São sete horas da noite de uma nebulosa quarta-feira de cinzas. A guerra na Ucrânia está prestes a entrar no oitavo dia e o sentimento de incerteza paira sobre as cidades-irmãs de Porto União (SC) e União da Vitória (PR), onde vive uma das maiores comunidades ucranianas do país. Localizados a mais de 10 mil quilômetros de distância de onde acontecem os conflitos, cerca de 50 pessoas se reúnem na igreja São Basílio Magno e levam as mãos ao peito em memória aos que já partiram e aos que ainda tentam escapar dos bombardeios. Abaixo de uma cúpula com figuras mosaicas que carrega a imagem da Santa Ceia, o padre Josafá Firman, em ucraniano, faz o sinal da cruz e quebra o silêncio pedindo por paz no Leste Europeu. Entre uma oração e outra, as palavras parecem cruzar o continente e fortalecer ainda mais a ligação que existe entre os dois povos, unidos pelo sangue que corre nas veias.

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Durante a celebração, as 14 estações da via-sacra narram o sofrimento de Cristo, que carrega a própria cruz ao calvário. A cada ato representado em quadros suspensos na parede, os fiéis caminham pelo santuário, rezam e cantam na língua nativa de seus ancestrais, que é intercalada com o português. De cima do altar, entre as bandeiras do Brasil e da Ucrânia, o sacerdote dobra os joelhos e alerta: “O momento é de intensas súplicas e reflexões”.

Entre as intenções de paz que diariamente ocupam o caderno na secretaria da igreja, os descendentes vivem a quaresma pascal em sua essência.

— O momento é de sofrimento, triste e doloroso para o povo que lá vive, para nós que temos sangue ucraniano e para quem aprecia a cultura e pro mundo. No século XXI, penso que não é admissível que se resolva conflito através de armas, que se resolva matando, destruindo sonhos. Quantas e quantas vidas perdidas — lamenta Josafá.

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Horas antes da celebração, o anseio por notícias interfere na rotina da comunidade, onde os cães atravessam a rua em plena calmaria. A TV, antes pouco sintonizada, segue diretamente ligada; as vozes das rádios passaram a ser novas companhias; e os senhores, sentados à beira das mercearias, se questionam: por que isso está acontecendo, afinal? Há uma semana, o conflito promovido pela Rússia tira o sossego dos moradores.

Padre Josafá, também descendente de ucraniano ministra a celebração
Padre Josafá, também descendente de ucraniano ministra a celebração – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Paróquia São Basílio Magno, igreja matriz da comunidade ucraniana
Paróquia São Basílio Magno, igreja matriz da comunidade ucraniana – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Cerca de 50 pessoas estiveram presente na igreja
Cerca de 50 pessoas estiveram presente na igreja – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Pessoas oram pela paz no Leste Europeu
Pessoas oram pela paz no Leste Europeu – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Além do culto, os fiés fizeram uma via-sacra
Além do culto, os fiés fizeram uma via-sacra – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Celebração de quaresma pascal
Celebração de quaresma pascal – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Celebração na igreja matriz
Celebração na igreja matriz – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Igreja foi construída na década de 1980
Igreja foi construída na década de 1980 – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)

Sobrevivente de guerra

Dona Sofia Kussma tem 96 anos e é a única imigrante nascida na Ucrânia viva na comunidade. A idosa também é uma sobrevivente de guerra. Primeiro, quando ainda criança, enfrentou o período da “Grande Fome” em seu país de origem e, depois, foi retirada da família durante a Segunda Guerra Mundial. Devido à sua idade e indisposição por conta dos conflitos que novamente afligem o seu povo, a reportagem conversou com o filho dela, Paulo Ricardo Kussma, 60.

Paulo segura a foto do grupo Kalena, onde a mãe Sofia aparece
Paulo segura a foto do grupo Kalena, onde a mãe Sofia aparece (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)

Com olhar distante, por vezes sorridente pelas memórias, mas cabisbaixo quando se dá conta dos acontecimentos, Paulo lembra-se da imagem dele ainda “piá”, enxugando a louça para a mãe enquanto pedia por mais histórias da guerra.

Sofia morava em uma aldeia com os pais e mais nove irmãos quando, aos 13 anos, foi arrancada do seio familiar, em 1939, e forçada a trabalhar em uma fazenda na Alemanha, durante o regime nazista. Era comum que mulheres fizessem os serviços, enquanto que os homens ocupavam os fronts de batalha.

