Jair Messias Bolsonaro chegou à Presidência da República aclamado por gritos de mito e impulsionado por uma onda que levou seu nome. Deputado federal do baixo clero com 27 anos de mandato, conseguiu catalisar a insatisfação popular em ascensão após os protestos de 2013 e o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016. A popularidade atestada nas urnas em 2018 foi construída ao encarnar o sentimento de antipetismo alavancado pela Lava-Jato e emplacar pautas conservadoras como a liberação do armamento e penas mais duras contra criminosos. Sete anos e um mês depois, o mito conheceu seu epílogo nesta semana com a prisão e o início do cumprimento da pena de 27 anos e 3 meses por crimes ligados a uma tentativa de golpe de Estado.

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O que ocorreu ao longo dos sete anos que separam a ascensão e o ocaso de Bolsonaro foi uma jornada de paixões, conflitos, protestos e polêmicas. A chegada de Bolsonaro à Presidência da República ocorreu após quatro vitórias consecutivas do PT e dois anos de um mandato-tampão do ex-vice Michel Temer (MDB). Com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) preso e figuras conhecidas da política e do empresariado também detidas ou arranhadas pelos escândalos de corrupção da Lava-Jato, Bolsonaro conseguiu cristalizar a imagem de “outsider”, mesmo estando há quase três décadas na Câmara dos Deputados e tendo filhos também inseridos no meio político.

Os 10 passos que levaram à prisão de Bolsonaro

As frases polêmicas tentavam conferir uma imagem de força hercúlea a Jair Messias. Aos poucos, construíram carisma e papel de liderança no campo da “nova direita” então em formação no país. A inspiração dos filhos em cursos do ideólogo Olavo de Carvalho, o discurso simpático aos evangélicos, o uso de redes sociais de uma forma direta com o eleitorado, com memes, tom apelativo e até mesmo disparos de mensagens em massa com desinformação também montaram o quadro. Além disso, fatores como o cenário internacional de fortalecimento da direita, com a chegada ao poder de Donald Trump nos Estados Unidos dois anos antes e o aumento de partidos de extrema direita na Europa convergiam para o “melhor dos mundos” para o projeto bolsonarista. Uma facada em um atentado que quase matou o então candidato a um mês da eleição rendeu o último impulso de apelo popular para a campanha.

— O Bolsonaro ganha essa alcunha de mito e representa toda uma classe de apoiadores que estava carente de uma liderança mais à direita, que trouxesse não só o conservadorismo no campo social, mas um discurso mais liberal no campo econômico. Então, você cria essa figura, somado ao fato de ser alguém ligado às Forças Armadas, o que traz outra simbologia, a ideia de família, com a presença de lideranças religiosas. Tudo isso cria um prato cheio para a ideia de que chegou o nosso herói, o salvador, algo que o Lula também já representou para a esquerda — compara o professor Daniel Pinheiro, pesquisador de Cultura Política da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

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Turbulências no poder

Uma vez no poder, Bolsonaro viveu uma lua de mel com os apoiadores nos primeiros meses, ainda que com oposição de um fragilizado PT. Convocou ministros até então populares, como Sérgio Moro e Paulo Guedes, o que blindou as avaliações de início da gestão. Flexibilizou o acesso a armas e aprovou propostas como o Pacote Anticrime de Moro e a Reforma da Previdência, a mais polêmica do primeiro ano de gestão. O primeiro baque veio com a saída do ex-presidente Lula da prisão e a perspectiva de candidatura do petista como rival nas urnas na eleição seguinte. Em meio a isso, rompeu com o PSL, partido pelo qual havia sido eleito, anunciou a criação de um partido próprio, que nunca saiu do papel, e começou a colecionar frases polêmicas e a pregar a linguagem do conflito, com ataques a instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2020, a pandemia de Covid-19 parou o mundo e abalou as estruturas do governo. A demora nas ações de resposta à crise de saúde, aparições públicas em aglomerações durante período de apelo das autoridades sanitárias por isolamento, trocas de ministros, crise política, questionamentos à eficácia das vacinas, defesa de tratamentos sem comprovação científica como o uso de cloroquina e aumento de preços ajudaram a minar a avaliação do governo. Cobrado pela imprensa, Bolsonaro respondia com ataques, reações desequilibradas e até deboche, como a imitação de pacientes com falta de ar. Tudo isso compôs a gestão bolsonarista da pandemia, apontada por muitos como o principal calcanhar de Aquiles que começou a derrubar a imagem de mito.

