O aniversário se aproxima e com ele vem a indomável vontade de ouvir “Recital na Boite Barroco”. Minha relação com este disco começou em 1968, quando ele foi lançado por Maria Bethânia. A vitrolinha vermelha na sala de casa, os suaves chiados do som, minha mãe murmurando docemente canção a canção enquanto prepara o almoço. Eu ali, ensimesmado com meus brinquedos; aquelas músicas bonitas ressoavam ao redor.
Continua depois da publicidade
Leia mais de César Seabra no NSC Total
Cinquenta e sete anos depois, nunca parei de escutá-las. Sempre em março ouço constantemente – nas caminhadas, na academia, em casa, indo para o trabalho. A cada audição, novas surpresas, descobertas, emoções.
O encantamento da simplicidade
Talvez Bethânia nem dê muita importância a este disco. Talvez ele até seja uma obra menor na icônica carreira e brilhante discografia da artista baiana. Mas eu, que não sou crítico de nada e procuro cada vez mais me levar menos a sério, considero “Recital na Boite Barroco” o disco mais bonito da música brasileira.
Continua depois da publicidade
Dizia-se que ele havia sido produzido ao vivo numa tal Boate Barroco, na Zona Sul do Rio. O jornalista Ricardo Schott desmistifica e revela outra história. Na biografia “Uma Família Musical Com os Pés na Terra”, sobre o grupo Terra Trio, com quem Bethânia fez o disco, Schott conta que ele foi gravado no estúdio da gravadora Odeon, na Cinelândia, Centro da Cidade Maravilhosa. A plateia, afirma, foi composta por funcionários e convidados.
Não importa se mito ou verdade. Nascia ali uma obra-prima.
Um passo, uma viagem e as lembranças de uma epopeia em Praga
São 15 músicas “supimpas” (como dizia minha mãe) ou “espetos” (como dizia meu pai). Caras leitoras e caros leitores, prestem atenção no repertório: “Marginália II” (Torquato Neto e Gilberto Gil), “Carinhoso” (Pixinguinha e João de Barro), “Se Todos Fossem Iguais A Você” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), “Último Desejo” (Noel Rosa), “Camisa Listada” (Assis Valente), “Marina” (Dorival Caymmi), “O Que Tinha De Ser” (Tom e Vinícius), “Molambo” (Meira e Augusto Mesquita), “Lama” (Paulo Marques e Aylce Chaves), “Pano Legal” (Billy Blanco), “Café Soçaite” (Miguel Gustavo), “Pé da Roseira” e “Ele Falava Nisso Todo Dia” (ambas de Gilberto Gil) e “Baby” (do irmão Caetano Veloso).
A última música — “Maria, Maria”, de Capinan e Caetano —, Bethânia abre assim: “Mais uma história para o ócio dos que falam do amor das pessoas como de um terrível vício. A minha contribuição para quem, com infelicidade alheia, compensa a sua própria infelicidade”. Isso foi em 1968, repito, 57 anos atrás. Uma artista visionária? Parece um recado para os dias de hoje, quando convivemos com a explosão da ignorância nas redes antissociais, a desinteligência e a deselegância que gritam, a decadência vencendo o lirismo, o narcisismo e a espetacularização da vida.
Vira-e-mexe sonho com Bethânia voltando aos palcos, refazendo este show. Alguma boa artista também poderia fazer o mesmo: interpretar essas 15 músicas espetaculares. Enquanto isso, não desperdiço tempo, vou me deleitando, desfrutando, apreciando.
Continua depois da publicidade
O amigo Ben, que produz as belas artes dessa modesta coluna, me indaga por que aprecio tanto esse disco. Sugiro que ele o escute com carinho e profundidade. Conto que ele é carregado de lembranças boas de minha infância. E arremato que Bethânia e “Recital na Boite Barroco” são provas insuspeitas de que a vida é bonita e vale muito a pena.