Silenciosa, devastadora e que atinge milhares de mulheres no país em qualquer idade. Esta é só uma pequena definição do que é a violência doméstica, crime este que, só em 2023, fez mais de 177 mil vítimas em todo o Brasil, conforme dados do Atlas da Violência 2025, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em maio — um aumento de 22,7% em relação ao ano anterior, quando foram 144.285 casos. Violência essa que pode acontecer na rua, em casa, na escola ou até mesmo em ambiente virtual.
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Mas o que justifica os números tão altos de violência contra a mulher no Brasil? É isso que o livro “Agressão”, da jornalista Ana Paula Araújo, tenta explicar. Lançado neste mês, a obra busca, por meio de histórias de personagens de todas as partes do país, trazer um panorama de como é a realidade das pessoas que foram vítimas de diferentes tipos de violência dentro do contexto doméstico.
— As pessoas conseguem identificar melhor a violência física, mas não conseguem, muitas vezes, identificar a violência psicológica, a violência moral, a violência patrimonial até mesmo a violência sexual — diz.
Confira a reportagem especial “Cicatrizes: as marcas do feminicídio”
Para a jornalista, o livro é quase que uma continuação de “Abuso”, lançado em outubro de 2020 e que reúne dados e informações sobre os crimes de violência sexual no país. Agora, nesta nova publicação, Ana Paula Araújo discorre sobre o ciclo da violência nos mais diferentes ambientes, como por exemplo o virtual.
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— Tem algumas coisas que eu abordo neste livro que têm um recorte um pouco mais específico, que vale a pena comentar. Um deles é da violência virtual, que está crescendo principalmente entre menores de idade. E o que é muito triste é ver que, quando eu falo entre menores, eu estou falando de vítimas, de meninas e adolescentes, mas principalmente de agressores — conta.
Os desafios para combater este tipo de crime também fazem parte do livro, principalmente na aplicação mais efetiva da legislação vigente:
— A lei é muito boa e é uma das melhores do mundo de proteção à mulher. O que acontece é que muito do que está na lei não saiu do papel. A gente só conhece o lado policial da Lei Maria da Penha, que é muito importante. […] Mas a lei prevê muito trabalho educativo, que não é feito.
O NSC Total conversou com a jornalista sobre o processo de apuração do livro, como ela enxerga o cenário da violência doméstica no país e o que ainda é preciso para diminuir os índices. Confira:
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Depois de “Abuso”, que foi um livro onde você tratou sobre a violência sexual, chega nas bancas o “Agressão”, que fala sobre a violência doméstica. Como surgiu a ideia de falar sobre essa temática?
Este segundo livro é quase uma continuação do primeiro. Porque, no primeiro, eu basicamente falei sobre a violência sexual, mas ali já se vê presente, principalmente, a violência psicológica, a violência moral, e eu achei que precisava falar um pouco desses outros tipos de violência. Até porque são tantos tipos, que às vezes as mulheres vivem e não percebem que aquilo está no dia a dia. As pessoas conseguem identificar melhor a violência física, mas não conseguem, muitas vezes, identificar a violência psicológica, a violência moral, a violência patrimonial até mesmo a violência sexual. Vai muito além de um estupro. Por exemplo, tem o sujeito que controla essa mulher se ela usa um método anticoncepcional ou não. Tem o que tira a camisinha no meio da relação ou que não cumpre o combinado. Então são vários tipos de violência, além daquelas que estão no dia a dia, e que as mulheres não percebem. E eu achei que era importante falar.
No livro, cada capítulo fala de um tipo de violência ou você mescla isso com exemplos? Como é que você dividiu esses temas dentro do livro?
Eu trago as histórias de vítimas, cada uma com um aspecto da violência, com tipos diferentes de violência ou um tipo de reação diferente à aquela violência. E junto com as histórias das vítimas, trago muita informação sobre o que é a violência de gênero ou quais são os direitos das vítimas. O que está por trás dessa dependência emocional que muitas mulheres têm que não conseguem sair? São ciclos de violência. Eu entrevisto também agressores, especialistas, psiquiatras, médicos, policiais, juristas, pessoas que lidam com esse assunto no dia a dia. Tem bastante informação. É mais ou menos como foi o primeiro, mas agora ampliando um pouco mais para todos os tipos de violência.
