Ser criada em uma família de mulheres valentes foi o que inspirou Chimelly Louise de Resenes Marcon a estar à frente de projetos que atuam no combate a violência doméstica em Santa Catarina. A promotora de Justiça ingressou no Ministério Público (MPSC) há 16 anos, mas foi em 2025 que assumiu a coordenação do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres (NEAVID). A estrutura busca fornecer apoio e acompanhar a atuação dos órgãos de execução na implementação de projetos relacionados ao enfrentamento da violência contra a mulher, além de fomentar a coleta e divulgação de dados sobre o tema.

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Natural de Florianópolis, Chimelly é formada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O interesse em trabalhar com pautas sobre violência de gênero começou em 2009, quando tomou posse no MPSC e passou a atuar na área criminal com a Lei Maria da Penha, que completa 19 anos em agosto de 2025. 

— Passei a estudar mais, a me dedicar mais, a realmente colocar a violência contra as mulheres como um centro de interesse meu a partir do momento em que fui para o mestrado, em 2015. Eu já atuava antes, mas sob um ponto de vista muito mais institucional e profissional — relata.

Atualmente, Chimelly está à frente do Mapa dos Feminicídios, projeto do NEAVID que tem como objetivo mapear todos os casos de assassinatos de mulheres em razão de gênero registrados nos últimos cinco anos em Santa Catarina. 

— A ideia é realmente compreender o fenômeno e verificar quais foram as causalidades, quais foram os contextos. Quem eram as vítimas? Quem eram esses agressores? Já eram conhecidos? —  explica. 

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NSC Total conversou com a promotora de Justiça e coordenadora do NEAVID sobre o início da carreira, os desafios no combate a violência doméstica e sobre os 19 anos da Lei Maria da Penha. Confira:

Para começar, eu gostaria que a senhora falasse da sua trajetória antes de ser coordenadora do NEAVID. Como surgiu a vontade de trabalhar com temas ligados ao gênero? Foi alguma inspiração?

Eu comecei muito nova no Ministério Público — com 25 anos de idade. Desde que entrei, lá em 2009, sempre trabalhei na área criminal. A gente divide nossa atuação por áreas, mas sempre fiquei na criminal. E, nessa área, trabalhamos sob o viés da Lei Maria da Penha. Então, desde 2009, já atuava com essa lei, que na época ainda era pouco conhecida. Passei a estudar mais, a me dedicar mais, a realmente colocar a violência contra as mulheres como um centro de interesse meu, a partir do momento em que fui para o mestrado, em 2015. Eu já atuava antes, mas sob um ponto de vista muito mais institucional, profissional… Enfim, eu não tinha conhecimento acadêmico — vamos colocar dessa forma.

Quando fui fazer o mestrado, de 2015 a 2017, me dediquei a estudar não apenas a Lei Maria da Penha, mas especialmente o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o sistema global, os direitos da mulher… Outras perspectivas que tratam o gênero. Foi aí que essa temática entrou de vez na minha vida. Com os olhos mais abertos, com a cabeça que se abre para uma nova ideia e depois não se fecha mais, me envolvi pessoalmente com grupos de mulheres e movimentos sociais. Fui uma das primeiras coordenadoras do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público. Fiquei à frente por dois biênios, em uma coordenação coletiva e horizontal. Éramos sete ou oito mulheres do MP de várias partes do Brasil. E aí a gente vai sendo confrontada, inclusive nos aspectos micropolíticos, em como essa violência e essa discriminação nos atravessam em todos os âmbitos da vida: profissional, familiar… enfim, na nossa vida como um todo. Nós somos corpos que foram, de certa forma, moldados também por discriminações e por violências.

Essa temática entrou na minha vida muito fortemente a partir de 2015, quando comecei a estudar a fundo e me debrucei sobre o tema.

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Mas teve alguma coisa que te atraiu para estudar o tema?

