Era um domingo de manhã quando Pedro* saiu de casa para ir ao mercado e a vida dele virou de cabeça para baixo. No trajeto acabou abordado pela polícia e foi preso por engano em Navegantes, no Litoral Norte de Santa Catarina. Dali foi direto para a cadeia, onde amargou 35 dias numa cela por um crime que não cometeu.

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— Tiraram minha dignidade de homem, de pai — desabafa.

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O pesadelo teve início em 2017, com uma abordagem da Polícia Militar. Pediram os documentos, mas o pescador não tinha em mãos. Ainda assim passou o nome completo, data de nascimento e as informações sobre os pais. Ao consultarem o sistema, uma ordem de prisão estava em aberto com o nome dele por assassinato e roubo.

Em questão de segundos, já estava algemado e com agentes na casa dele. A partir dali, começou a agonia de tentar mostrar que ele não era quem as autoridades procuravam.

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— Eu expliquei que trabalhei três anos para a Polícia Militar como cozinheiro, que fiz curso na Marinha, mostrei meus diplomas de pescador, duas carteiras de trabalho cheias, mas eles me algemaram, botaram na viatura e levaram direto para Canhanduba — relata.

O problema é que ninguém se deu conta que apesar de a pessoa procurada pela Justiça ter o mesmo nome de Pedro, os dois têm mães diferentes. A informação passou despercebida e a partir dali foram 11 dias totalmente isolado na prisão e outros 24 disputando espaço numa cela com o dobro de pessoas em relação à capacidade.

— Eu dormi em cima do vaso, humilhado. Depois, debaixo de uma pia, no corredor até arrumar uma cama. Entrei em desespero, tive depressão, tentei me matar e os outros presos não deixaram — recorda.

Pedro veio para Santa Catarina há nove anos. Primeiro a passeio, na casa do irmão. Gostou da região e decidiu ficar. Era visto como alguém dedicado e responsável na empresa de pescados onde trabalhava, tanto que o dono do negócio liberou uma quitinete para o funcionário morar sem cobrar nada. 

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Quando a polícia passou por lá, o engano se tornou vergonha.

Ao saber que o colaborador tinha sido preso, o empresário mandou tirar as coisas dele do imóvel. Mais tarde, quando o mal-entendido foi esclarecido, Pedro voltou ao trabalho no mesmo local. Só que aí os olhares e piadas quanto à inocência dele se tornaram um fardo pesado demais para carregar mesmo com a consciência limpa.

— O pessoal me olhava de outra forma, aí procurei sair de Santa Catarina. Peguei minha família e vim embora para o Mato Grasso, estou aqui no garimpo trabalhando. Às vezes vou aí na casa da minha mãe, mas não fico muito porque as pessoas julgam — lamenta.

Quando Pedro foi para trás das grades, os pais dele venderam tudo o que tinham em Belém do Pará, cidade natal da família, e vieram para o Sul. Caçula de oito filhos, o hoje garimpeiro conta que nunca imaginou ter que ver a mãe na porta da cadeia. E era ela quem estava lá quando os 35 dias de pesadelo acabaram.

— Eu tenho 40 anos e sempre falei para os meus filhos que se um dia eles fossem presos não deviam esperar por mim, porque eu nunca ia à porta da delegacia, porque não aceito filho vagabundo. Acabou que fui preso como um — pontua Pedro.

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A espera pela indenização

Passados cinco anos do engano que mudou a vida do ex-morador de Navegantes, a indenização para tentar reparar o erro ainda não saiu. No fim do ano passado a Justiça condenou o governo do Estado a pagar R$ 30 mil a Pedro, mas ainda cabe recurso.

No entendimento do juiz Rafael Espindola Berndt a prisão equivocada poderia ter sido evitada se os agentes tivessem feito uma consulta mais elaborada no sistema, como mostra o texto da sentença.

“A gravidade da ofensa é expressiva, pois a conduta praticada foi indevida. A extensão do dano também é bastante razoável, dado as inegáveis mazelas atinentes à segregação a qual foi exposto o autor. Notadamente, o abalo é agravado pelo lapso temporal transcorrido até sua soltura, bem como o tempo transcorrido até o requerente efetivamente conseguir efetuar sua defesa através da defensoria pública estadual, a qual proporcionou a correção do erro cometido”.

O governo do Estado reconhece a falha, porém ainda não pagou Pedro. De acordo com a Procuradoria-Geral de SC, não se questiona o mérito da ação judicial, mas os valores e critérios de atualização destes. 