Para o livro, você visitou todas as regiões do país em busca desses personagens. Durante essa pesquisa, você chegou a ver alguma diferença na forma como a violência doméstica é tratada nos diferentes locais?
Olha eu cheguei à conclusão que a gente tem uma ideia errada de que a violência doméstica atinge principalmente mulheres mais pobres, que têm uma dependência financeira, [e por isso] não conseguem sair de um relacionamento violento. Na verdade, eu encontrei violência doméstica em todas as classes sociais, com todos os níveis de escolaridade. Mulheres que têm completa noção do que é a violência de gênero e que mesmo assim se tornam vítimas. É algo que ainda está muito enraizado. Muitas vezes, mulheres de classe média, classe média alta, têm mais vergonha [de falar], sabe? Denunciam menos, silenciam por mais tempo, fingem que aquilo não está acontecendo. E a violência está presente em todas as regiões do país, em todas as classes, em todos os ambientes.
Nós tivemos muitos avanços na legislação nos últimos tempos. A Lei Maria da Penha, por exemplo, ano que vem completa 20 anos. Este ano tivemos a Lei do Feminicídio, que fez 10 anos. No entanto, algumas pessoas pontuam que são leis que ainda não trouxeram o efeito necessário. Qual sua percepção sobre isso? O que ainda é preciso avançar?
Eu acho que não há problema na legislação. A lei é muito boa e é uma das melhores do mundo de proteção à mulher. O que acontece é que muito do que está na lei não saiu do papel. A gente só conhece o lado policial da Lei Maria da Penha, que é muito importante. Tem o avanço com a medida protetiva, o afastamento daquele agressor, e, principalmente, a parte da punição. […] Mas a lei prevê muito trabalho educativo, que não é feito. E não só educação de agressores, mas também a educação nas escolas. Acho que tem um trabalho de prevenção na lei que ainda não saiu do papel. E aí acho que falta a gente investir mais em prevenção, em educação e em reeducação. Tem que reeducar homens que são agressores, que partem para a violência doméstica. Tem os mecanismos. E botar em prática as medidas protetivas, que são um enorme avanço, mas infelizmente a gente ainda vê mulheres que têm medida protetiva e que são assassinadas ou que são novamente agredidas. Então ainda faltam mecanismos melhores de controle da aplicação das medidas. Não acho que a lei em si precise de alterações, o problema está na aplicação.
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Um ponto importante que você citou é a questão da medida protetiva, já que ainda há resistência de algumas mulheres em fazer a solicitação ou não sabem como fazer. Como reforçar que ela é importante e fazer com que ela seja mais efetiva?
É importante a gente frisar que a medida protetiva salva vidas. Sim, acontecem os casos que a pessoa com medida protetiva ainda assim foi assassinada, foi novamente agredida, mas muitas vidas são salvas. Porque tem muitos casos que só pelo fato de ter aquela medida, aquele agressor receber aquela medida, já faz com que ele se afaste. E a gente sabe que é muito importante [a medida], principalmente no momento que a mulher está saindo desse relacionamento violento, é ali que ela corre o maior risco. É ali que é muito importante falar que se ela estiver sozinha, que ela denuncie, faça uma queixa na polícia, um registro, uma medida protetiva, tenha alguma proteção para ele ir embora. Mas [a medida] tem e pode melhorar. Na verdade, a maioria das mulheres que são assassinadas não tinha medida protetiva. Então, a medida protetiva tem um efeito sim. Ela não é perfeita, mas tem um efeito.
Durante o especial “Cicatrizes: as marcas do feminicídio”, vários especialistas reforçaram a ideia da educação. Isto porque, quando se fala em violência doméstica, se pensa muito na violência física, mas existe aquela que começa com um comentário, por exemplo. Como você traz essa versão mais educativa para que o leitor consiga perceber os sinais no dia a dia?
