Quatro de novembro deste ano foi marcado pela lembrança deixada pelas marcas da ditadura militar em dezenas de famílias catarinenses. Em 1975, Operação Barriga Verde sequestrou, prendeu e torturou 42 pessoas em Santa Catarina, deixando um trauma na vida de várias famílias com a forte repressão fomentada pela ditadura militar. O protagonismo das mulheres foi crucial na busca pelos desaparecidos e na denúncia das violações de direitos humanos.
Continua depois da publicidade
Mulheres como Lucia Schatzmann, Maria Rita Teixeira Bessa e Sandra Leal tiveram os maridos e pai sequestrados e torturados pela ditadura. Hoje, elas enfatizam a importância de lembrar o ocorrido, com a esperança de que um regime ditatorial e suas atrocidades jamais se repitam no Brasil.
Feridas pela ditadura: quem são as mulheres que lutaram contra a Operação Barriga Verde
Os sequestrados, presos e torturados durante a Operação Barriga Verde em Santa Catarina receberam indenização do Estado e, também, uma pensão vitalícia. Entretanto, o historiador Maikon Jean Duarte, que fez parte da Comissão Municipal da Verdade (CMV) de Joinville, lembra que essas medidas não são o suficiente para reparar o sofrimento vivido por cada uma das famílias.
Segundo o historiador, é necessário trazer à memória quem foram essas pessoas. Como exemplo, ele cita um documentário feito pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), que fala sobre a trajetória de Marcos Cardoso Filho, preso na Operação Barriga Verde. Para Duarte, este é também um meio de reparação, o ato de fazer dessas pessoas memória, para que um regime como aquele nunca mais se repita.
Continua depois da publicidade
Ainda, para Duarte, as comissões tanto nacionais quanto locais começaram com um erro grave: não julgar as violações contra os direitos humanos, apenas investigar os ocorridos.
— A Comissão da Verdade, ela começa com um erro muito grave do governo PT, um erro político muito grande. É uma comissão para construir uma verdade, mas ela tem por objetivo não julgar. E isso é um tom conciliatório do próprio governo com o Exército. Não houve uma comissão pela Verdade, Memória e Justiça, no sentido que o estado vai fazer o que tem que fazer julgamento. Diferente do que foi na Argentina, por exemplo, então é uma comissão muito conciliatória, o papel — explica.
Em nota, o Memórias Reveladas, que faz parte do Governo Federal, informou que a Comissão Nacional da Verdade de fato não teve o objetivo de julgar as violações aos direitos humanos no período da ditadura militar, limitando seus objetivos ao campo do direito à memória e à verdade, como mecanismo da chamada justiça de transição. Medidas mais contundentes do ponto de vista da condenação penal dos agentes que violaram direitos no período dependeriam da revisão da Lei de Anistia de 1979, o que ainda não ocorreu.
Políticas de reparação através das Comissões de Anistia e sobre Mortos e Desaparecidos vêm sendo adotadas desde 1995 pelo Estado brasileiro. Políticas públicas de memória como o Centro de Referência Memórias Reveladas também foram criadas em resposta às demandas por justiça, informou.
Continua depois da publicidade
Outro ponto trazido pelo historiador é a necessidade do Estado cumprir com as recomendações deixadas pela Comissão Municipal da Verdade e a Comissão Estadual da Verdade. Segundo Duarte, poucas coisas foram colocadas em prática. Ele cita a recomendação do corpo docente municipal de trabalhar e fazer formações sobre o episódio, o que não ocorre.
Em Joinville, outra recomendação, por exemplo, é a criação de um memorial em homenagem a todos os joinvilenses que foram vítimas da Ditadura Militar. Além disso, o pedido público de desculpas do Estado, do 62º Batalhão da Infantaria e aos diretores da Tupy, que reconheçam a violação aos direitos humanos por motivação política. Segundo Duarte, nenhuma das recomendações foi seguida.