Bolsonaro elevou o tom à medida em que se deparava com desafios da gestão. Colecionou uma lista de supostos “traidores” que ganharam a ira de seus apoiadores, indo da ex-deputada recordista de votos Joice Hasselmann ao ex-governador catarinense Carlos Moisés. O alvo maior, no entanto, tornou-se a democracia. Bolsonaro fez lives e discursos questionando a urna eletrônica, defendendo a volta do voto impresso, ameaçando ministros do STF e chegando a sugerir que o país poderia não ter eleições. Em um dos discursos mais simbólicos, afirmou só ter três alternativas de futuro, “estar preso, estar morto ou a vitória” — uma profecia edipiana de quem não conseguiu escapar do próprio destino.

Quando conseguiu fazer com que o Congresso pautasse projeto de implantação de voto impresso, a um ano das eleições, as Forças Armadas fizeram um desfile de tanques e blindados em frente ao Congresso — a proposta foi rejeitada, a despeito da pressão velada e da trégua com o parlamento mantida com munições como o orçamento secreto. Mais tarde, a investigação da Polícia Federal apontaria que os ministros discutiram ainda durante o governo tentativas de evitar a eleição e, depois, de impedir a posse do presidente eleito Lula.

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O doutor em Ciência Política e professor da faculdade Ielusc, de Joinville, João Kamradt, confirma que Bolsonaro teve erros como a gestão da pandemia e os ataques às instituições, fatores que o isolaram politicamente.

— A trajetória de Bolsonaro é um caso fascinante de autodestruição política. Ele surfou uma onda perfeita em 2018, que tinha antipetismo, Lava-Jato, as redes sociais, das quais ele soube se aproveitar muito bem, uma economia em crise, e acabou transformando décadas de marginalidade que ele tinha no Congresso em uma vitória meteórica. Mas aí está um ponto: ele nunca entendeu que governar exige mais do que manter uma base fanática constantemente mobilizada. É preciso mais do que isso — avalia.

As consequências das eleições 2022

As ameaças explícitas ao regime democrático e a reprovação da gestão da pandemia fizeram com que a eleição de 2022 se tornasse um debate sobre a continuação ou não da democracia no país. Uma frente ampla liderada por Lula, mas com apoio de nomes diferentes matizes ideológicas como Geraldo Alckmin, Simone Tebet, Marina Silva e João Amoêdo, venceu por margem estreita, 50,9% dos votos, conquistando uma volta redentora do petista para um terceiro mandato após mais de 500 dias preso. A derrota fez quebrar o espelho de Narciso, e Bolsonaro reagiu ao resultado das urnas eletrônicas com um isolamento de quase 40 dias.

O silêncio estimulou a esperança e a conspiração em apoiadores que bloquearam rodovias, provocaram tumultos com agressões a policiais e acamparam em frente a quartéis com pedidos inconstitucionais como intervenção militar. Bolsonaro não reconheceu a derrota, e viajou para os Estados Unidos para não passar a faixa presidencial ao sucessor. Enquanto isso, aliados tentavam se desfazer de joias recebidas durante o mandato, em esquema também investigado. Segundo a Polícia Federal, nesse período o então presidente ainda tramou com militares, propôs a chefes das Forças Armadas uma ruptura para intervir na Justiça Eleitoral e chegou a alterar uma minuta de golpe para tentar permanecer no cargo.

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— A trama golpista não é um raio em um céu azul. Ela é o ápice de uma escalada autoritária que começa com o ataque às urnas em 2021, que tem militares de ponta sendo cooptados, rascunho de golpe circulando pelos prédios do governo federal e o próprio Bolsonaro nunca aceitando a derrota e mostrando aos eleitores que estava tramando esse processo — avalia o doutor em Ciência Política João Kamradt.

