Em uma área de 4 hectares dentro do Monumento Natural Municipal (Mona) da Lagoa do Peri, em Florianópolis, o que um dia foi uma pastagem de solo compactado e com histórico de criação de gado deu lugar a um sítio agroecológico e agroflorestal. O trabalho no Sítio Florbela, feito pelo casal Sérgio Araújo e Elaine Vargas nos últimos 12 anos, resultou na regeneração do solo e no cultivo de uma variedade de árvores frutíferas, especialmente as nativas daquela região.

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O mesmo acontece no sítio do seu Dauraci Alves dos Santos, em Praia Grande, no Sul do Estado. Na propriedade, com 36 hectares, incluindo oito matas de preservação que nunca foram retiradas, ele cultiva madeira de lei para móveis e construção civil, com espécies como cedro, canela-amarela, canjerana e baguaçu.

Sozinho, ele cuida dos cultivos que incluem paralelamente uma variedade de espécies frutíferas, como banana, pitaya, coqueiro, figueira, e outras como chuchu e café. Natural da cidade, o bisavô foi o primeiro morador das terras que hoje abrigam a agrofloresta, que fica próxima a cachoeiras e cabanas para hospedagem.

Ambos os sítios funcionam em formato de agrofloresta, uma proposta que tem se espalhado pelo mundo e ganhado relevância em Santa Catarina como uma alternativa de desenvolvimento rural sustentável. Nesse modelo, as várias culturas agrícolas e árvores são plantadas e usadas ao mesmo tempo, juntas e em um mesmo espaço.

Confira infográfico sobre as agroflorestas em SC

 
 

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O pesquisador da Epagri/Ciram, Fábio Martinho Zambonim, explica que as agroflorestas, também chamadas de Sistemas Agroflorestais de Produção (SAFs), são um sistema onde existe o cultivo de espécies lenhosas, como as árvores, arbustos, palmeiras e bambus, associado a culturas agrícolas, de herbáceas e animais em uma mesma área, ao mesmo tempo ou de forma sequencial. 

Esses elementos — a floresta, cultura agrícola e o animal — podem estar convivendo juntos, ao mesmo tempo, ou então podem ocorrer em sequência. Como exemplo, primeiro seria plantada uma floresta, que depois é podada em um corte raso para lavoura, e depois vem a criação de animal, mais tarde retornando para a floresta. Também é possível o formato de somente floresta com animal, ou somente floresta com cultura agrícola, sendo que o componente arbóreo é essencial, e o que caracteriza o SAF.

— Um SAF pode ser supercomplexo, um SAF que você tem no mesmo local, ao mesmo tempo, muitas espécies, 30 espécies vegetais entre árvores agrícolas e frutíferas. Ou você pode ter um SAF, que não deixa de ser um SAF, muito simplificado. Se eu tiver, por exemplo, fileiras de eucalipto cultivadas com soja, e depois outra fileira de eucalipto e soja, e outro eucalipto, também é um SAF, só que é um SAF bem simplificado — detalha.

O professor em Agroecossistemas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e coordenador da Rede de Sistemas Agroflorestais Agroecológicos do Sul do Brasil (Rede Safas), Ilyas Siddique, destaca ainda que a organização da agrofloresta ocorre de forma em que a variedade de espécies se ajudem entre si, ou ao menos não compitam pelos mesmos nutrientes, água e luz. 

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Para que isso ocorra, são plantadas próximas uma da outra as espécies que mais se complementam, ou seja, as que são mais distintas. Ainda, em vez de utilizarem produtos químicos, as agroflorestas dependem de conhecimentos populares e científicos para buscar um desenvolvimento sustentável da comunidade de plantas que as integram, no chamado “consórcio de culturas” ou “policultivo”.

— Elas são altamente adaptáveis às mais diversas condições climáticas, demandas sociais, contextos econômico e cultural, portanto não dependem de listas padronizadas de espécies, nem de insumos — afirma o professor.

