“Mas a religião do tempo da peste não podia ser a religião de todos os dias”. O trecho é de ‘A Peste’, obra de Albert Camus que foi citada pela ministra Rosa Weber no julgamento sobre a suspensão de cultos presenciais nas igrejas esta semana. Por nove votos a dois, o STF garantiu a prefeitos e governadores o poder de coibir as aglomerações religiosas diante do agravamento da pandemia.
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Em ‘A Peste’, Camus relata a chegada de uma misteriosa epidemia à cidade de Orã e os dilemas éticos e morais que ela provoca. Entre eles, a naturalização da morte. O livro, que vale a pena ser lido e relido, foi uma analogia ao nazifascismo que varreu a Europa na primeira metade do século 20. Décadas depois, ajuda a refletir sobre os efeitos da pandemia num mundo que se julgava livre.
Como a peste de Camus, a Covid-19 já ceifou a vida de quase 350 mil brasileiros. Só nestes primeiros dez dias de abril, foram mais de 20 mil mortos. Na maioria dos estados – inclusive em Santa Catarina, onde as atividades religiosas estão liberadas com restrições – faltam leitos de UTI e pessoas aguardam numa angustiante fila de espera, por vagas que talvez nunca cheguem. Só no mês passado, mais de 200 catarinenses perderam a vida enquanto esperavam por um leito de UTI.
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Nesse cenário, é surpreendente que uma ação para permitir aglomerações em igrejas tenha chegado ao plenário na Suprema Corte. Como era esperado, a discussão acabou ultrapassando os limites do Direito e colocou em lados opostos ciência e fanatismo, em um debate que não mirou na inalienável liberdade religiosa – mas na ligitimidade das medidas sanitárias.
A facilidade com que o coronavírus é transmitido faz com que o direito coletivo à vida se sobreponha ao direito individual – e foi isso o que ressaltaram os nove ministros do STF que autorizaram o fechamento de igrejas. No confronto entre a liberdade de culto e o direito à vida, os ministros precisaram pontuar que este é um momento excepcional.
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A fé é um sopro de alento para muita gente diante de uma pandemia que destrói famílias, deixa crianças órfãs, provoca fome e desemprego. Mas o socorro espiritual – que pode ser feito sem retrições de forma alternativa, virtual – não justifica colocar outras pessoas em risco. Quantos podem adoecer e morrer em consequência das aglomerações feitas em nome de Deus?
Durante a argumentação, o ministro da AGU, André Mendonça, admitiu – talvez por ato falho – que a prática religiosa presencial empurra pessoas para a morte. “Os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”, afirmou.
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Num trecho particularmente emblemático de ‘A Peste’, Camus fala sobre o esvaziamento do Dia de Finados, ‘cancelado’ pela doença que assolou Orã. Tão natural era a morte, que ninguém mais se importava. “Já não eram os abandonados junto dos quais os vivos vão justificar-se uma vez por ano. Eram intrusos que se desejava esquecer”.
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