O 1º de maio de 2020 foi sob pandemia. O isolamento social obriga os trabalhadores a evitar as manifestações de protesto contra o desemprego. Já antes do coronavírus o Brasil somava 14 milhões de desempregados e pelo menos 40 milhões sem carteira assinada.
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O contexto é dramático e atinge diretamente as mulheres, que vinham tendo a força de trabalho em ascensão. Apesar do momento difícil, o protagonismo feminino em atividades sociais não está paralisado. Pelo contrário, são as mulheres que estão no front das comunidades mais vulneráveis. Muitas, inclusive, moradoras desses lugares onde faltam políticas públicas.
A professora Jeruse Romão observa que muitas dessas mulheres protagonistas são negras. Para ela, existe uma relação entre o cuidar de hoje e o que fizeram as mulheres negras escravizadas no Brasil colonial:
– Encontramos nesta rede potente formada por diferentes matizes políticas a repetição do passado, quando mesmo que de forma coercitiva as negras escravizadas cuidavam dos senhores e de suas respectivas famílias. Assim como também da senzala a e dos quilombos.
A professora conta que percebeu a visão coletiva dessas mulheres quando, dias atrás, foi chamada a ajudar uma família moradora do Morro do 25, Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis:
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– Pediram-me uma cesta básica para uma família formada por oito pessoas e que, mesmo com dificuldades, havia acolhido um jovem africano que veio estudar na Universidade Federal de Santa Catarina. É essa consciência sobre o cuidar e acolher o outro que a sociedade deve prestar atenção – sugere.
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Para Jeruse, o que estão fazendo estas mulheres num momento em que as ausências de políticas públicas se revela tão fortemente deve inspirar a todos. Especialmente, diz, outras mulheres onde muitas vezes essas da periferia trabalham:
– Trata-se de um protagonismo de esperança. Ao entregar uma cesta básica ou produtos de higiene esta mulher que, muitas vezes corre o risco de se contaminar, está dizendo: “resista, vamos nos cuidar, vamos pensar no coletivo” – pontua a professora.
Lutas perpassam a pandemia
Luciana de Freitas Silveira coordena o Projeto Integrar, o qual oferece cursinho pré-vestibular para jovens da periferia. Mestranda em Serviço Social pela UFSC, a moradora dos altos da José Boiteux, no Maciço do Morro da Cruz, é casada, tem filhos e é avó. Para ela, o coronavírus serve para mostrar que as mulheres do front estão já inseridas em organizações, associações de moradores, culturais e de igrejas.
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– A pandemia mostra mulheres também pobres e negligenciadas em muitos direitos, mas em luta constante contra machismo, racismo e preconceito.
Para Luciana, que tem trajetória no Movimento Negro Unificado, “as mulheres não param em tempo de pandemia e em tempo nenhum”. Há, de acordo com ela, uma consciência da real necessidade de mudança social e econômica.
– Percebe-se uma visão clara de que é preciso envolver o coletivo, e isso vale para enfrentamento ao coronavírus ou para emprego para pais e mães de famílias – afirma.
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“O sentido da vida é ajudar uns aos outros”, diz líder comunitária
Cíntia Cruz participa ativamente da vida comunitária. Está à frente do projeto Revolução dos Baldinhos, no bairro Monte Cristo, na Capital. A iniciativa começou em 2008 e foca na gestão comunitária de resíduos orgânicos e agricultura urbana em Florianópolis. Atualmente envolve cerca de 150 famílias e ganhou reconhecimento internacional, como um prêmio conquistado ano passado na Alemanha pela capacidade de gerenciamento de resíduos.
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Idealizado e implementado com a participação do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo, já tratou mais de mil toneladas de resíduos orgânicos e contribuiu para a produção de alimentos saudáveis para as famílias participantes, beneficiando quase 2 mil pessoas.
– Tudo isso nos dá muito orgulho. Sabemos o quanto a vida das pessoas em comunidade precisa ser reconhecida por coisas produtivas – diz Cíntia, que também participa da Oficina de Bonecas Negras.
Antes, conta, o lixo era deixado nas ruas. Foi a partir da morte de um morador por leptospirose e de um surto de ratos que surgiu a ideia de dar outro encaminhamento par aos resíduos. Começava ali um processo de discussão, educação e conscientização.
– A gente tem que ajudar uns aos outros. Acho que esse é o sentido da vida – diz Cintia.
Chefes de 45% das famílias
Estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que na população economicamente ativa com mais de 14 anos, a proporção é de 89,4 milhões (52,4%) de mulheres e 81,1 milhões (47,6%) de homens. Além disso, cerca de 45% dessas mulheres são chefes de famílias. Educação, saúde, serviços domésticos e gerais remunerados concentram mais trabalhadoras. Enquanto os homens estão na agropecuária, indústria, construção civil e atividades relacionadas à produção de bens materiais.