Acho que isso surge através das próprias histórias das vítimas. Por exemplo, [eu trago a história de] uma mulher que tem um dos pouquíssimos casos de condenação contra o agressor dela só por violência psicológica. Não tinha, nem nunca houve, violência física. Mas ela conseguiu provar todo o terror psicológico que ele fazia com ela. Trouxe, inclusive, problemas de saúde sérios para ela, através de mensagens [que ela recebia]. Então, isso é uma informação importante. É importante guardar o que você puder de mensagens, de coisas agressivas, que indiquem que ali tem uma violência psicológica, aquela violência que a pessoa não vê. Não precisa encostar a mão nela para ser violento. Aliás, a violência psicológica é a mais comum, mas é muito difícil, às vezes, uma mulher identificar. Quantas vezes a mulher acha que, “não, é porque é o jeito dele, é porque ele está nervoso”, enfim. Ou aquele homem está ali isolando aquela mulher da família, dos amigos. Destratando aquela mulher, ofendendo… tudo isso é violência e muitas vezes as mulheres não sabem. Acho que através das histórias fica mais visível, mais possível de enxergar.
Durante a produção do livro teve alguma situação ou história que te surpreendeu?
Todas são muito chocantes, né? Mulheres que são agredidas violentamente dentro de casa por aquele homem com quem elas têm um relacionamento, que é um homem que deveria ser o companheiro, proteger essa mulher. E é exatamente o oposto. Mulheres grávidas falando de várias situações que são agredidas. Na verdade, o que me chamou muito a atenção foi uma história bem oposta. Teve uma história um pouco diferente de todas essas, que é de uma mulher de uma cidade do interior de São Paulo, que começou a ter um relacionamento com um rapaz que ela já conhecia há muitos anos, que era amigo da família, era ali do grupo de amigos, [ela tinha] ótimas referências dele. [Ela] começou a namorar com ele e, umas duas semanas depois, ele começou a demonstrar um ciúme excessivo, e ela imediatamente rompeu o relacionamento. O ruim é que ele ficou tentando voltar com ela, pedindo desculpas, e ela em nenhum momento aceitou. De imediato ela cortou, acabou bloqueando esse rapaz de todas as formas e, apesar disso tudo, apesar dessa postura dela, ele foi atrás no trabalho e esfaqueou essa mulher quase até a morte. Ela sobreviveu por muito pouco. Tanto que no momento que ela foi socorrida, os bombeiros, inclusive, nem queriam levar achando que ela já estava morta. Hoje ela está bem, está viva. E o que me chamou a atenção é que essa história vai meio contra todos os conselhos que a gente pensa, né? Aquilo de quando ocorre a violência doméstica a pessoa pergunta: “porque ela continua nesse relacionamento?” Ela não continuou nesse relacionamento. Ela saiu imediatamente. “Ah mas era uma pessoa que ela não conhecia direito”. Ela conhecia muito bem. Então, todos esses clichês que buscam botar a culpa na vítima, essa história deixou muito claro que nada disso é real, que a culpa de uma agressão é única e exclusiva do agressor, que não tem nada que a vítima faça ou deixe de fazer que a torne mais vítima ou menos vítima. Então, acho que essa história é muito importante de ser contada. […] E você vê que é muito cruel essa questão da violência doméstica, porque fica toda uma cobrança em cima da vítima, né? Porque ela não mandou ele embora. Aí quando denuncia: por que demorou para denunciar? A vítima ser questionada o tempo todo é ruim. Por isso é muito importante a gente falar que a vítima está sendo alvo de um crime. Quem tem que ser questionado é o agressor, não o comportamento da vítima.
