Quando o assunto é presente — seja de aniversário, Natal ou mesmo um mimo desapegado das efemérides cotidianas —, a previsibilidade é minha sina. Zero questão de disfarçar a falta de imaginação e paciência. Vou de livros e músicas. Perdi a conta de quantos exemplares de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, já dei a amigas e amigos. O mesmo em relação a “Ok Computer”. Desde que foi lançado, em 1997, centenas deste CD da banda britânica Radiohead foram presenteados com o seguinte recado: “Espero que goste, este é o último grande disco de rock lançado no mundo”. Prazer, podem me chamar de “Senhor Obviedade”.
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Num texto recente sobre a arte de dar presentes, o escritor Fabrício Carpinejar decretou: “Não caia no eufemismo piedoso de que o que vale é a intenção, o que vale é ser lembrado. Infelizmente, pode acabar mal lembrado, qualquer que seja a faixa etária”. Esta é uma das razões que me fazem fugir de qualquer amigo-oculto de família, de empresa, de companheiros de peteca, breakdance ou biriba.
Pesquisar-encontrar-dar presente é uma tarefa que me causa desassossego, ansiedade e esgotamento. Suco de estresse. Qual o presente ideal, qual o presente perfeito? E o medo de errar a escolha quando não conhecemos o destinatário tão bem o quanto imaginamos? Quais são seus gostos, qual o momento de sua vida, seus paradoxos, medos, desejos, dúvidas, esperanças, sonhos, até mesmo necessidades? Estaria ele feliz ou triste? A chance de fracasso é terrivelmente alta.
Nem todos os seres humanos são céticos e sorumbáticos assim. Felizmente há a diversidade, as diferenças, a criatividade e a coragem. Esta semana fui surpreendido com a engenhosidade do amigo Fabian. Num envelope pardo, me trouxe um pequeno disco e mandou o recado direto: “Encontrei em casa, acho que é a sua cara. Não repare, não tem mais a capa. É seu”.
“Sucesso de ‘Ainda Estou Aqui’ pelo mundo faz a vida prestar, e muito”
Desconfiei, olhei ensimesmado para ele e o envelope. Tudo bom demais para ser verdade. Era para valer, e que presente: um disco de vinil “compacto duplo”, como diríamos nós, os sujeitos do século passado.
Trata-se de um daqueles brindes que vinham encartados nas edições da revista futebolística “Placar”. Este é de 1976. De um lado, a beleza de “Valsa de Uma Cidade”, de Ismael Netto e Antonio Maria, interpretada por Lucio Alves. Do outro, a Banda do Corpo de Bombeiros do Estado da Guanabara, sob a batuta do capitão Othonio Benvenuto, executando o glorioso hino do Botafogo.
Espetacular, inesquecível, emocionante. Que gol de placa do Fabian. Tinha esse mesmo disco quando era adolescente, mas ele se perdeu em alguma das inúmeras mudanças de casa. O choro veio.
Dar presente é verdadeiramente uma arte.
Distopia imperdível
Muitas séries estarão na história da televisão para sempre. “Sopranos”, “Friends”, “Sex and the City”, “Succession”, “The Last of Us” “Mad Men”, “The Bear”, “Shogun” e algumas outras. Hoje não há nada comparável à “Ruptura” (em segunda temporada), crítica distópica sobre o cotidiano no trabalho que se transformou na série mais provocativa dos últimos anos. Corra e veja. Seu Innie (eu do trabalho) e seu Outie (eu pessoal) vão agradecer.
“A inutilidade é, por si só, uma forma de resistência, ou, melhor dizendo, o que é considerado inútil serve a propósitos mais sutis”
Rebecca Solnit, escritora americana
“O tempo não comprou passagem de volta. Tenho lembranças e não saudades”
Mário Lago, ator brasileiro
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“Covarde, realmente covarde é apenas quem teme as próprias lembranças”
Elias Canetti, escritor búlgaro
“O homem não é a soma do que tem, mas a totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter”
Jean-Paul Sartre, filósofo francês
“Quão importante é na vida não necessariamente ser forte, mas sentir-se forte, medir-se pelo menos uma vez, encontrar-se pelo menos uma vez”
Primo Levi, escritor italiano