Durante sete anos de relacionamento, Clarissa* viu seu ex-namorado usar o controle e as palavras para diminuir sua autoestima. Ela tinha por volta de 18 anos quando iniciou um namoro com um homem quase três anos mais velho. No início, as violências psicológicas eram sutis, e a jovem acreditava que muito disso vinha da personalidade do namorado.

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— Depois de um tempo, percebi que ele fazia com que eu me sentisse inferior. Em qualquer briga, ele me humilhava sutilmente — relata.

Hoje, com 27 anos, Clarissa é uma das 38.507 mulheres que registraram sofrer violência psicológica em Santa Catarina, em 2024. Foi a partir desses números que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), criou a “Campanha Crush Perfeito”. Por meio de parceiros, a iniciativa organiza visitas a escolas e trabalha na educação de adolescentes para identificar e ficar em alerta diante da violência psicológica.

(Foto: Tiago Ghizoni, Arquivo NSC Total)

O aumento de registros de violência

Em 2024, a violência psicológica foi o tipo de violência contra a mulher mais recorrente entre as denúncias feitas ao Ligue 180, segundo dados do Ministério das Mulheres. No Brasil, 101.007 mulheres denunciaram seus parceiros por esse tipo de violência nos canais de atendimento no ano passado.

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No Estado, o Ligue 180 registrou 17.185 atendimentos em 2024, representando um aumento de 15,5% em relação a 2023, quando foram contabilizados 14.875 acionamentos, conforme dados do Ministério das Mulheres. Também houve um crescimento de 12,3% no número de denúncias, que passou de 3.568 em 2023 para 4.029 em 2024. Desse total, 3.570 foram recebidas por telefone e 370 via WhatsApp.

Entretanto, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), identificar condutas que caracterizem violência psicológica ainda é um grande desafio para as autoridades. Conforme o CNJ, o comportamento do parceiro abusivo pode incluir ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, ridicularização, intimidação, chantagem e limitação do direito de ir e vir.

Como consequência, as vítimas podem desenvolver danos emocionais significativos, como hipervigilância, dor, angústia, incapacidade de tomar decisões, perda de concentração e memória, além de prejuízos à saúde psicológica e à liberdade de autodeterminação. Nos casos mais graves, pode ocorrer o desenvolvimento de transtorno de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade e outras enfermidades que configuram lesão à saúde mental da mulher.

Uma das grandes inovações da Lei Maria da Penha, criada em 7 de agosto de 2006, foi a inclusão dos tipos de violência e suas definições. O artigo 7º, inciso II, da lei esclarece que qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima, prejuízo ao pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões da mulher configura violência psicológica.

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Com essa definição, entre os atendimentos registrados e outros categorizados pelo Observatório da Violência Contra a Mulher de Santa Catarina, em 2024 os casos de violência psicológica por ameaça lideraram as denúncias, com 11.868 registros, seguidos por injúria (4.158), difamação (1.121) e calúnia (576). A maioria das vítimas tem entre 26 e 33 anos.

(Arte: Ben Ami Scopinho, NSC Total)

O nascimento da Campanha Crush Perfeito

A criação da “Campanha Crush Perfeito” surgiu em 2019, a partir da vontade de “conversar com o público adolescente”, que começa a se relacionar nessa faixa etária. O projeto começou a ser divulgado em 2020, mas, devido à pandemia, não foi possível levá-lo adiante na época, segundo a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid).

O projeto retornou somente em 2022, quando a campanha passou a ser levada às escolas de todo o Estado.

“Desenvolvemos uma cartilha e temos esse material impresso. A partir disso, representantes do Tribunal de Justiça e da Cevid vão às escolas para conversar com o público adolescente. Também oferecemos uma pequena palestra sobre relacionamentos e, ao final, entregamos essa cartilha para os adolescentes” explica a Cevid, em respostas ao NSC Total.

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Para criar a linguagem da cartilha e torná-la adequada ao público adolescente, a Cevid utilizou diversos exemplos já consolidados na temática. Um deles foi a cartilha “Namoro Legal”, desenvolvida pelo Ministério Público de São Paulo. Além disso, a cartilha também utiliza elementos lúdicos, como a história da Princesa e o Sapo, para explicar tópicos mais densos.

“Na cartilha, invertemos a história. Ao invés do sapo virar príncipe, tentamos explicar, de forma simples, que o príncipe pode virar sapo em uma relação, devido às violências”, explica o órgão do TJSC.

Segundo a Cevid, a cartilha foi planejada a partir do ciclo da violência, sendo o último estágio da violência contra a mulher o feminicídio e/ou a violência física, considerados o “final do ciclo” que prejudica e interrompe a vida de muitas mulheres.

“Precisamos de algo que ajude adolescentes a identificarem, desde o início, na primeira relação, onde está o limite. Como identificar um relacionamento abusivo? Foi aí que usamos o conceito do ciclo da violência para ajudar esse público a reconhecer o momento de parar. É uma cartilha sobre relacionamento abusivo, mas que começa pelo início, a violência psicológica”, destaca a coordenadoria.

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A raiz de uma violência psicológica

O doutor, pesquisador e professor aposentado de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rafael Raffaelli, afirma que a criação de campanhas que alertem sobre relacionamentos abusivos é de extrema importância. Segundo ele, em alguns casos, as mulheres são criadas em famílias onde os pais mantêm relacionamentos abusivos e, ao crescer e iniciar sua vida afetiva, não conseguem perceber a problemática devido ao convívio dentro de casa.

— São questões relacionadas a como um relacionamento vai se desenvolvendo. A criação de uma cartilha nessas situações é muito útil para esclarecer esses aspectos para a faixa etária. Eu já atendi mulheres que não tinham poder de voz dentro do relacionamento, e mudar isso logo no início é necessário. Quanto mais cedo, melhor, para que as mulheres não se fechem e consigam falar sobre — analisa.

O pesquisador também destaca a importância de dar visibilidade a essas pautas, para que as mulheres percebam que não podem ser controladas ou manipuladas, utilizando canais de denúncia e a mídia para entender que existem muitos casos em que as mulheres usam a força para expor suas situações.

— Existem relacionamentos em que ninguém percebe que há abuso naquele casal. Se ninguém percebe isso, ninguém pode dar aquela “forcinha”, falando: “Olha, talvez tenha algo errado na relação”. Então, os canais de denúncia ajudam aquela mulher a ver que outras passaram pelo mesmo e assim nasce a visibilidade — conclui.

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*Clarissa é um nome fictício para preservar a identidade da vítima.

Antonietas

Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.  

**Sob supervisão de Jean Laurindo

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