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* A identidade do homem foi preservada pela reportagem.

Indenização não é automática e costuma demorar a ser paga
Indenização não é automática e costuma demorar a ser paga (Foto: Lucas Correia / Arquivo Santa / 06/07/2017)

É mais comum do que se pensa

Santa Catarina não tem um levantamento sobre prisões equivocadas no Estado, sejam elas por falhas no julgamento ou na execução dos mandados judiciais, como aconteceu com Pedro. Mas os casos não são raros e se repetem com certa frequência em todo o Brasil. É o que conta a advogada Flávia Rahal, integrante do Innocence Project Brasil, que já recebeu mais de quatro mil pedidos de ajuda. 

— A nossa ONG é relativamente nova e temos um número crescente de pedidos de ajuda, sendo que ainda não fazemos trabalho de divulgação da existência da Innocence Project Brasil nos estabelecimentos prisionais. Porque na nossa percepção, quando isso for feito, o número de pedidos vai ser gigantesco — revela.

João Alves Ferreira, que morava em Trombudo Central, no Alto Vale do Itajaí, passou quase três anos preso por engano. Ele chegou a ser condenado em 2010 por estupro, recorreu por causa das inconsistências na acusação e mais tarde a Justiça reconheceu que o homem não havia cometido o crime pelo qual havia sido sentenciado. 

Os motivos que levam às prisões equivocadas no país são variados. Mas um salta aos olhos:

— É muito óbvio para nós depois desses anos de trabalho que uma condenação injusta é fruto de várias causas e algumas são muito recorrentes, é o caso do reconhecimento equivocado. Esse talvez seja o principal deles no Brasil. Mas também há uma questão pericial. Há muitos casos em que a perícia não é feita, ou é falha. Há muitos casos também de falsas confissões — pontua Flávia.

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A defesa de João percorreu um longo caminho até mostrar que o homem era inocente. E mesmo com um juiz admitindo que houve um erro, o pai de três filhos ainda precisou abrir um processo para cobrar indenização pela falha. Isso porque o processo não é automático, depende de manifestação por parte da vítima. Uma nova batalha que não apagava o equívoco.

A indenização não tem por finalidade apagar a marca deixada, servindo unicamente como alívio à dor sentida, ligando-se à reprovabilidade do ato e à sua consequência psíquica frente à vítima — disse o desembargador Luiz Fernando Boller na decisão. 

João foi aos tribunais para que o Estado pagasse uma indenização de R$ 64 mil ao homem, que trabalhava em uma madeireira na época. Era um pedido de recompensa pelo tempo que não pôde estar na labuta. A Justiça concordou, mas passados oito anos, João morreu vítima de câncer, agravado pela Covid-19, sem receber. 

— Ele fazia muitos planos. Queria se tratar, achava que pagando ia se curar mais fácil. Também dizia que ia ajudar os três filhos, comentava que ia comprar um carrinho pra um, me ajudar a construir a casa. Ele era tudo para nós — contou a filha Cleciana, quando o pai partiu, em agosto do ano passado. 

Em maio de 2022, o pagamento ainda não tinha ocorrido. 

— É um processo bastante difícil. Lá nos Estados Unidos, depois de 30 anos de atuação da ONG, já se tem uma consciência muito mais objetiva da necessidade que uma pessoa presa injustamente tem. Então existe uma indenização automática, que decorre do reconhecimento da inocência. Aqui no Brasil estamos anos luz disso e há uma resistência do Poder Judiciário nesse reconhecimento — lamenta a advogada. 

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É possível evitar? 

Algumas falhas que levam inocentes à cadeia poderiam ter sido evitadas com as audiências de custódia, implantadas em Santa Catarina em agosto de 2017. A apresentação perante o juiz antes de ser levado ao sistema prisional pode impedir, por exemplo, que pessoas com o mesmo nome que eventuais criminosos fiquem atrás das grades por engano. 

Foi o que aconteceu em um caso recente em Blumenau. A Defensoria Pública percebeu o erro no cumprimento da ordem judicial e conseguiu colocar a pessoa de volta em liberdade no mesmo dia da prisão, conta o defensor Fernando Correa. A orientação dele é que se ainda com o procedimento de apresentação perante o juiz o equívoco persistir, procure assistência jurídica. 

Ela é oferecida gratuitamente e os contatos estão disponíveis aqui