O que eu posso te dizer? Talvez a minha história familiar. Eu sou filha de uma mãe que me criou basicamente sozinha. Não posso dizer que ela é mãe solo, mas, por conta de problemas com o meu pai, ela assumiu majoritariamente os cuidados. Neta de uma avó que cuidou de quatro filhos, viúva muito cedo, com 32 anos. Ela teve quatro filhos para criar pequenos, sendo a minha mãe a mais velha. Do meu outro lado da família, a mesma coisa. Uma avó que cuidou de 10 filhos porque, também, o meu avô faleceu muito jovem. Então, eu acho que vem de um contato muito grande com mulheres muito fortes na minha história de vida. Mulheres que jamais se curvaram para um sistema que talvez ainda insista em isolá-las ou em limitá-las — mas nunca se curvaram, e que, à sua maneira, no seu tempo, foram fazendo a diferença. Fizeram a diferença para os seus filhos. Minha mãe, obrigatoriamente, fez a minha diferença: porque eu só fui para o mestrado porque a minha mãe foi para o mestrado. Só fui para o doutorado porque a minha mãe é doutora. Talvez a minha maior influência foram os exemplos que eu tive na minha vida. Os exemplos que me fizeram, talvez, perceber como algumas coisas, independentemente do seu grau profissional, independente da sua escolaridade, do teu nível acadêmico, ainda são injustas para nós, mulheres.

Uma delas é a violência. Mas que não começa na violência, começa num cenário mais discriminatório. Mas eu penso que, talvez, se é pra gente pensar no ponto de vista pessoal, eu talvez tenha colocado isso como um ponto de interesse por conta até de um mecanismo de ancestralidade, de honrar a minha história e de fazer a diferença para as outras.

A maior chave que vem daí é quando a minha filha nasce. Quando eu me descubro grávida e vejo que eu vou ter uma menina pela primeira vez. Eu acho que aquele compromisso que era só pessoal virou um compromisso muito mais social. Eu preciso fazer a diferença para que o mundo seja diferente quando ela tiver maior.

Ela hoje está com seis [anos]. Então, em 2018, logo quando eu finalizo o mestrado, publico o livro, aí na sequência engravido e ela vem ao mundo. Nessa hora, aquilo que era interesse — assim, uma vocação, digamos — vira compromisso.

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Qual a importância para você, como mulher, de ter essa função no MPSC?

Eu acho que, do ponto de vista pessoal, ele chancela uma trajetória de busca e reconhecimento que começou há dez anos. Uma atuação que foi sempre muito dedicada e voltada para a maximização de direitos de mulheres, do ponto de vista institucional.

Recentemente, a gente teve algo que eu falo de boca cheia e com muito orgulho. Nós temos os estagiários de pós-graduação que trabalham conosco. E essas estagiárias… enfim, o concurso está cada vez mais difícil. Os promotores estão cada vez entrando mais velhos. E, também, as nossas residentes hoje são mulheres, né? Elas não são mais adolescentes ou jovenzinhas. A gente tá falando com mulheres de vinte e poucos anos. E a gente teve, recentemente — que foi a minha residente em Itajaí — que ela teve um bebê. E, quando ela teve o bebê dela, ela me informou que não poderia usufruir de licença-maternidade porque era estagiária. Ela veio conversar comigo porque queria usar as férias, que iam vencer, folga de plantão e folga por causa do eleitoral, que ela foi mesária. Aí, no final, a gente: “não é legal, isso não é justo”. Eu não consigo compreender como o Ministério Público, que é essa instituição de vanguarda, que zela por direitos, que a gente não tem uma proteção específica para você… Eu fiz um pedido, de próprio punho, à Secretaria para que ela usufruísse de licença-maternidade. E eu acho que antes dela realmente completar um mês de afastamento por conta do nascimento do Miguel [nome do bebê], eles deferiram o pedido dela e estenderam para todas as residentes.

Eu parto sempre desse princípio: às vezes tu atua no teu micropolítico, tu resolve uma questão que, às vezes, é particular de uma mulher e tu consegue atingir outros. Tu consegue proteger mais. Então, isso foi muito legal, fiquei muito orgulhosa. Quase que justificou, sabe? Digo: olha, foi algo que me orgulhou muito por eu ter conseguido fazer diferença na vida dela.

E eu acho que aqui é um local de você construir políticas, estreitar relações, fazer articulações — para ter esse propósito: melhorar a vida de mulheres. Você pode melhorar do ponto de vista muito particular, com essa conquista de um direito à licença-maternidade. Mas, como você pode melhorar do ponto de vista estrutural? Você pode, por exemplo, com um procedimento que vai verificar a situação das delegacias de atendimento às mulheres no Estado todo. A gente pode, a partir de um procedimento desse, melhorar o atendimento para as mulheres em situação de violência, que é um número que a gente hoje não consegue sequer dimensionar.

