Clara quase foi esquecida. Resistiram, contudo, algumas poucas lembranças sobre ela, a começar pelo nome de registro, isolado assim mesmo e sem um sobrenome — Clara. Vão aqui outras memórias que ficaram: era cozinheira, sobrevivia em Itajaí, no Litoral Norte de Santa Catarina, dispunha de aptidão física para o trabalho e tinha uma moralidade considerada boa para os costumes da época. Tinha a pele de cor preta. Aos 26 anos de idade, estava ainda a 15 de poder testemunhar o fim da escravidão no Brasil.

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Os poucos registros sobre Clara aparecem em um documento desse período histórico recém-encontrado em Itajaí. Trata-se de um livro com informações sobre ela e outras diversas pessoas negras que eram escravizadas na região na altura de 1873.

Restaurado, ele passou a fazer parte do acervo do Museu do Judiciário Catarinense, em Florianópolis, agora no mês que marca a Consciência Negra, após ter sobrevivido a uma queima geral de arquivos sobre a escravidão no país e à ação do tempo nos 149 anos em que esteve esquecido.

Por conta disso, apesar de ainda carecer de estudos mais aprofundados sobre seu conteúdo, o livro já é tratado por historiadores consultados pelo Diário Catarinense como uma obra rara sobre a escravidão.

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Como a obra foi encontrada

O documento foi encontrado nos arquivos do 1º Ofício de Registro de Imóveis de Itajaí, um cartório extrajudicial na cidade, em dezembro do ano passado, pelo advogado Lucas Paes Koch, que havia acabado de assumir interinamente o local em nome do Estado.

Fã de história, ele buscou autorização então do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) para promover o restauro da obra, bastante debilitada, o que foi acatado.

— Foi impactante encontrá-la, pelo peso histórico que ela carrega. Fiquei empolgado pela possibilidade de divulgá-la, porque é uma obra que combate a desinformação e a desigualdade. As pessoas têm que saber o que aconteceu — diz o advogado, que enviou o documento para ser recuperado em um instituto especializado de Salvador (BA), por indicação da Biblioteca Nacional e do Instituto Ruy Barbosa (IRB), referências na preservação de obras antigas.

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Ao longo do processo de restauração, as 149 páginas do livro de três quilos foram então lavadas, recuperadas, já que faltavam pedaços em algumas delas, e encadernadas.

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Ele ganhou também uma capa com o título “Livro de Penhor de Escravos”, expressão que estava escrita em uma etiqueta colada a ele, que parece não ser tão antiga quanto a obra e ter sido colocada posteriormente por alguém equivocado sobre o real conteúdo dela — a restauradora optou, ainda assim, por manter o nome catalogado pelo cartório.

Obra rara sobre a escravidão na altura em que foi encontrada (Foto: Lucas Paes Koch / Arquivo pessoal)

Do que o livro trata

Apesar do nome fazer menção a penhor, o livro traz informações sobre o seguinte tópico: “Classificação dos escravos para serem libertados pelo fundo de emancipação”.

A obra é uma espécie de inventário em que senhores de escravos listam informações sobre pessoas escravizadas por eles que poderiam vir a ser libertas mediante o pagamento de uma indenização aos próprios escravistas por um fundo público, uma possibilidade que passou a ser prevista pela Lei do Ventre Livre, de 1871, que deu início a um fim gradual da escravidão, só abolida mesmo em 1888 — o Brasil foi o último país do Ocidente a fazer isso.

Em cada linha da lista, aparecem o nome da pessoa escravizada, sempre desacompanhado de qualquer sobrenome, a idade, a matrícula (ou seja, o número de registro daquele ser humano, tratado ali como uma posse do escravista), a cor da pele (parda ou preta), a profissão, sua aptidão, moralidade, estado civil, número de familiares e o valor atribuído a ela.

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Há ainda um campo com o nome do senhor de escravo, esse com sobrenomes, e outro para observações, que traz, em geral, informações sobre o cativo ter filhos.

“Livro de Penhor de Escravos” passou por restauro e está em Museu do Judiciário Catarinense (Foto: TJSC / Divulgação)

Qual o contexto da obra

Especialista no tema, o professor Henrique Espada Lima, do departamento de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que a obra se insere em um contexto de disputa sobre o futuro da escravidão, em que, apesar de o fim dela parecer iminente e já anunciado em outras partes do Ocidente, a elite branca brasileira tentava fazer isso minimizando perdas financeiras.

Ele lembra que a economia do país dependia profundamente do regime escravista. Mesmo em contextos urbanos como o de Itajaí, famílias que não seriam hoje consideradas ricas tinham, à época, de um a cinco escravos em casa, entendidos como bens — e não como pessoas —, que poderiam ser, inclusive, vendidos, alugados, repassados para herdeiros e penhorados em cartórios.

Ainda segundo o historiador, a Lei do Ventre Livre surgiu neste sentido. Além de estabelecer que filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de então fossem considerados livres (ou “inocentes”, para os termos da época), ela determinou que fossem criados fundos de emancipação para financiar escravistas em troca da libertação de cativos.

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— Estava na cara que a escravidão iria acabar, mas, mesmo assim, uma elite proprietária se manteve aferrada à escravidão até o último momento. Então essa lei de 1871 e também a dos Sexagenários, que previa a libertação de escravizados com mais de 60 anos, extraídas a muito custo pelo Parlamento brasileiro à época, eram uma tentativa de dar fim à escravidão de maneira mais previsível e com o menor custo possível para os senhores de escravos — afirma o pesquisador da UFSC.