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Lá, conseguiu um documento de trabalho com um símbolo nazista estampado, que era o que a possibilitava circular pelo país. Caso fosse pega pelos soldados sem o documento, poderia ser confundida com uma espiã e fuzilada no mesmo instante.

— O cara [dono da fazenda] tinha sete ou oito gatos. Ela tinha que colocar uma vasilha de leite em cada degrau de uma escadaria para eles. Ela conta que puxava o carrinho até o laticínio e pegava o leite. E não podia tomar porque eles pesavam o leite e analisavam o teor de água do leite — lembra Paulo.

Enquanto isso, os trabalhadores forçados comiam sopa de casca de batatas, que era o que restava.

— No lugar, como ela cuidava das vacas, quando chegava perto do inverno ainda tinha pasto remanescente no campo e eles levavam as vacas para se alimentar uma última vez antes de se formar a neve. Deixavam os animais lá pra consumir o que tinha e depois eram recolhidos para comer feno. A mãe conta que ela, descalça, andava por cima daquele gelo em formação e ficava com o pé gelado. Quando a vaca urinava, ela corria lá pra botar os pés em cima pra esquentar — conta.

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Em 1945, com o fim da guerra, esses imigrantes tiveram que ir aos poucos deixando a Alemanha, já que os soldados estavam retornando e não havia como o país sustentar tantas pessoas. Paulo lembra que o pai, mandado para França durante a batalha, retornou ao país e se encontrou com Sofia, que, na infância, foi sua vizinha na aldeia onde viviam na Ucrânia. Ambos sozinhos e sem familiares, resolveram ficar juntos.

Neste período, o Brasil começou a buscar por mão-de-obra qualificada, principalmente após o avanço das indústrias e mecanização do campo. Quando Sofia e o esposo embarcaram no transatlântico com destino à Ilha das Flores, na baía da Babitonga, tudo o que tinham coube dentro de uma pequena caixa de madeira e uma mala de papelão. Nos braços, Sofia trouxe a filha mais velha, à época com dois anos, nascida na Alemanha.

Em Santa Catarina, a família morou em Fraiburgo e Videira e resolveu mudar-se para Porto União na década de 1970, para viver junto da comunidade ucraniana, já bem estabelecida na região.

Ainda lúcida, Sofia sabe contar com riqueza de detalhes tudo o que viveu, ainda sabe falar fluentemente cinco línguas e recita poemas e cantos quando a comunidade ucraniana se reúne. Sua casa é um pequeno recanto onde encontra-se bordados, pinturas e outros itens que remetem à cultura.

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Nesta última semana, ao saber de um novo conflito que novamente aflige seu povo, dona Sofia adoeceu. O filho Paulo evita falar do que está acontecendo na frente da mãe, que se agita só de lembrar que mais pessoas estão sofrendo por querer viver onde nasceram. Paulo também evita saber tudo pelo que passou sua mãe.

— Eu nem chego a questionar algumas coisas. Não quero nem ter ciência do que ela viveu.

Os “ucrâinos”

Dona Sofia chegou em Santa Catarina já nos anos 1950, mas as primeiras levas de ucranianos chegaram na região das cidades-irmãs um pouco antes, entre 1895 e 1896. Os imigrantes eram camponeses e vieram devido a crise econômica, para ter acesso a terras.

À época, segundo Claudio Cavalcante Júnior, pós-graduado em antropologia que tem uma pesquisa de doutorado em andamento sobre política, conflito e visibilidade ucraniana no Brasil, Porto União, como grande parte de Santa Catarina, pertencia ao Paraná, e o projeto colonizador do estado tinha como objetivo ocupar os “vazios demográficos” e propriedades devolutas do Estado, com o objetivo de torná-lo um grande celeiro.

— Por isso [houve] a vinda de imigrantes agricultores, como ucranianos, poloneses e italianos, que trouxeram consigo suas técnicas agrícolas. Foram os ucranianos aqui no sul do Brasil que introduziram a indústria moageira, depois de introduzirem as culturas de centeio e trigo, por exemplo — explica. 

