educação do Estado explica, acolhe qualquer dificuldade, seja psicológica, física, social ou de descumprimento de normas.
Entenda mais sobre a lei
A Lei nº 15.100/2025, sancionada em janeiro deste ano, proíbe o uso de dispositivos eletrônicos portáteis e pessoais, como os celulares e tablets, em escolas públicas e privadas como um esforço para reforçar o foco no aprendizado e reduzir as distrações dos estudantes.
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A norma restringe o uso dos aparelhos durante as aulas, intervalos e recreios, mas permite exceções para fins didáticos ou pedagógicos, sob orientação de professores ou coordenadores. Também podem ser usados para promover a inclusão e acessibilidade de alunos que tenham deficiência, problemas de saúde ou necessidades justificadas.
O Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina orientou as unidades escolares sobre os procedimentos a serem adotados e as diretrizes incluem elaborar políticas internas, formação continuada de professores e engajamento com a comunidade escolar.
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