Há cinco anos, Pabliane Beatriz Machado revive, todos os dias, os últimos momentos com a mãe, Patrícia Vicente, que tinha 43 anos. Pabliane havia acabado de chegar em casa após um longo dia de trabalho, em Palhoça, na Grande Florianópolis. A mãe, então, veio ao encontro dela e disse, em um ato de carinho: “Filha, a mãe limpou a casa aqui para ti, eu sei que você chegou cansada do trabalho”. Pabliane não sabia, mas aquela seria a última oportunidade de abraçar a mãe.
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Patrícia Vicente foi encontrada morta no dia 11 de julho de 2020 dentro do porta-malas do próprio carro em São José, no estacionamento de um supermercado, depois de ficar desaparecida por um dia. O assassino: o companheiro, preso três dias depois. De acordo com as investigações, ele não aceitava o fim do relacionamento. À época do caso, Pabliane contou que Patrícia tentou se separar do então companheiro algumas vezes, mas acabou reatando o relacionamento por medo das ameaças que recebia.
Para quem fica, a dor e os impactos são diários. Dia após dia, o luto volta, em diferentes formatos e ocasiões. Pabliane conta que se arrepende todos os dias de não ter parado, naquele momento simples em casa ao lado da mãe, para abraçá-la.
— Se eu soubesse que era o último abraço… — lembra, emocionada.
Pabliane nunca vai esquecer aquele dia. Ela conta que depois de ter descansado um pouco do trabalho, a mãe foi levar uma familiar em casa e, depois, viu ela voltar à noite. Quando acordou, já não encontrou Patrícia em casa, e nem o carro dela. Pabliane então foi trabalhar, mas com um aperto no peito.
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Foi quando recebeu uma mensagem do então marido, que disse que Patrícia não havia aparecido para tomar café da manhã naquele dia. A partir daí, a luta para tentar encontrar a mãe começou. Foi nesse dia que Pabliane conheceu a Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso.
O relacionamento de Patrícia durou, ao todo, oito meses, desde que ela e o assassino se conheceram, até a data da morte. Nesse meio tempo, Patrícia foi mudando, com um comportamento cada vez mais acanhado e, aos poucos, com marcas aparecendo pelo corpo.
— Dava pra ver que depois que ela conheceu ele, ela já estava morta psicologicamente — diz Pabliane.
Com o assassinato de Patrícia, Pabliane nunca mais foi a mesma. Na rua, não consegue mais andar na rua sem sentir medo de cada passo que dá. Vinte e quatro horas por dia, ela convive com a depressão, crise de pânico e ansiedade, fazendo tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
— Minha mãe era uma mulher guerreira, que enfrentava qualquer coisa pela gente. Batia no peito: eu sou a Patrícia! Ela aguentou para proteger a gente. Ela lutou, ela aguentou por nós — afirma, emocionada.
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Para quem fica, sobram as lembranças
Em novembro, foram registrados nove feminicídios, sendo este o mês mais mortal para as mulheres em Santa Catarina. O mais recente chocou Florianópolis e ganhou repercussão nacional, com uma mobilização que atravessou cada mulher do país.
Catarina Kasten, de 31 anos, foi violentada e morta em uma trilha na Praia do Matadeiro, em Florianópolis, na última sexta-feira (21). Ela ia para uma aula de natação, como fazia três vezes na semana, quando foi atacada pelo assassino, que confessou o crime e está preso.
Professora de inglês e estudante da pós-graduação de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Catarina tinha sonhos. Já tinha viajado o mundo, mas queria mais. Queria fazer doutorado no futuro, voltar a conhecer outros lugares, construir uma casa em um terreno que já tinha comprado com o marido, Roger Gusmão, na Praia dos Açores. No entanto, tudo foi interrompido naquela manhã de sexta-feira.
Agora, a família e os amigos convivem com as lembranças, com o luto e, também, com a indignação. Thalyta Argivaes conta que a amiga amava viver e fazer coisas novas, desbravar o mundo.
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— [Ela amava] estar perto das pessoas que ela sentia conexão — lembra, emocionada.
O medo também perpassa os pensamentos de quem convivia diariamente com a vítima.
— Agora minha mãe está me mandando mensagem pedindo para que eu não saia sozinha, mas esse não pode ser o preço que a gente paga — diz Eliani Ventura, também amiga de Catarina.
De acordo com a coordenadora do Laboratório de Processos Clínicos no Luto da UFSC, Ivânia Jann Luna, a circunstância da morte é o que determina como será o luto, podendo ser mais traumático e prologando. É a forma que o ente querido morreu que determina o impacto que a morte terá na qualidade de vida de quem fica.
— Quando se perde alguém por feminicídio, qual é o significado que você vai construir a ponto de integrar aquilo na tua história de vida e na memória que você tem do ente querido e da memória da perda? O enlutado vai ter memórias traumáticas ao longo da sua vida e ele vai, muitas vezes, se deparar com isso, e vai ser muito difícil — aponta Ivânia.
A especialista afirma, ainda, que tudo muda quando alguém morre de uma forma tão violenta como foi com Patrícia e Catarina, assim como todas as outras vítimas 324 feminicídios registradas desde 2020.
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— O nosso pertencimento, a nossa identidade, o nosso mundo social, o contexto que a gente vive, isso tudo é abalado. [A pergunta que fica é] será que eu estou segura? Será que eu tenho direito a viver e não ser morta jovem? Será que se eu for reivindicar, se eu for buscar apoio, eu vou encontrar? O nosso ser mulher é abalado — diz.
Luta coletiva
Desde o feminicídio de Catarina, a revolta tomou conta da população. Manifestações e homenagens vêm sendo feitas diariamente com a frase de ordem “Catarina, presente!”, com homens e mulheres presentes, conhecidos e desconhecidos da professora de inglês.
Para Gabriel Negrão de Paula, amigo da jovem, a luta não pode ser só das mulheres.
— São elas que sofrem com isso, mas nós homens temos que nos posicionar, temos que aprender como nós podemos ajudar, como podemos acolher e dar voz para que isso não se repita — diz.
Quem são as vítimas de feminicídio em novembro em SC
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