O quarto pintado de rosa, o guarda-roupa cheio de roupinhas e as dezenas de fraldas espalhadas anunciavam a espera da bebê Ayanna, que tinha o nascimento previsto para meados de setembro. Fernanda Frensch Lopes sonhava com o momento em que seguraria a primeira filha nos braços. A espera, porém, foi interrompida por uma série de negligências médicas no parto, segundo denúncia da família. Ayanna nasceu com vida e saudável, mas teve uma parada cardíaca e morreu em uma maternidade de Joinville.

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A família acredita que a indução do parto normal, a negativa para realização da cesárea, a demora para o nascimento e a forma como a neném foi “puxada” tenham levado Ayanna à morte. Exames periciais estão sendo realizados para tentar apurar a causa do óbito. Por enquanto, a certidão diz: “na dependência de exames complementares”, pois nos testes preliminares não foi possível encontrar uma causa.

Como o atendimento começou

Fernanda teve uma gravidez de risco. Ela descobriu pressão alta e diabetes antes dos três meses e, desde então, fazia acompanhamento na Unidade Básica de Saúde. Com oito meses, foi chamada para ser assistida como gestante de risco na Maternidade Darcy Vargas.

Sabendo das suas condições, desde segunda-feira (1º) sentia cólicas e foi até a maternidade, sempre acompanhada do companheiro e pai de Ayanna, Fabiano de Sousa. Lá, descobriu que já tinha uma pequena contração.

— Aí quando fizeram o toque [na segunda], eu estava com dois dedos. Aí mandaram vir para casa. Aí na quarta de manhã, quando eu acordei, tinha saído o “tampão”. A médica já tinha dito na segunda: ‘qualquer coisa que sair, tampão, sangramento, ela não mexer, pode voltar que a gente vai te atender na prioridade’. Aí a gente voltou e quando chegou já tava de três dedos. Aí ela falou: ‘vai para casa, mas na sexta, como tu já tem consulta, tu pede para eles fazerem o toque de novo, só para ver, porque tá evoluindo muito rápido’ — lembra Fernanda.

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Na quinta-feira (4) voltou para a maternidade porque acreditava estar com contrações. Primeiro, teve o exame de toque negado porque não tinha outros sintomas, entretanto, diante da insistência, teve o exame realizado. Lá, teve identificados cinco dedos de dilatação e a indicação de que a bebê poderia nascer. Fernanda foi internada e as fortes dores começaram.

A família aponta que a mãe estava com a pressão estava alta e as dores eram quase insuportáveis. Diante disso, o casal solicitou a cirurgia cesariana, que foi negada pela equipe. Enquanto era atendida, mesmo diante da dor, Fernanda alega que ainda ouviu comentários sobre sua religião e cor da pele.

— As enfermeiras diziam: “hoje está tão diversificado esse plantão, está bem divertido e engraçado. Tem de tudo, várias etnias, várias religiões, gente que é umbandista”. Ele [marido] estava com a com o fio de conta [artigo religioso] dele no pescoço. Disse: “tem várias etnias, várias religiões. Tem haitiano, tem negro, tem branco, tem gente do Candomblé”. Aí eles debochavam da gente, eles riam da dor. A gente pedia ajuda, eles estavam rindo, eles riam da religião, eles riam da nossa raça, que não tinha nada a ver com aquele momento — comenta Fernanda.

Para a família, os comentários não cabiam naquele momento, principalmente diante da dor que a mãe sofria. Por conta das dores fortes, Fernanda recebeu anestesia, medicação que controlou os sintomas por menos de uma hora. Depois, a mãe passou a sofrer novamente e pedia pela cesárea. Contudo, a equipe negava o procedimento alegando que a bebê iria nascer a qualquer momento. Enquanto isso, eram realizados exames de doppler, que indicavam que o coração da bebê batia normalmente.

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Fernanda passou a tentar inúmeras posições para tentar induzir o parto, isso já na madrugada de sexta-feira (5), horas após dar entrada na unidade com dilatação de cinco dedos.

— Até que chegou nas últimas posições, eu já não aguentava mais. Eu não estava vendo mais nada. Só disse para eles: “ela não vai sair”. E eles diziam: “mas já está vindo, olha aqui, pai, o cabelinho, olha”, mas ela não saía. Ela era muito grande, não tinha como ela passar. Daí na última posição que eu fiquei, eles viram que estava tudo errado — comenta Fernanda.

A mãe explica que havia cerca de seis pessoas na sala, entre equipe de enfermeiros e residentes, exceto o médico responsável. Foi só quando ele entrou que Ayanna nasceu.