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Eu fico muito grata e muito honrada. Fiquei muito honrada com o convite de estar nesse espaço, porque a proposta é essa: tentar realmente fazer com que as instituições do sistema de justiça dialoguem e se articulem.

A questão da violência de gênero não é algo que só é particularizada e especificada no Ministério Público. É algo que tangencia a atuação do Tribunal de Justiça, Tribunal de Contas, do Poder Legislativo, Judiciário, enfim… é de todas as instituições, da sociedade como um todo. Então, participar dentro dessa dinâmica, dessa relação que é interinstitucional, como uma das molas propulsoras, uma das engrenagens, é muito importante. Porque aí a gente tem a percepção de que o interesse da imensa maioria das mulheres com quem nós temos contato — principalmente porque são vítimas de crimes — vai ser ouvido, vai ser levado em consideração. Ele é um órgão estratégico, né? Porque ele mantém contato direto com as promotorias, que colhem o relato das vítimas e conhecem as estruturas locais de atendimento.

Como mulher dentro de uma carreira institucional historicamente masculina, a senhora enfrentou obstáculos de gênero? Essa vivência impactou sua atuação na defesa de outras mulheres?

Na nossa profissão, ai é uma questão particular, os tetos de vidro, as barreiras, os bloqueios, são muito mais sutis. A gente percebe no dia a dia das instituições em geral. E aqui eu não me restrinjo ao MP, porque a gente conversa em outros coletivos, a gente sabe como algumas coisas funcionam nesses bastidores. As mulheres, geralmente, não estão nos espaços informais de tomada de decisão. Ou seja, muita coisa é discutida, debatida e definida no jogo de futebol da turma, sei lá, dá terça-feira à noite. E, para esses lugares, nós não somos convidadas, mas ali as decisões acontecem, as pessoas ganham maior incentivo. Temos mudado aos poucos, sim, porque uma maior presença feminina altera esses lugares de decisão, mas ainda penso que é uma mudança que é paulatina, ainda é tímida, mas vejo ela acontecer, não na velocidade que gostaria. E a maior prova disso é a gente ter, hoje, uma Procuradora-Geral de Justiça. Eu já estava há alguns anos alimentando, nutrindo que isso é importante, não apenas pela representatividade — não é só a gente colocar uma mulher nesse lugar que nós vamos fazer a diferença — mas é colocar uma mulher nesse lugar, que também traz outros elementos para compor a mesa de negociações e de decisões. Eu penso que as coisas estão mudando e evoluindo, mas esses obstáculos na função pública são muito mais sutis. Os convites, muitas vezes, não vão para as mulheres. A gente ainda tem o obstáculo do fato de recair sobre as mulheres, a sua maioria mães, a maior parte da tarefa dos cuidados, o trabalho doméstico e os cuidados com os filhos. Não é o acompanhamento da escola — o acompanhamento é da geladeira, né? A lista do mercado, o gerenciamento do ar… vamos colocar assim. Faz com que muitas colegas, quando recebem o convite, não tenham condições pessoais de assumir essa função. 

Existem percalços que são da nossa própria estrutura machista, que liga o homem a essa posição de poder e liderança. Outros são obstáculos que nós temos enquanto sociedade, que não está alheia ao nosso cenário profissional. O fato de hoje nós termos essa acumulação de jornada. Tem até uma historiadora que fala: “Hoje não é mais jornada dupla.” Teve uma que falava que era jornada tripla. O último conceito é jornada ininterrupta, porque é você acordar, tem as tuas tarefas domésticas, levar o filho no colégio, preparar o café da manhã, organizar a rotina da casa… leva, vai pro trabalho, volta, busca depois… É quase como uma sobreposição. São sobreposições de atividades distintas e que te levam a uma sobrecarga — e mulheres sobrecarregadas também não podem assumir esses espaços de maior liderança, que necessitam de uma maior dedicação. Eu acho que é uma conjunção de fatores. Existe ainda o machismo nessas sutilezas. Mas existe, também, uma sociedade que faz com que as mulheres sejam as maiores responsáveis pelo gerenciamento doméstico — e isso nos pune, de certa forma, profissionalmente. Então, acho que é por esses dois caminhos.