Ilyas também destaca que esses sistemas funcionam melhor se forem combinados quatro princípios chave, sendo eles: alta densidade de plantio, o que evita o solo nu (onde não há cobertura vegetal) e aproveita a luz antes de chegar no nível do solo; alta diversidade funcional entre plantas vizinhas, ou seja, com diferentes tempos até colheita ou corte, diferentes demandas de luz, diferentes formas de crescimento, diferentes alturas quando maduras, entre outros; frequentes cortes seletivos (podas, roçadas, raleios e desbastes) de partes da biomassa para aproveitamento direto ou para adubação verde para acelerar a sucessão para estágios mais diversos e abundantes; diferentes conhecimentos que dialogam ativamente para que as diversas plantas se adaptem às condições e demandas locais, se complementem entre si, e possam gerar bem-estar e ajudar as pessoas a aprender a partir dos erros.

Experiências positivas

Entre os benefícios apontados pelo professor da UFSC dos cultivos no formato de agrofloresta estão a produção de uma diversidade de alimentos, medicinas, materiais para construção, adubo, entre outros, assim como um melhor aproveitamento do espaço, trabalho, e insumos, o que leva a economia de dinheiro. 

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— Enquanto produzem diversos bens materiais, regeneram solos, recuperam nascentes, restauram parte da biodiversidade na paisagem degradada pelas atividades humanas passadas — explica o professor.

Esses resultados têm sido observados pelo agricultor agroflorestal Sergio no Sítio Florbela, em Florianópolis. Ele relata que em áreas onde é feita a implementação de agroflorestas, a água “surge”, seja através de nascentes que reaparecem, pelas chuvas mais frequentes e pela melhor infiltração da água da água da chuva.

— Quando fazemos uma agrofloresta nesses moldes, a gente diz que está “plantando” água. A água começa a aparecer em forma de nascentes — explica.

Ainda, a temperatura alguns graus abaixo na área de agrofloresta em comparação com os arredores faz com que as nuvens pesadas condensem e chova na região. A presença de árvores também colabora para que as raízes perfurem o solo e alcancem o lençol freático. Quando a terra está muito compactada, por monocultura ou criação de gado, por exemplo, a água não se infiltra de maneira adequada no solo, afirma Sergio.

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Era o que ocorria na área do Sítio Florbela antes dos trabalhos realizados por ele e pela esposa no local. Por ser uma área de pastagem com monocultura de grama, quando chovia, a água escorria pelos morros, ia para o rio e ia embora, sem infiltrar o solo.

— Quando a gente iniciou lá no sítio, quando era tudo pastagem, olhávamos e não tinha pássaro, não tinha quase vida. Aqueles pássaros passavam voando, a gente não conseguia nem identificar, eles não ficavam ali. Hoje a gente enxerga o sítio como se fosse um “oásis” para esses pássaros que vivem no entorno — relembra.

A maior presença de pássaros, que chegam para se alimentar da variedade de frutas produzidas, também foi percebida pelo agricultor Dauraci dos Santos, que produz em Praia Grande. Entre as aves que costumam aparecer estão o jacu, a aracuã, a tiriva, entre outras. Outros benefícios listados por ele são a possibilidade de uma floresta que é produtiva durante o próprio cultivo, com plantas que atuam de forma a beneficiar umas às outras, auxiliando na manutenção das árvores nativas.

A experiência de cultivo com agrofloresta também tem sido positiva para Nicolas Zaslavsky, produtor no Sítio Nascente Do Arvoredo, em São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis. O agrônomo conta que adquiriu a área um pouco antes de se formar na UFSC, em 2014, já com o intuito de trabalhar com uma agrofloresta. O local conta com produção de frutas como banana, a palmeira-juçara para extração do açaí, abacate, frutas cítricas, além de outros cultivos como inhame, abóbora, milho, beterraba, cenoura, entre outros.

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Além de levar os produtos cultivados no sítio para venda na cidade, Nicolas também organiza eventos e cursos e recebe voluntários que vêm de diversas partes do mundo para aprender as técnicas de agrofloresta. Somente no último ano, pessoas de mais de 15 países, a maior parte delas vindas da Europa, buscaram o local para aprender.

Ele reforça que a principal diferença dos resultados objetivos em uma agrofloresta, em comparação com as monoculturas, é que enquanto o alimento é plantado, também está se plantando uma floresta. Dessa forma, o movimento natural da natureza é aproveitado, com a observação da floresta aplicada dentro da agricultura.

— Com a monocultura, quando uma área fica degradada, se parte pra próxima, então pra trás vai ficando áreas degradadas, conforme a pessoa vai trocando de lugar, vai deixando um deserto, e vai construindo um deserto. As máquinas da monocultura constroem o deserto e com o sistema agroflorestal a gente constrói uma floresta — alega.

