A empresária Soleane Kammers resume em uma frase a decepção que sente ao não conseguir matricular um filho, no espectro autista, numa escola de Santa Catarina:

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— É um sentimento devastador.

A busca por uma escola é um desafio para qualquer família. Para os pais de crianças no espectro autista, a situação é mais delicada. Mesmo com a lei que garante o acesso à educação, unidades de ensino ainda contam com problemas. Entre eles, as vagas negadas — muitas vezes sem justificativa.

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— Ficamos numa situação tão vulnerável, psicologicamente falando. O que você vai querer é ir atrás de outra escola, focar os esforços e procurar algo mais adequado para o seu filho — acrescenta a empresária Soleane Kammers.

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O principal problema está nas escolas particulares, apesar de as denúncias não chegarem aos órgãos de fiscalização. Segundo os pais, as unidades têm criado empecilhos na hora da matrícula de crianças autistas. Em contrapartida, o Sindicato das Escolas Particulares de Santa Catarina (Sinepe) alega que as unidades de ensino são orientadas a cumprir a lei, mas não são autorizadas a oferecer a Educação Especial. Já nas escolas públicas, o problema está na qualidade de ensino. Especialistas apontam que, apesar de as vagas existirem, nem todos os profissionais estão aptos a realizar o atendimento das crianças.

Na rede pública de SC, pais de crianças autistas lidam com os desafios do professor auxiliar

Todas essas situações mostram falhas na aplicação da lei nº 12.764. Sancionada em dezembro de 2012, ela instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, o que define uma série de direitos em diferentes áreas, entre elas o acesso à educação. No artigo 7º, ela determina que “o gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos”.

— Esta é a primeira lei de proteção nacional do autista. Ela tem artigos que dão direito às crianças à total inclusão em qualquer escola eleita pelos para conseguir as mesmas chances de aprendizado dos demais alunos — afirma a jornalista Fátima de Kwant, pesquisadora de assuntos relacionados ao autismo.
Para os órgãos públicos, as escolas têm de seguir a lei e garantir a inclusão desses alunos nas salas de aula.

Letícia teve dificuldades para matricular o filho na escola – (Foto: Tiago Ghizoni/Diário Catarinense)

“Meu filho tem muito o que aprender e ensinar também”, afirma mãe

A curiosidade brota nos olhos de Lucas Wojcikiewicz ao ver a câmera que o filma de longe. Com seis anos, ele foi diagnosticado, ainda bebê, com o espectro do autismo e é considerado nível 2 de suporte — quando a criança apresenta dificuldades na comunicação e deficiência de linguagem de forma moderada.

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A descoberta ocorreu quando ele tinha um ano e meio. Letícia Wojcikiewicz, mãe do garoto, conta que já na maternidade identificou os sinais de que ele poderia ser autista.

— Percebi nas primeiras mamadas que ele não gostava de carinho na cabeça, ele parava de mamar se eu encostasse a mãozinha na cabeça dele. Meu marido foi cantar uma musiquinha, ele levou as mãozinhas ao ouvido e percebi uma sensibilidade auditiva. E aí veio uma restiazinha de sol e ele fechou os olhos, mas era muita pouca luz e mesmo assim ele fechou os olhos. Foi aí que eu disse: ele é autista, tenho certeza — lembra.

Com Lucas ainda bebê, Letícia começou a procurar por uma vaga. Mesmo insegura, ela decidiu matriculá-lo na mesma escola que as filhas mais velhas haviam estudado. O que era para ser “um sonho” acabou se tornando decepção.

— Era uma escola que eu confiava muito e que tinha a bandeira da inclusão até aquele momento. Na segunda-feira, acompanhei ele porque era adaptação. Na terça, a professora não deixou (eu ficar na sala). Ele ficava no cantinho, brincando com carrinho, e a professora dizia: “Crianças, venham para o lanche”, e ele não ia porque precisa de uma atenção a mais. Neste dia, ela disse: “A partir de amanhã você não precisa vim”, eu questionei e ela respondeu: “Você não precisa mais vir, teu filho nem fala, né, que coisa boa, não vai sentir a tua falta”. Para mim isso foi uma flechada, foi horrível — conta.