Descontentes com a transição democrática do poder, a horda de bolsonaristas radicais invadiu os prédios públicos dos Três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. As cenas dos ataques às sedes do governo foram o ponto de partida para as investigações que revelaram a trama golpista e o papel de cada um dos integrantes. Os oito réus do chamado núcleo crucial do golpe, do qual Bolsonaro fez parte, foram condenados a penas entre 2 e 27 anos de prisão. O julgamento foi concluído em setembro de 2025. Após o prazo e a rejeição dos recursos, os condenados foram presos e intimados a começar a cumprir a pena nesta semana, em diferentes unidades prisionais.

Conheça os réus do núcleo 1 da trama golpista

— A articulação pelo poder às vezes toma dimensões que fazem essas figuras muito emblemáticas acharem que o apoio dos seus grupos, como ele de fato tinha, o colocam em um patamar de quase intocável, em uma redoma, uma proteção. Isso vem de um contexto de populismo e também de popularidade. Quando você vê que seu discurso se populariza muito facilmente, você se acha o representante e porta-voz desse discurso, e com isso você acha que pode estar inclusive acima da lei. É semelhante ao que ocorreu também com a esquerda em casos como o Mensalão, a Lava-Jato — analisa o professor e pesquisador de Cultura Política da Udesc, Daniel Pinheiro.

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Alçado à Presidência com o apelo de mito, Bolsonaro viu em sete anos a imagem despencar de esperança de renovação na política a ameaça de ruptura democrática, sendo preso e condenado por golpe de Estado. Uma espécie de voo de Ícaro na política brasileira: subiu rápido, ignorou alertas e limites institucionais e caiu com a mesma intensidade.

O futuro da direita e do bolsonarismo

Bolsonaro emprestou o nome à onda que varreu o país e alçou uma série de figuras pouco conhecidas a lideranças políticas nacionais em 2018. Nas três eleições seguintes, o termo onda ficou pequeno para descrever o fenômeno que continuou a eleger apoiadores de Norte a Sul do país. A onda virou corrente política, também batizada pelo sobrenome: o bolsonarismo. O movimento perde força com a condenação e a prisão de Bolsonaro, mas dá sinais de que está longe de se desmobilizar. As decisões desta semana provocaram novas reações. O senador Flávio Bolsonaro, filho 01 do ex-presidente, já anunciou a mobilização para tentar aprovar um projeto de anistia no Congresso. Se a proposta não tiver votos, um acordo para a versão mais light, que foca na redução das penas por meio de mudanças na dosimetria dos crimes de golpe, também pode ser bem-vinda.

Dos Estados Unidos, de onde busca sanções e medidas de pressão norte-americanas para defender o pai, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho 02, também reagiu chamando a prisão de “bizarrice” e de fruto de um “julgamento político”. Pré-candidato ao Senado por SC, Carlos Bolsonaro também falou sobre o pai. “ Ele provou, diante de todos, que é possível fazer muito com pouco. Hoje, ele foi esmagado pelo peso da lei”, escreveu, em uma postagem em inglês nas redes sociais.

A lista de defensores é extensa e envolve governadores, deputados e prefeitos, inclusive de SC, além de eleitores anônimos nas redes sociais. Toda essa corrente faz crer que o bolsonarismo não deve sucumbir pela prisão do seu líder. Da cela na superintendência da PF, Bolsonaro deve receber visitas e se valer de interlocutores como o filho Flávio e a esposa Michelle para dar recados e participar das decisões sobre os passos políticos do bolsonarismo. Uma espécie de versão à direita do que ocorreu com Lula e o PT durante a prisão do atual presidente, em 2018.

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Entre as lideranças do PL e do bolsonarismo, o discurso e manifestações de apoio seguem na linha de perseguição ao ex-presidente e de abusos do STF. “Bolsonaro está preso não por causa de uma tornozeleira, mas porque é o maior líder à direita e ameaça o projeto e poder do sistema”, escreveu a deputada federal Carol de Toni nesta semana em uma publicação nas redes sociais.

Entre as definições mais importantes deve estar quem será o herdeiro do espólio dos votos bolsonaristas na eleição presidencial de 2026. A disputa tem o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), apontado como favorito, mas os passos são observados de perto por outros governadores interessados no posto, como Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Ronaldo Caiado (União), de Goiás. Outras decisões locais que viraram sensíveis à unidade bolsonarista, como a candidatura de Carlos Bolsonaro ao Senado por SC, também devem passar pelos 12 metros quadrados da sala da PF que agora abriga Bolsonaro.

