Construindo uma ouvinte e uma leitora. É assim que Priscila Cristina Freitas enxerga o caminho que ela trilhou no mundo da literatura e da educação, até o lançamento de seu segundo livro infantil, “Lava, lavadeira na pedra da cachoeira”. O livro será lançado neste sábado (10), às 9h30min, na Praça da comunidade Monte Serrat, no Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis. As ilustrações são de Péricles Santos.
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Aos 40 anos, nascida em Florianópolis, Priscila cresceu na comunidade do Monte Serrat, no Maciço do Morro da Cruz. Foi lá que ela começou a se interessar por histórias. Ao falar da infância, ela lembra que a paixão pela literatura foi crescendo a partir das histórias que os pais contavam, para distrair os filhos, em momentos de “apagão”.
— Fui me constituindo, como ouvinte e também como leitora. Os meus pais leram e inventaram histórias. Quando eu era muito pequena, tinha o que a gente chamava de apagão. A casa ficava toda escura e a minha mãe tinha que inventar alguma coisa pra gente fazer. Ela contava histórias ou a gente contava também. Então, esse mundo literário foi crescendo a partir desse gostar, desse ouvir dos pais fazendo algo que era simples, mas com um gesto de carinho e afetividade em vários momentos ou situações que precisariam desse afeto — conta Priscila.
Livro resgata história das lavadeiras do Monte Serrat
O livro escrito por Priscila conta a história de uma menininha negra, muito “curiosa e sapeca”, que, após após encontrar uma pedra “que brilha como um tesouro”, busca descobrir a fonte desse “tesouro” e, quando chega, vê o lugar, que era cuidado pelas lavadeiras, “gritando por ajuda”. A menina então mobiliza a comunidade em que vive para limpar o local, que volta a ser novamente um lugar vivo, de convívio social.
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A história de resistência das mulheres negras de Florianópolis passa também pela mãos das lavadeiras. Essas mulheres foram retiradas do Centro da Capital ainda no início do século 20. Metade delas se estabeleceu no Monte Serrat, o Morro da Caixa. O local repleto de nascentes serviu de sustento para muitas famílias, que em sua maioria eram chefiadas por mulheres.
Ajoelhadas à beira da fonte, as lavadeiras passavam o dia lavando roupas. Subiam e desciam os morros com sacolas nos braços e trouxas de roupas na cabeça. Nos anos 1910, no entanto, algumas áreas urbanas da Capital começaram a receber água encanada. Anos depois, surgiram as máquinas de lavar, e o trabalho ficou cada vez mais escasso para as lavadeiras.
Priscila Freitas afirma que a partir dessa história é muito importante valorizar o papel social dessas mulheres na comunidade para que outras possam conhecê-las e contar suas próprias histórias. Segundo a autora, atualmente a comunidade ainda tem uma moradora que faz esse tipo de lavação, não como antigamente, mas com um tanque dentro de casa.
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— Isso dá importância para essas mulheres, para mim é uma coisa muito especial e muito importante. Há uma importância em ver essa história sendo passada para as crianças conhecerem o que era antigamente, porque hoje elas só tem acesso à máquina de lavar — conclui Priscila.
Escrevendo sobre o passado
Refletir sobre a negritude, suas origens e a comunidade, fez Priscila transformar suas indagações em projeto de mestrado. No curso, ela passou a pesquisar documentos normativos, nacionais e municipais, afim de verificar as questões raciais pensadas nas infâncias. E o resultado foi a dissertação “A educação das relações étnico-raciais na educação infantil: Entre normativas e projetos políticos pedagógicos”.
Depois do mestrado, a autora diz que sentiu uma lacuna se formar, ao pensar em tudo que ela havia construído devido à comunidade. Foi com esse pensamento que ela voltou ao Monte Serrat, com vontade de oferecer algo em troca.
— Pensei em várias possibilidades, mas a que me encantou foi pensar que o que me aproximaria também das crianças seria a literatura. Então eu voltei pra esse lugar onde eu via muitas vezes o meu avô falar, contar várias histórias, e ele era um grande griô [contador de histórias, músico e guardião da cultura oral na África Ocidental], além de ser uma grande liderança pra comunidade. Eu ouvi também muitas coisas que a minha mãe e meu pai falavam sobre a comunidade, então eu pensei, poxa, por que não falar sobre alguma personalidade de Florianópolis. E aí surgiu de eu pensar sobre o gentil Camilo Nascimento Filho, que se intitulava como o Gentil do Orocongo — expõe Priscila.
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“O Orocongo do Menino Gentil” é o título do primeiro livro publicado por Priscila Freitas. Ele retrata a vida de um ilustre morador de Florianópolis que disseminou a cultura africana, afro-brasileira e açoriana por meio da sua cantoria e do seu instrumento musical de origem africana chamado “orocongo”.
Após a publicação da obra, Priscila passou a perceber que as pessoas queriam ler mais sobre as histórias dela, sobre as figuras do Monte Serrat, que estavam aos poucos se perdendo. Foi onde surgiu a ideia de escrever o livro sobre as lavadeiras do Morro da Caixa, o Monte Serrat.
— As lavadeiras têm algo importante pra mim. A minha avó foi uma das lavadeiras da comunidade. Eu falo muito pras pessoas é que tem todo um tempo de amadurecimento de quando se é jovem. Tem uma palavra que é muito bacana, é sankofa [de origem africana]. Significa olhar para o passado e refletir para o futuro. Então, é voltar a essa minha ancestralidade que, pra mim, eu não tinha conhecimento, eu já tinha ouvido falar, mas não tinha dado tanta importância. E aí, com tantos outros projetos que a gente foi fazendo na comunidade, eu fui pensando, poxa, tá na hora de eu falar sobre elas.
Entendendo a negritude
Formada em pedagogia na Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), Priscila conta que foi durante a graduação que ela passou a perceber mais a sua própria negritude e a importância dela. A escritora participou do Núcleo de Estudo Afro-brasileiro, que, segundo a mesma, deram a ela suporte teórico, pedagógico e metodológico para entender esse lugar que ela ocupava na sociedade.
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— Na comunidade onde eu nasci, isso não era um tema tão explícito. Eu lembro dos meus irmãos e a minha mãe falando: “olha, vai de tal jeito, se cuida. Porque pode ter coisas aí, ou ir num lugar que não é bacana”. Então eu fui tendo outros olhares, depois de sair de um lugar que eu tinha uma proteção e finalmente ir para o mundo. Saber essas questões do racismo que é muito forte, muito latente perante as injustiças que vão ocorrendo. E é muito cruel porque você, quando é criança, adolescente, jovem, você sofre muito cedo esse impacto.
*Sob supervisão de Andréa da Luz
Antonietas
Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.

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