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Acredito que a senhora seja inspiração para muitas meninas que desejam seguir os mesmos passos. Tem alguma mulher que também te inspirou ou inspira durante a sua trajetória profissional e pessoal?

Te coloco o maior exemplo da minha vida: minha mãe. Isso é pela história de vida dela, por tudo que conquistou, por tudo que fez, por onde ela veio e até onde chegou. É a maior fonte de inspiração e, enfim, o maior, talvez, receio que eu tenha de tentar não fazer errado. De tentar seguir um caminho tão bonito quanto ela fez. 

De mulheres inspiradoras… Vou te trazer um nome do Ministério Público. Poderia agregar o da doutora Vanessa, mas eu vou trazer de uma mulher que é muito lutadora e que, enfim, já tem uma trajetória mais antiga, que é o da doutora Ivana Farina. Uma mulher que foi a primeira Procuradora de Justiça Geral de Goiás. Uma sumidade, uma fonte inesgotável de conhecimento. Doutora Ela Wiecko, também do Ministério Público Federal, mas trabalhou anos aqui em Santa Catarina. Eu brinco com ela que ela é de Florianópolis de coração. Assim, são duas mulheres extremamente aguerridas, duas mulheres vinculadas à promoção de direitos humanos que fizeram da própria vida uma prova de como você pode impactar positivamente a sociedade onde tu vive e pode impulsionar mudanças e transformações sociais.

A sua tese de doutorado foi uma análise sobre mortes violentas de mulheres de 2020 a 2022 na Grande Florianópolis. Qual a inspiração para escolher esse tema?

No mestrado eu estudei o Sistema Interamericano. O meu recorte foi a violência contra as mulheres latino-americanas para justamente pensar de que modo o estado pode agir com eficiência na prevenção e na responsabilização desses casos de violência. O que me chamou a atenção, quando fiz esse levantamento, que é de toda a produção jurisprudencial do sistema até 2017, que foi a data em que finalizei a dissertação, o que me chamou muita atenção foram os casos de feminicídio. Eu tive que analisar os casos e analisei — foram, até 2017, se eu não me engano — 26 casos de violência contra as mulheres, pela Corte e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E os que mais chocaram, sob todos os aspectos, foram os casos de feminicídio.

Para eu analisar o feminicídio, eu precisaria escolher um local e um recorte temporal. E eu decidi [pela Grande Florianópolis], por conta dessa conformação mais plural da região metropolitana… eu digo: “Não, vou me inspirar e buscar essas informações da Capital”, porque eu ainda acredito, e essa é uma das minhas conclusões da tese, que nós ainda temos uma forma bastante estreita de olhar o fenômeno do feminicídio. Há feminicídios que não vão ser praticados pelo marido. Há outros feminicídios que vão ter essa característica, vão ser qualificados dessa forma, mas que fogem desse contexto de conjugalidade.

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A inspiração foi: eu quero ver de que forma nós, enquanto sistema de justiça, estamos lidando com esses eventos. De que forma nós estamos protegendo essas mulheres para que esses eventos não aconteçam e para que eles não cheguem a ter esse grau de letalidade. A gente sabe que o feminicídio é realmente o ápice de um contínuo de violência, que começa de uma forma muito naturalizada, na brincadeira, muito sutil, e vai escalonando e se agravando. Eu queria ter uma maior base para compreender o fenômeno. Eu sou natural de Florianópolis, sou manezinha da Ilha. Como eu cresci aqui, vivi aqui até os 20 e muitos anos. Só saí daqui quando eu tive que realmente assumir o cargo e aí fui pro interior.

O feminicídio veio já da pesquisa do mestrado, porque é um  fenômeno que não arrefece no tempo. Por mais que nós falemos sobre ele, por mais que realize campanhas, ainda não conseguimos verificar o efeito disso na violência. Porque, enquanto a gente tem uma letalidade geral que trabalha numa curva decrescente, a do feminicídio, ou das mortes violentas, ou ela permanece em caráter estável ou está estabilizada, ou opera em ascendência. É um fenômeno particular dentro de uma letalidade geral. Compreender os vetores, as diretrizes que guiam essa letalidade, as circunstâncias motivadoras, aqueles aspectos que são catalisadores… Ou seja, um aspecto que apareceu muito claramente: o uso abusivo de álcool ou de drogas.  Eles são aspectos realmente catalisadores de uma violência mais exponencial. Uma violência letal.