— Aí quando ele chegou, disse: “O que que vocês fizeram com a mulher, vocês tão loucos? Que posição é essa?” Aí, eu sei que ele me virou que eu nem lembro nem como, eu voltei para frente de novo. Uma subiu na minha barriga, eu sei que tinha muita gente em cima de mim. Ele [médico] puxou ela assim, como se tivesse puxando um bezerro de uma vaca. Aí já correram tudo. Eu quase caí também da maca porque foi pelo jeito que puxou a maca, saiu do lugar. Foi assim, foi horrível — cita a mãe.

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Fabiano lembra que Ayanna nasceu com vida e saudável. Entretanto, logo depois, teve uma parada cardíaca e os procedimentos de reanimação foram iniciados. 

— Tentaram reanimar ela duas vezes, ela voltou, o coraçãozinho dela bateu um pouquinho, mas estava muito fraquinha, até que a doutora falou que, pelo tempo que demorou para sair ali, o coraçãozinho dela parou. Estava cansada. Disseram: “agora a gente conseguiu reanimar, mas ela vai para a UTI”. Eu fiquei olhando e eu vi que eles estavam em cima, daí eles começaram a reanimar, reanimar e ela não aguentou — conta o pai com dor no coração e lamentação.

Além da denúncia de negligência no atendimento e parto, a família alega que o aparelho para reanimação estava quebrado, assim como a máquina de acesso, que precisou da ajuda de Fabiano para funcionar.

Após a morte de Ayanna, a família fez um boletim de ocorrência e solicitou que o corpo fosse levado ao Instituto Médico Legal (IML) para apurar a causa da morte. O exame preliminar não foi conclusivo e outros testes serão realizados nos próximos dias para determinar o que causou o óbito da pequena.

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— Coração dela bom, tudo bom, saudável. A minha filha é perfeita, não tinha nada, não tinha nada para ela não sobreviver — diz o pai. Fabiano ainda lembra que os exames de doppler, feitos durante todo o procedimento entre a quinta e sexta-feira (5) indicavam que o coração de Ayanna batia normalmente.

Agora, a família pede uma resposta da Maternidade Darcy Vargas e que os procedimentos sejam mudados para evitar outras mortes.

— O que a gente quer é identificar o culpado e que não aconteça mais isso. Nós estamos falando com todo mundo, podemos conversar, para isso ir bem longe. As mães, elas têm que ter o direito de escolher. Se não aguenta, faz a cesárea, porque evita as mortes, evita a dor. Não é fácil. Eu tenho que ser forte por ela — diz Fabiano enquanto segura a mão de Fernanda.

O que diz o hospital

Em nota, a Maternidade Darcy Vargas informou que a paciente era acompanhada no Ambulatório de Gestação de Alto Risco da unidade. Após consulta, foi encaminhada ao setor de emergência, onde recebeu avaliação e os devidos encaminhamentos, sendo posteriormente internada. A evolução do caso resultou em parto normal, com todos os cuidados assistenciais prestados pela equipe multiprofissional.

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“Infelizmente, o recém-nascido evoluiu para óbito. A direção da unidade, ao tomar ciência do fato, assegurou o devido suporte à família, com acompanhamento psicológico e apoio assistencial. A Maternidade Darcy Vargas manifesta profundo pesar pelo ocorrido e se solidariza com a família neste momento de dor”, comentou em nota.

Ainda, reforçou o compromisso com a excelência na atenção integral à saúde da mulher e do recém-nascido, e assegurou que o caso está sendo analisado com seriedade e rigor técnico pelo Núcleo de Segurança do Paciente, a fim de garantir a devida apuração dos fatos.

Sobre os procedimentos e normativas para atendimento de mães com gestação de risco, quando a cesárea é indicada, a Maternidade afirmou que atua com capacitação contínua para segurança das pacientes. “Além disso, promove avanços nos processos assistenciais e administrativos, com foco na qualificação dos colaboradores e da gestão, sempre priorizando a segurança do paciente. A Maternidade também destaca o compromisso com a capacitação contínua da equipe, ampliando o cuidado voltado à mulher, à criança e à família”, afirmou em nota.

Em relação à denúncia sobre os equipamentos que estariam quebrados, a administração da Maternidade informou que faz investimentos constantes e que possui equipamentos reservas. “A Maternidade Darcy Vargas mantém investimentos constantes em sua estrutura e na qualidade da assistência. Desde 2023, a unidade, que integra a rede da Secretaria de Estado da Saúde (SES), vem passando por ampliações e modernizações. A instituição dispõe de equipamentos de reserva para substituição imediata em caso de eventuais falhas de funcionamento”, ressaltou em nota.

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Por fim, a administração ainda destacou investimentos recentes. “Entre as entregas recentes estão a revitalização da Emergência Obstétrica, o novo Centro de Indução de Parto Normal, o Banco de Leite Humano, a aquisição de um aparelho de Ultrassonografia, além da Casa da Gestante, Bebê e Puérpera, com o investimento de cerca de R$ 1 milhão do Estado”.

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