A Tupy chegou a ser citada no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), na seção sobre violações de direitos dos trabalhadores. O parágrafo que menciona a cidade cita a prisão de sindicalistas no Estado e, em particular, a presença do governo militar na empresa da cidade. A informação utilizada pela CNV é oriunda do relatório final da Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Right (CEV-SC) e foi prestada por ex-dirigentes de sindicatos da região em depoimento.
“Em Santa Catarina, muitos dirigentes dos sindicatos que sofreram intervenção e sindicalistas cassados foram presos. No estado catarinense ocorreu um caso extraordinário de intervenção direta do Exército no interior da empresa, quando esse acampou em uma sala especial dentro da Fundição Tupy, em Joinville, mediante acordo com a empresa, e ficou usando suas instalações por 20 anos. Segundo depoimentos de presos políticos de Joinville, a direção da empresa possuía uma clara postura de apoio à repressão política na região. Quem era demitido por participação política ou reivindicação salarial tinha a carteira de trabalho assinada com caneta vermelha e nunca mais conseguia emprego na cidade, pois esse era o código utilizado entre as empresas”, cita o texto do relatório final da CNV, na página 72 do volume 2.
Continua depois da publicidade
— Essas pessoas entregaram a vida delas para um projeto, não no sentido individual. Não é um projeto de caráter financeiro. É um projeto de vida, coletivo. A gente pode discordar desse projeto, mas essa não é a questão. Elas não tinham um ganho financeiro com isso. A gente sabe que não tiveram porque são todas pessoas aposentadas com salário mínimo. E estavam colocando em risco a vida delas e dos filhos, correndo um risco de perder a vida. Não perderam a vida por conta do que sofreram, que foi o sequestro, a tortura e a repressão econômica. Elas perderam o emprego. Você vai ter famílias totalmente destruídas — enfatiza Maikon sobre a necessidade de reparação.
Sobre a citação da Tupy no relatório, a empresa informou em nota que reconhece a importância da valorização dos princípios democráticos e manifesta repúdio a qualquer forma de repressão política. “Reafirmamos nosso compromisso incondicional com os direitos humanos, a ética e o respeito às pessoas — pilares que orientam nossa atuação e refletem a empresa que somos”, disse. Os demais órgãos citados não retornaram o contato da reportagem.
Para que não se repita
Passados 50 anos desde o início da Operação Barriga Verde, ainda há marcas na vida dessas mulheres. Lucia Schatzmann, aos 81 anos, fica sem dormir ao lembrar do que ocorreu no período da ditadura militar.
Ainda hoje, quando vê um carro preto ou da polícia passando em frente à casa onde mora em Balneário Barra do Sul, a memória já remete àquele período ditatorial. O barulho dos foguetes lembram os tiros que ouviu ao longo dos 21 anos que os militares ficaram no poder.
Continua depois da publicidade
Ao falar sobre os ocorridos, o ar falta aos pulmões. Ainda assim, Lucia consegue reunir forças para contar o que viveu, na esperança que os casos de torturas e violações de direitos humanos sejam lembrados e que nunca mais ocorram.
Munida de coragem, ainda que tenha sofrido e leve as marcas da ditadura militar consigo aos 81 anos, afirma:
— Se fosse para fazer tudo tudo de novo hoje, eu faria. Mesmo com todas essas coisas que põe a gente a tremer, a deixar a gente sem chão, sem saber para onde correr, eu faria tudo de novo. Faria tudo de novo para ver um Brasil melhor, onde não existe mais tanta pobreza, tanto sofrimento, criança passando fome, no mundo inteiro — desabafa.
Agora, Lucia deseja que as pessoas fiquem unidas, que escolham com sabedoria seus representantes e que lutem pelos seus direitos para que, nunca mais, suba ao poder uma ditadura.