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Escolas precisam estar capacitadas para atender os alunos autistas, diz especialista

Letícia resolveu buscar outra unidade de ensino. Ao todo, foram cinco até conseguir uma escola que aceitasse matricular Lucas. Um cenário que se repetiu em 2022, quando ela teve que buscar um outro lugar para a criança estudar. Nesta segunda busca, foram 12 recusas por inúmeros motivos. Algumas escolas, Letícia afirma, “sumiam com a vaga” no momento em que ela falava sobre o diagnóstico:

— A escola que escolhe o meu filho, e não eu que escolho a escola. Tenho que matricular na escola que aceite ele. A lei da inclusão é clara. Meu filho tem direito a estar na escola e as crianças, neurotípicas, que não são deficientes, têm o direito de conviver com quem é diferente. O meu filho tem muito para aprender, mas ele também tem muito para ensinar — diz Letícia.

“É necessário criar um ambiente para o aprendizado”, defende especialista

A empresária Soleane Kammers passou por situação semelhante. Mãe de duas crianças autistas, ela teve a vaga para o filho mais velho negada na unidade de ensino onde tinha o sonho de matriculá-lo. O motivo da recusa apresentado na época: as possíveis adaptações para o atendimento do menino.

— Em outubro preenchi o formulário para a matrícula e ficaram conversando conosco até dezembro, dizendo que não sabiam se a vaga ia existir ou não porque teriam que fazer adaptações na sala de aula. A partir do momento que a escola cria empecilhos ou barreiras para fazer essa matrícula, isso já é considerado preconceito — afirma Soleane.

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De acordo com o Procon de Florianópolis, entre os anos de 2021 e 2022 não foram registradas denúncias de unidades de ensino que tenham negado vagas para crianças autistas. Mas o órgão de defesa dos consumidores informou que faz a fiscalização dos contratos das instituições de ensino para verificar “eventuais cláusulas discriminatórias”. A reportagem também procurou o Procon de Santa Catarina, mas não obteve retorno até o fechamento da edição.

Para Fátima de Kwant, pesquisadora de assuntos relacionados ao autismo, o papel das escolas vai além da vaga: é necessário criar um ambiente para garantir o aprendizado da criança.

— As leis também falam sobre adaptações para os autistas por meio do Plano Educacional Individualizado (PEI). Ele é essencial em todas as escolas onde existem crianças autistas, mas isso não está acontecendo. É raro haver escolas que utilizem o PEI do jeito que deveria ser utilizado – afirma Fátima.

Em nota, o Sindicato das Escolas Particulares de Santa Catarina (Sinepe) informou que orienta as unidades de ensino a respeitarem e cumprirem o que determina as leis. Mas a entidade acrescentou que essas escolas não estão autorizadas a ofertar a Educação Especial como modalidade de ensino, apenas a fazer a inclusão da criança.

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Confira a nota na íntegra:

“As escolas podem fazer uma avaliação prévia da situação para estabelecer o melhor programa pedagógico de atendimento. Essas escolas não estão autorizadas a ofertar a Educação Especial, como modalidade de ensino. Estão autorizadas apenas a fazer a inclusão de alunos especiais, seja por alguma deficiência ou superdotação. A atividade fim das escolas de educação básica regular é o ensino regular, com atendimento na área da inclusão para aqueles que tiverem condições de serem inseridos numa classe comum, conforme dispõe o art. 58 da LDB (lei 9394/96)”.

O que diz a legislação?

A lei nº 12.764 — conhecida como Lei Berenice Piana —, de 27 de dezembro de 2012, institui a Política Nacional dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autista. O texto cita a responsabilidade do poder público quanto ao atendimento das pessoas que possuem o espectro e determina uma série de direitos, desde o diagnóstico precoce até o acesso à educação e ao mercado de trabalho.

O direito a vagas nas escolas é garantido pelo artigo 7º que diz que “o gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos”.

Além disso, em 2020, ela foi incrementada com a sanção da lei 13.977, batizada de “Lei Romeo Mion”, que cria a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno de Espectro Autista, que dá prioridade no atendimento em estabelecimentos e serviços públicos e privados, principalmente na área da educação, saúde e assistência social.

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Já em âmbito estadual, os direitos das pessoas autistas são garantidos por meio da lei 17.292 de outubro de 2017, que criou a Política de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Ela obriga a inclusão de estudantes com o espectro nas classes comuns de ensino regular e a garantia de atendimento educacional especializado de forma gratuita, além de determinar a inclusão de um segundo professor de turma quando o estudante for diagnosticado “com sintomatologia exacerbada”.

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