Em contrapartida, o desfecho de Bolsonaro preso deve servir de oportunidade para parte da direita que já estava interessada em se afastar do ex-presidente e vê-lo com menor influência no jogo eleitoral. A partir disso, na esteira da perda de poder político do ex-presidente pode surgir um fortalecimento de partidos do Centrão e a criação de alternativas de direita moderada. Nomes como Ratinho Júnior e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, são “pré-candidatos” a liderar essas correntes nacionalmente, mas nos Estados também surgem estratégias de uma terceira via ou direita mais soft, em alternativa ao bolsonarismo raiz.

Para o pesquisador de Ciência Política da Udesc, Daniel Pinheiro, não há hoje na direita uma figura como Bolsonaro, e a discussão atual é saber se nomes como Michelle ou algum dos filhos do ex-presidente teria força para ocupar esse espaço:

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— Como movimento para o momento atual, o desafio para a direita como um todo é construir uma persona capaz de se eleger em 2026, independente da leitura das pessoas sobre o bolsonarismo.

O professor do Ielusc, João Kamradt, explica que movimentos personalistas em geral têm dificuldade de sobreviver à prisão ou desaparecimento de seu líder, mas que o bolsonarismo se tornou uma “subcultura”, com influenciadores, parlamentares e representantes políticos.

— A prisão pode até martirizar ele temporariamente, mas também vai abrir espaço para que outros passem a disputar essa herança política. A extrema direita não desaparece, não vai sumir, só vai mudar de rosto. O problema é que nenhum dos potenciais herdeiros do bolsonarismo, nem os filhos dele, nem o Tarcísio, nem ninguém tem o carisma e a autenticidade de agressividade que Bolsonaro tinha. Bolsonaro é genuinamente aquilo, os outros acabam sendo só cópias — conta.

Os impactos da prisão no cenário eleitoral de SC

Santa Catarina foi terreno fértil para as ondas de Bolsonaro nas duas últimas eleições presidenciais. Em 2018, elegeu como governador o então desconhecido comandante Carlos Moisés (PSL), além de quatro deputados federais e seis estaduais. Em 2022, Bolsonaro repetiu o feito e elegeu o governador Jorginho Mello (PL), além de fazer um senador, seis deputados federais e 11 estaduais, com recordistas de votos. Por conta disso, a prisão e a condenação de Bolsonaro causam impactos na política catarinense.

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O sobrenome Bolsonaro já é protagonista da polêmica da corrida eleitoral do Estado até agora. A indicação pelo ex-presidente do filho Carlos Bolsonaro para concorrer ao Senado por SC causou turbulência no PL. Isso porque a manobra fecharia o espaço à catarinense Carol de Toni disputar o Senado — a outra vaga da chapa deve ficar com Esperidião Amin (PP), por garantir apoio e tempo de TV ao projeto de reeleição de Jorginho. Nas últimas semanas, a deputada estadual Ana Campagnolo (PL) foi criticada pelos filhos de Bolsonaro após sair em defesa de Carol de Toni. A pré-candidata a senadora tem convites de partidos como o Novo e pode deixar o PL.

Essa será uma das decisões relevantes do PL em SC que devem precisar ser tomadas com o ex-presidente preso na sede da PF. Além disso, a perda de visibilidade de Bolsonaro pode também abrir espaço a outros assuntos na campanha estadual. Uma possível prova de fogo para o PL sem a figura do ex-presidente ativa.

Atualmente, a corrida pelo governo de SC em 2026 tem como principais pré-candidatos o governador Jorginho Mello (PL), o prefeito de Chapecó, João Rodrigues (PSD), e o ex-deputado federal Décio Lima (PT). Outros nomes, no entanto, como o prefeito de Joinville, Adriano Silva (Novo), têm ganhado força como possíveis concorrentes.

— Santa Catarina ainda é um reduto do movimento bolsonarista. Isso vai fazer também com que se possa abrir espaço para outro tipo de direita. No Estado, pode dar espaço ao partido Novo, por exemplo, que pode ser o destino de Carol de Toni — aponta o professor e pesquisador em Cultura Política da Udesc, Daniel Pinheiro.

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