Continua depois da publicidade
Ainda criança, quando viu o pai ser sequestrado, Sandra precisou passar por terapia para criar coragem de falar sobre a dor da lembrança de ver o pai algemado. Hoje canalizou a dor em projetos pessoais e profissionais. Com os alunos da universidade onde dá aula, trabalha o golpe militar através da arte.
Na vida pessoal, conversa e incentiva o pai a falar sobre suas cicatrizes também, como uma forma de libertar o que ainda está guardando. Aos poucos Luiz tem falado sobre suas feridas, conta Sandra, sempre com o apoio da filha.
— Sistemas totalitários se baseiam em medo e silêncio, quanto mais a gente tem medo e não consegue, não fala, as coisas se transformam em impossibilidade de existência — comenta.
Maria Rita Teixeira Bessa, que foi surpreendida pela notícia da prisão do marido com o filho de oito meses no colo, que se uniu à outras mulheres em buscas de seus companheiros sequestrados, que foi perseguida, não pensa diferente de Lucia.
Continua depois da publicidade
— Não me arrependo de nada que eu fiz. Nem um pouco. Por isso que eu digo: lute, lute para que nunca mais volte isso. É muito triste. Hoje, eu estou tranquila porque nós estamos já em um outro sistema, outro jeito de pensar o país também. Mas, cuidar mesmo para que não, não se repita o que nós vivemos, que a ditadura foi uma coisa horrível — afirma.
Quem são os 42 sequestrados pela Operação Barriga Verde
- Alésio Verzola — 27 anos — Florianópolis
- Amadeu Hercílio da Luz — 42 — Criciúma
- Antônio Justino — 32 — Joinville
- Celso Padilha — 26 — São José
- Círio Arnoldo Vicente — 36 — Itajaí
- Cirineu Martins Cardoso — 26 — Florianópolis
- Cyro Manoel Pacheco — 37 — Chapecó
- Edésio Ferreira — 51 — Itajaí
- Edgar Schatzmann — 35 — Joinville
- Elineide Lícia Martins — 25 — Florianópolis
- Emmanoel Alfredo Maes — 40 — Itajaí
- Everaldo Brodbeck — 36 — Balneário Camboriú
- Irineu Ceschin — 32 Joinville
- João Augusto de Melo Saraiva — 44 — Florianópolis
- João Borges Machado de Souza —28 — Joinville
- Jobê Silva da Nova — 43 — Criciúma
- João Jorge Feliciano — 46 — Criciúma
- Jorge Vieira — 35 — Criciúma
- Júlio Adelaido Serpa — 26 — Joinville
- Lourival Espíndola — 38 — Criciúma
- Luiz Geraldo Bresciani — 26 — Porto Alegre (RS)
- Luiz Jorge Leal — 31 — Criciúma
- Marcos Cardoso Filho — 25 — Florianópolis
- Márcio Campos — 25 — Florianópolis
- Nahor Cardoso — 45 — Itajaí
- Nelli Osmar Calduro Picolli — 60 — Itajaí
- Newton Cândido — 39 — São Paulo (SP)
- Osni Rocha — 27 — Joinville
- Paulo Antônio — 31 — Criciúma
- Roberto Cologni — 34 — Criciúma
- Roberto João Motta — 28 — Florianópolis
- Roque Felipe — 39 — Criciúma
- Rosimarie Cardoso Bittencourt — 28 — Joinville
- Sebastião Ernesto Goulart — 45 — Criciúma
- Sérgio Giovanelli — 35 — Blumenau
- Teodoro Ghercov — 56 — São José
- Ury Coutinho de Azevedo — 48 — Piçarras
- Valci Lacerda — 37 — Florianópolis
- Túlio Valmor Bresciani — 35 — Criciúma
- Vladimir Salomão do Amarante — 29 — Guarapuava (PR)
- Waldemar João Domingos — 37 — Joinville
- Walter Hernich Wily Horn — 43 — Porto Alegre (RS)