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Porto União e União da Vitória ficaram conhecidas como “cidades irmãs” ou “cidades gêmeas” quando foram divididas ao meio por um trilho de trem, durante as disputas de terra entre os governos de Santa Catarina e do Paraná. O conflito ficou conhecido como Guerra do Contestado, que durou de 1912 a 1916.

Para Vilson José Kotiuski, 43, artesão da comunidade, a via férrea hoje em dia pouco importa aos moradores das duas cidades, que frequentam as mesmas igrejas, comércios e comungam juntos da mesma cultura ucraniana e os saberes deixados por seus antepassados.

— Pra que que este trilho que divide a cidade? Somos uma cidade relativamente pequena que tem uma divisa no centro. Esta divisão aqui não importa a ninguém. Só lembramos do trilho quando passamos com pneu de carro em cima ou a pé pra não tropicar — brinca.

O padre Josafá garante que a convivência é mútua, até mesmo os sotaques são parecidos. No entanto, o sacerdote afirma que, por conta da divisão, cada cidade tem uma sede da prefeitura e uma câmara de vereadores.

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— Basta literalmente atravessar a rua que já se está em outra cidade. Por isso, é comum que se more em Porto União e se trabalhe em União da Vitória, ou vice-versa. O que complica um pouco são em feriados municipais, já que de um lado se trabalha, do outro, não. Mas hoje em dia já estamos todos acostumados — assegura.

Atualmente, segundo o padre, há cerca de mil famílias descendentes de ucranianos que vivem na região. Durante os cultos, segundo o padre, além do povo “ucrâino”, como falam na cidade, há também a forte presença dos simpatizantes da cultura.

Cultura ucraniana vive nas construções e costumes

Na comunidade, a cultura ucraniana se faz bem presente na estruturação das igrejas, já que todas carregam uma cúpula em formato de cebola. A matriz, localizada no centro, foi construída na década de 1980 e, apesar de mais moderna, ainda possui traços da arquitetura bizantina que se traduz através de mosaicos vitrificados, pinturas em telas ou nas paredes.

Igreja São Basílio Magno
Igreja São Basílio Magno fica no centro das cidades irmãs (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)

Mais retirada, em um caminho cheio de pedregulhos na área rural da comunidade, na colônia Legru, fica a Igreja Ucraniana São João Batista, construída em 1904. Sua estrutura, toda em madeira, mantém a construção original. Ao subir as escadas da centenária, na parte de trás, há um cemitério construído na mesma década.

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Também idealizada pela comunidade, em 1997 foi inaugurada a Praça Ucraniana, onde fica a estátua de Taras Shevchenko, poeta ucraniano que foi perseguido e preso pelas autoridades do império russo em 1847. Por seu exemplo de vida, hoje representa símbolo de liberdade para o povo.

Aos fins de semana, a comunidade também se reúne no Clube Ucraniano para praticar a dança típica da cidade, com o grupo Kalena, formado por moradores. Além das danças folclóricas e músicas, a culinária ucraniana também é bastante forte, além do artesanato.

Clube Ucraniano
Clube Ucraniano (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)

Vilson, que é bisneto de imigrante e pinta as pêssankas, é um grande defensor da cultura e passa tudo que aprendeu com seus antepassados aos dois filhos, a fim de preservar as tradições.

O artesão lembra que a Ucrânia se tornou independente há pouco tempo e corre um grande risco de deixar de ser novamente. Além das orações, ele doa seu conhecimento da cultura, os valores passados de família e a força do sobrenome que carrega, já que por trás de tudo se existe uma história que precisa ser reconhecida e valorizada.

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— Aprendam, irmãos meus, pensem, estudem. E o dos outros, aprendam. E o seu não reneguem. Pois, quem a mãe esquece, este Deus castiga.

Vilson finaliza a conversa com a frase de Shevchenko, que representa a liberdade tão almejada pelo povo ucraninano neste momento de conflitos.

Igreja Ucraniana São João Batista, construída em 1904
Igreja Ucraniana São João Batista, construída em 1904 – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Centenária possui uma cúpula em formato de cebola, típica da cultura ucraniana
Centenária possui uma cúpula em formato de cebola, típica da cultura ucraniana – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Igreja fica na região rural da colônia de Legru
Igreja fica na região rural da colônia de Legru – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)
Na parte de trás da igreja há um cemitério, construído na mesma década
Na parte de trás da igreja há um cemitério, construído na mesma década – (Foto: Patrick Rodrigues/A Notícia)

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