Uma coisa que me chamou muita atenção, especificamente aqui em Santa Catarina, é que nós temos um fenômeno dentro da criminalidade organizada, que é onde entra a tal “taricagem”. Isso é algo que chamou atenção. A gente tem um feminicídio que, às vezes, não é encarado, desde o início, dessa forma. Ele passa despercebido como “ah, é um crime de violência urbana”. Às vezes, não. Se a motivação foi uma traição dessa mulher, existe uma motivação de gênero que a gente não pode negar e não pode recusar a enxergar.

A senhora consegue falar um pouco sobre o Mapa dos Feminicídios elaborado pelo MPSC? Qual o principal objetivo?

O Mapa dos Feminicídios segue muito a proposta da tese que eu acabei fazendo. Foi um projeto que nós levamos para a doutora Vanessa e nós vamos fazer em parceria com o nosso Escritório de Análises Criminais. A ideia é justamente nós compreendermos o fenômeno — mas aí, não mais dentro de uma região, dentro desse recorte de espaço-tempo que eu fiz por conta da minha própria capacidade de pesquisa —, mas agora compreender como o fenômeno se apresenta dentro da dimensão territorial do nosso Estado.

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É verificar quais foram as causalidades, os contextos, quem eram as vítimas, quem eram esses agressores. Já eram conhecidos? Eles já tinham, de alguma forma, passado pelo sistema criminal, da justiça criminal? Ou seja, por um relato anterior de uma violência que é “menor”, uma violência “menos grave”? Estavam a mulher e, eventualmente, os filhos, protegidos por medidas protetivas ou não?

Quando a gente faz esse mapa, é como se nós olhássemos para o fenômeno dentro do Estado e radiografássemos isso. A gente tem indicadores muito mais precisos e muito mais objetivos para nós pensarmos em políticas mais eficientes e para fazermos frente a um fenômeno que cresce. Como eu te falei, ele está ou estabilizado ou em crescimento. A gente precisa compreender esse fenômeno dentro das suas especificidades, para a gente pensar em como articular com outros poderes e outros setores, mecanismos para incrementar as políticas de prevenção a esse tipo de violência inicial. Também de amplificarmos o poder do Estado no sentido de garantir a segurança pública e fazer valer a responsabilização do agressor.

O mapa vem com esse propósito: nos trazer indicadores concretos e objetivos que possam auxiliar os promotores de justiça e também outros gestores. Falamos de Poder Judiciário, Governo do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Segurança Pública, Coordenadoria de Direitos das Mulheres.

Sabemos que os recursos são poucos, né? E são finitos. Dentro de um contexto do Estado, o que é prioritário nesse enfrentamento? O mapa, ao trazer esses indicadores, pode ser uma ferramenta muito útil para todos os gestores, no sentido da tomada da escolha, no sentido de priorizar aquilo que efetivamente deve ser priorizado dentro desse quadro que se apresenta hoje.

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A Lei Maria da Penha completa 19 anos em 2025. Para você, qual a importância da lei e como ainda podemos avançar?

A Lei Maria da Penha foi a primeira legislação que nós tivemos no país que firma uma proteção especializada para as mulheres vítimas de violência. A gente costuma dizer, quando falamos do processo de criação da Lei Maria da Penha, que ela vem como um compromisso de Estado. Ela nasce da própria Maria da Penha Maia Fernandes, que culminou no Informe 54 de 2001, onde ali se considerou que o estado brasileiro teria falhado no dever de punir o agressor da Maria da Penha. Ali, existe uma recomendação muito clara para o estado brasileiro: ele precisa elaborar uma lei que coloque as mulheres em situação de violência sob proteção.

E o passo inaugural que nós temos no país vem com a Maria da Penha. Ela é uma lei tão importante que, ao introduzir todo um sistema de direitos para mulheres em situação de violência, estabelece, por exemplo, diretrizes para atendimento policial. Ela estabelece diretrizes para o atendimento, para a assistência dessa mulher — então, um atendimento psicossocial. Estabelece diretrizes mínimas para que o processamento dessa demanda seja feito e de que forma ele deve ser realizado.