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O agravamento da crise, o desemprego e a perda de rendimento pela pandemia afetaram as famílias. Para minimizar o impacto, o governo criou um auxílio-emergencial para mães chefes de família no valor de R$ 1,2 mil pagos por três meses. A ajuda se destina a quem não recebe benefícios previdenciários ou assistenciais e seguro desemprego. Para os demais trabalhadores informais incluídos na medida o valor é de R$ 600. A Lei 13.982, de 2/4/2020 nasceu na Câmara Federal.
Entrevista: Renata Machado Pereira da Silva, assistente social
“As mulheres são as que mais trabalham no campo da sociedade civil organizada”
Renata Machado Pereira da Silva é formada em Serviço Social pela Universidade do Sul de Santa Catarina e coordenadora de desenvolvimento institucional e programas sociais no Instituto Comunitário Grande Florianópolis (Icom). Na entrevista a seguir, ela fala sobre a realidade positiva revelada pela pandemia: o protagonismo das mulheres catarinenses no front de entidades sociais. Confira:
Algumas das organizações com as quais o ICOM tem parcerias possuem mulheres no front, e isso ganha visibilidade nestes tempos de pandemia. Na sua opinião, qual o motivo desse protagonismo feminino?
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O protagonismo feminino pode ser visto desde muito tempo. Desde o surgimento das primeiras ações sociais vinculadas às igrejas católicas na década de 1930, com as chamadas “moças de famílias”. Nesse período, o país passava por um período turbulento, com diversas manifestações da classe trabalhadora, que reivindicavam melhores condições de trabalho e justiça social.
Temos números deste engajamento de mulheres no país?
Atualmente, no Brasil, existem 820 mil Organizações da Sociedade Civil (OSCs), conforme pesquisa do Ipea, em 2016. São organizações que trabalham para diversas causas de interesse público, para fortalecer comunidades, reivindicar direitos e promover melhores condições de vida, tornando-se fundamentais para a nossa democracia. E ainda, de acordo com pesquisa do Ipea, as mulheres são as que mais trabalham no campo da sociedade civil organizada: representam 65%. Elas são maioria em todos os estados.
Temos dados desta atuação em Santa Catarina?
Em Santa Catarina, assim como no Rio Grande do Sul, encontra-se a maior proporção de mulheres ocupadas na sociedade civil organizada. O próprio Icom também é reflexo disso: fundado por um grupo de sete mulheres em 2005, hoje a equipe executiva é formada por oito pessoas, sendo todas mulheres.
Segundo o IBGE, mulheres dedicam em média 18,5 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, na comparação com 10,3 horas semanais gastas nessas atividades pelos homens. Essa rotina ficou ainda mais intensa com as restrições impostas pela pandemia. Você, também mulher, sabe de onde vem esta disposição para o cuidar?
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Acredito que esta disposição vem já do dia a dia, da escolha profissional relacionada ao cuidado com o outro. A pesquisa do Ipea 2016 nos mostra que distribuição por sexo varia de modo significativo entre as finalidades de atuação das organizações, o que revela forte associação entre gênero e alguns tipos específicos de ocupações.
O IBGE mostra que as mulheres se dedicam a atividades relacionadas à saúde e educação.
Exato. As mulheres representam 85 de cada 100 profissionais nas atividades de enfermagem, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem. Em geral a presença de mulheres é proeminente em todas as atividades que remetem à imagem do cuidado (infantil ou idoso) e à assistência, a exemplo de assistentes sociais (93% mulheres), cuidadoras de idosos (85% mulheres), professoras da educação infantil (94%) e auxiliar de desenvolvimento infantil (95%).
Existe uma sobrecarga de trabalho?
Neste tempo de pandemia, nos preocupa o cuidado com elas, já que a maioria dos profissionais de saúde da linha de frente são mulheres, as cuidadoras são mulheres, as assistentes sociais são mulheres, as lideranças das comunidades são mulheres. São profissionais que estão na batalha do dia a dia. Estão atendendo os mais vulneráveis. Realmente a carga de cuidados para as mulheres – já três vezes maior que dos homens – aumentou exponencialmente neste período.
Você acredita que esta experiência de protagonismo possa fortalecer politicamente as lideranças femininas a ponto que futuramente consigam disputar de igual para igual com os homens vagas para os parlamentos?
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Acredito que devemos continuar a luta pela equidade de gênero, buscando combater e dar outro sentido a estruturas de opressão e invisibilidade das mulheres, enfrentando as violências sofridas por cada uma delas nas respectivas realidades. Entendo que essa luta é uma responsabilidade compartilhada por todas as pessoas.
Qual a sua perspectiva em relação ao futuro?
Espero que possamos sair deste momento revendo muitas coisas, principalmente o papel da mulher na sociedade, como mãe, mulher, profissional. Ao promovermos a equidade de gênero, estamos também contribuindo com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5, proposto pela ONU: “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.