Até porque são muito comuns os comentários de que a vítima é a culpada por conta daquela violência…
Às vezes a gente escuta isso, não contestando a morte, mas a violência doméstica e a agressão. Na violência sexual, é muito comum aquele “mas por que ela bebeu?” Ela estava com essa roupa, porque ficou sozinha com aquele bando de homem? Gente, beber não é crime. Ficar sozinha andando na rua não é crime. Conversar com um homem não é crime. Usar roupa curta não é crime. Nada disso é crime, nada disso justifica nenhum tipo de agressão ou violência. Na pesquisa do primeiro livro eu vi muitos desses comentários em rede social, principalmente quando tinha alguma matéria relatando algum caso de violência contra a mulher. Você ia nos comentários e tinham comentários absurdos, questionando e julgando a vítima, até quando ela era criança. Uma coisa horrorosa. E a gente tem que falar sobre isso, porque esse tipo de perversidade não pode prevalecer. E muito do meu trabalho com esses livros é de falar disso para dizer o que tem que ser dito, né? O que deveria ser meio óbvio para todo mundo, mas não é.
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E também é preciso reforçar isso nos órgãos de segurança, certo?
Na polícia e nos hospitais. Quantas vezes uma pessoa vai buscar um atendimento após uma violência sexual ou após uma violência doméstica e ainda é tratada com preconceito, com descrédito, com deboche?
O que mais você destaca que o leitor irá encontrar no livro?
Tem algumas coisas que eu abordo neste livro que têm um recorte um pouco mais específico, que vale a pena comentar. Um deles é da violência virtual, que está crescendo principalmente entre menores de idade. E o que é muito triste é ver que, quando eu falo entre menores, eu estou falando de vítimas, de meninas e adolescentes, mas principalmente de agressores. Então a gente tem toda essa esperança numa nova geração, com mais educação, com mais conhecimento, a gente tem falado mais desse assunto, e desanima muito ver que, entre os agressores, há muitos menores de idade, que eles vão para as redes sociais para agredir mulheres e meninas. Faço também um recorte de violência contra empregadas domésticas que, muita gente não sabe, mas é passível de ser enquadrada dentro da Lei Maria da Penha, porque acontece no ambiente doméstico. E aí entram demais casos, além de violência física, violência psicológica, moral. Entra muito caso de violência patrimonial, que você não paga os direitos da funcionária que está dentro da sua casa, e é um caso de violência. Também tem um capítulo sobre mulher trans, que é uma coisa muito específica, porque falar sobre essas mulheres de um modo geral já é um assunto muito delicado. Se a mulher cis se sente culpada, a mulher trans ela nem pensa em pedir socorro. Sabe por quê? Ela acha que vai ser ridicularizada. É um capítulo bem bom e bem interessante também no livro, onde aprendi muita coisa ali.
É interessante esse ponto da violência virtual principalmente por conta discussão em cima desses grupos que têm surgido na internet, principalmente quando você vê que são crianças muito jovens e a forma como eles se organizam…
São grupos enormes. E é muito louco porque eles pegam crianças, né? Adolescentes muito novos começam a ler uma conversa totalmente inocente e a coisa vai crescendo, e quando você vê, tem meninas que passam anos sendo chantageadas e produzindo conteúdo, e algumas até se automutilando. É um show de horrores.
Ou seja, os desafios da educação para combater esse tipo de violência continuam?
Sim, os desafios continuam. Eu acho que temos falado muito mais sobre o assunto do que a 10 anos atrás, mas ainda temos muito que avançar.
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Reportagem especial fala sobre as marcas do feminicídio em SC
Em março, o NSC Total lançou a reportagem especial “Cicatrizes” que, dividida em quatro partes, mostra detalhes dos números de Santa Catarina e conta histórias de famílias que foram massacradas pela violência doméstica. A reportagem também detalha como a legislação avançou nos últimos anos e o que ainda falta para que as mulheres se sintam protegidas, sem medo de morrerem por simplesmente serem mulheres, provocando uma reflexão sobre o crime e apontando que, sem educação e mudança de comportamentos, a sociedade vai continuar matando mulheres.
A produção durou cinco meses e foi feita a 12 mãos de mulheres, sendo cinco jornalistas e uma designer. Além do relato de parentes de vítimas, a reportagem também mostra a história de mulheres que se reergueram após episódios violentos e hoje ajudam outras mulheres. Especialistas e o poder público também foram ouvidos com o objetivo de trazer possíveis soluções para diminuir os índices.
O leitor pode conferir a reportagem completa através do link.
Antonietas
Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.

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