Ela é muito mais uma lei de políticas públicas para garantir a proteção de direitos às mulheres do que uma lei criminal. É muito mais uma lei de garantia de direitos do que uma lei punitiva. Ela não é uma lei de direito penal, é uma lei de proteção e uma das melhores que nós temos no planeta.

De proteção e de prevenir a violência? 

De prevenção, porque ela lista inúmeras ações que o estado brasileiro precisa adotar. E de proteção: uma vez que a violência aconteça, quais direitos essa mulher em situação de violência tem? Ela tem essa proteção terciária, vamos colocar assim. Existe uma proteção primária, que seria a prevenção. Vivemos numa sociedade machista. De que forma podemos mudar os nossos códigos de comportamento para que vivamos não apenas formalmente, mas todos em pé de igualdade? A proposta da Lei Maria da Penha é essa. Tanto é que ela diz que a violência contra a mulher é uma grave violação de direitos humanos. A importância dela é simbólica. A gente tem todo um simbolismo relacionado a um novo documento normativo que traz uma nova lógica, uma nova racionalidade para interpretar o direito quando se está falando com sujeitos especificados e com mulheres que são vulneráveis.

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E ainda uma lógica que te convida a adotar uma perspectiva de gênero interseccional. Você está falando de mulheres, mas você precisa estar preparado também para garantir proteção para uma mulher branca, para uma mulher negra, para uma mulher negra que pode ser uma mulher trans também. Todos os recortes. A lei, todo o tempo, está na esteira da Convenção de Belém. Eu acho que esse diálogo entre fontes traz soluções bastante ricas para nós pensarmos a violência. Ele te permite amplificar a proteção, os direitos dessas sujeitas e dar a elas uma proteção específica, conforme a posição discursiva que ocupam, seja o sexo, gênero, orientação sexual, cor, raça, idade, capacidade. Como diz uma figura: plasticidade. Tem inúmeras ações que os estados precisam adotar e que a gente está adotando. Como eu volto a te dizer: estamos caminhando, talvez não na velocidade que realmente gostaríamos, mas o cenário hoje é melhor do que o cenário que a gente tinha, por exemplo, antes das delegacias para as mulheres. A Lei Maria da Penha, justamente por ser esse diploma inaugural, desperta essa necessidade de uma maior produção de outras leis para as mulheres. Ela tem essa perspectiva simbólica de trazer a sujeita mulher em situação de violência, que ainda era uma violência invisibilizada, para os olhos do sistema de justiça, e coloca luz para esse problema.

Ela é uma lei estratégica porque aponta quase como uma diretriz que o estado brasileiro deve seguir em relação à proteção desses sujeitos que são especificados, são diferentes, e a gente precisa proteger essa diferença. Ela acaba pavimentando uma série de outras leis que vêm para ampliar a proteção para as mulheres. Depois da Lei Maria da Penha, tivemos toda uma mudança em termos de Código Penal em relação aos crimes sexuais, crimes contra os costumes. Veja só: o que era protegido antes não era a mulher, não era a dignidade sexual dessa mulher, era o costume social.

Então, a gente muda a ótica, inclusive, de como concebe a questão do estupro. Tornamos, por exemplo, em 2009, a violência sexual contra meninas menores de 14 anos, absoluta — ou seja, a prática de relação sexual com uma pessoa menor de 14 anos, que é incapaz de consentir. A gente protege as nossas meninas. Em 2015, tivemos a criação da Lei do Feminicídio, que, depois, sofreu algumas alterações, mas apenas uma questão de tipologia criminal. Mas já temos um outro incentivo do Estado no sentido de reconhecer esse fenômeno.

Primeiro, para enxergá-lo dentro da nossa sociedade, precisamos dar simbolismo para esse fenômeno — ou seja, o que ele significa? O que o feminicídio significa para a vida de tantas mulheres? E, por fim, nomeamos esse fenômeno justamente para buscar a responsabilização e para dizer que aquele tipo de prática, por mais culturalmente arraigada que tenha sido, não é mais tolerada dentro dessa nova ordem civilizatória, nesse momento civilizatório. Tudo isso é catapultado pela Lei Maria da Penha. Claro que a Lei Maria da Penha não veio sozinha. Ela não é um beneplácito legislativo. Ela veio por pressão dos movimentos sociais, dos movimentos feministas, de mulheres. Ela inaugura uma nova gramática de direitos para as mulheres no Brasil.  

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Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.

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