As agroflorestas em SC

Em Santa Catarina, os principais Sistemas Agroflorestais de Produção (SAFs) são de complexidade média a alta, envolvendo várias espécies, explica o pesquisador da Epagri/Ciram, Fábio Martinho Zambonim. Ele destaca três principais sistemas entre os diversos formatos que podem existir:

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Silvo-bananeiro

Presente no litoral e Alto-Vale do Itajaí, o sistema é composto pelo cultivo de banana sob a sombra de espécies nativas. Com a sombra, a banana se beneficia por ter redução na incidência de pragas como a sigatoka. Além das arbóreas nativas no extrato superior, que fazem sombra para a banana, também é cultivada a palmeira-juçara, que tem sido utilizada para colher os frutos e produzir o açaí. Entre as árvores nativas estão o jacatirão, a licurana, o camboatá, algumas canelas, cedro e a embaúba. 

Essas espécies ficam no dorsal superior do SAF, seguido da palmeira-juçara um pouco abaixo. Também abaixo da palmeira-juçara é comum ter o cultivo do café-arábica, o que é considerado um resgate já que o cultivo de café em sistemas agroflorestais já foi muito comum em Santa Catarina entre as décadas de 1970 e 1980. Nesse sistema pode existir a criação de abelhas, mas não há criação de animais.

Caívas

Comum no Planalto Norte, as caívas são um sistema silvo-pastoril, que conta com espécies arbóreas em um campo arborizado. Entre as espécies arbóreas estão canela, imbuia, cedro, gerivá e aroeiras. Na pastagem há o pastejo de animais, e ainda, além da presença também de arbóreas nativas, o cultivo de erva-mate. As caívas são sistemas seculares tradicionais, e a erva-mate e a pecuária são os seus elementos principais.

Erva-mate sombreada

Presente no Oeste do Estado, a erva-mate sombreada não possui a presença da pastagem. Nesse sistema, a erva-mate é cultivada, manejada e adensada sob cobertura florestal de espécies nativas. A erva-mate é considerada atualmente o principal cultivo no formato de sistemas agroflorestais em Santa Catarina, ao lado da palmeira-juçara.

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A importância das agroflorestas para o Estado

O professor Ilyas Siddique explica que diversas áreas de Santa Catarina sofreram degradação ambiental que compromete o potencial produtivo e a saúde da população e dos ecossistemas. Ele afirma que a maior parte das APPs e outros ecossistemas sensíveis e desmatados são de menos de 1 hectare, estão na agricultura familiar e dispersos pelo território catarinense.

— Sem agroflorestas e sem envolvimento ativo e criativo dos agricultores familiares seria muito difícil restaurar ao menos metade dessas áreas degradadas. Mas com agroflorestas as famílias agricultoras poderiam desenhar e implementar diversos cenários de restauração — afirma. 

Para Ilyas, esses cenários passam por aproveitar alimentos saudáveis, valorizar a biodiversidade nativa sem reduzi-la, valorizar a cultura e os conhecimentos populares, gerar emprego para a população local nos territórios rurais e fortalecer a resiliência climática dos territórios, conservando água limpa, mitigando enchentes, entre outras ações.

O produtor e agrônomo de São Pedro de Alcântara, Nicolas Zaslavsky, vê Santa Catarina com potencial para se tornar referência no campo das agroflorestas. Atualmente, ele já recebe pessoas de diversos países no seu sítio para transmitir conhecimento em voluntariados e cursos, e também leva as técnicas desenvolvidas no Estado em viagens para o exterior.

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— Santa Catarina tem muito para ser um centro de referência, não só para o Brasil, mas também internacionalmente. Tem um ambiente favorável, de costas de serra, com clima bom, de montanha, que não é tão propício para a monocultura de larga escala — explica.

Outra possibilidade para o desenvolvimento das agroflorestas em Santa Catarina seria em conjunto com o turismo, afirma Nicolas, com atividades como “colha e pague” de frutas, por exemplo, em pousadas. Ele destaca ainda que a população possui um maior conhecimento sobre o tema do que em outros locais, ainda que pouco, o que ajuda a incentivar a compra de alimentos vindos das SAFs.

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