— O grande objetivo da elite de escravistas naquela ocasião era que a escravidão pudesse ser abolida no Brasil sem que eles perdessem nada, sem que perdessem dinheiro — completa.

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Para executar o fundo, a Lei do Ventre Livre também previa que, a cada ano, os proprietários escravistas declarassem às autoridades locais informações dos escravizados sob sua posse. Nomes que não fossem manifestados estariam libertos. É nessa altura da história, então, que surge o documento recém-encontrado em Itajaí.

Espada Lima explica ainda que a existência do fundo não garantia, no entanto, que ele estivesse abastecido, o que fez com que a iniciativa não causasse impactos estruturais na escravidão.

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A legislação previa que províncias e municípios pudessem gerir fundos próprios para esse fim, mas eles dependiam de repasses dos impostos do mercado escravista, das taxas cobradas sobre os senhores de escravos para que declarassem informações de seus cativos e da arrecadação de uma loteria associada à Lei do Ventre Livre, entre outras fontes de receita, como doações de grupos abolicionistas.

O também historiador José Bento Rosa da Silva, ex-professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e pesquisador da escravidão na região, acrescenta que fundos deste tipo eram também alvo de corrupção.

Ele conta, fazendo menção ao livro “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, do sociólogo Clóvis Moura, que a elite escravista desviava verbas de fundos de emancipação e se aproveitava dos valores disponíveis para terem algum último rendimento com escravizados já velhos ou incapazes de trabalhar.

Rosa da Silva também afirma que é necessário ter cuidado com as informações prestadas pelos senhores de escravos sobre as pessoas escravizadas em documentos como o de Itajaí, uma vez que eles tentavam valorizá-las como produtos para que pudessem ter direito a uma indenização maior dos fundos — um escravizado contrariado com sua condição e arisco aos mandos do senhorio, por exemplo, seria declarado, ainda assim, como de moralidade boa.

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A Lei do Ventre Livre não estabelecia uma quantia a ser paga por cada liberto. Essa estimativa era feita a cada escravizado por uma junta classificatória composta por autoridades locais gestoras de cada fundo. Em Itajaí, Rosa da Silva já teve acesso, em pesquisa anterior, a um edital de 1883 convocado pela Câmara dos Vereadores, com o qual ela chamava escravistas a levarem seus cativos para serem precificados.

— Esse valor flutuava muito. Na época da proibição do tráfico negreiro, por exemplo, os escravizados passaram a ter um preço maior. Então em 1873, um escravo nessa faixa etária de pouco mais de 20 anos, em idade ativa para trabalhar, não sairia por menos de 800 mil réis. Já encontrei registros de escravizados que foram vendidos por um conto de réis [equivalente a um milhão de réis]. É difícil fazer uma conversão para valores de hoje, mas usamos muitas equivalências. Daria para se comprar uma casa com isso — diz Rosa da Silva.

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Ele ainda reforça que todo esse valor era repassado apenas ao escravista. Já a pessoa antes escravizada passaria à condição de liberta sem qualquer reparação e ainda mais vulnerável socioeconomicamente, já que não teria mais o nome de seu senhor associado ao seu, o que permitia até então ao menos alguma proteção legal — Clara, a jovem negra citada no início desta reportagem, pode ter passado por isso.

— Ela não tem sobrenome. É Clara de quê? Ou de quem? Então já começa pela identidade. Se liberta, possivelmente, ela vai buscar um sobrenome que lhe dê proteção, do antigo senhor. É uma escravizada do ambiente urbano, então, provavelmente, vai exercer o trabalho doméstico, de lavadeira, cozinheira, até na casa do mesmo senhor, ou vai vender coisas na rua. Outra alternativa era ir para a beira do cais e buscar uma forma de sobreviver — afirma o ex-professor da Univali.

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Qual a importância da obra

Os dois pesquisadores atentam para a importância da obra como possível objeto de futuras pesquisas. Seria possível identificar a partir dela, por exemplo, escravistas da época e até esboçar as origens de pessoas negras da região, privadas de memórias e registros sobre seus ancestrais.

O professor Henrique Espada Lima ainda destaca a relevância do documento devido à sua raridade, já que, em 1891, dois anos depois de ter sido proclamada a República, o então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, determinou que fossem queimados todos os arquivos deste tipo, alusivos ao período de mais de 300 anos de escravidão no Brasil.

— Uma das primeiras coisas que ele faz é mandar destruir os registros fiscais da escravidão, de pagamento de impostos por escravos, de penhora, esses registros todos que poderiam produzir algum fundamento para um futuro processo que pedisse a reparação financeira por parte dos senhores de escravos. Esses documentos foram destruídos em sua maior parte, muitos deles estavam, inclusive, nos cartórios — afirma Lima, que diz acreditar que a obra remanescente de Itajaí pode ter sido esquecida.

Chefe da seção do Museu do Judiciário Catarinense, a também historiadora Jaqueline dos Santos Amaral reforça a disposição em submeter o arquivo a estudos e a já reconhecida importância dele.

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— É uma fonte primária, é uma prova do que aconteceu — diz a servidora, que participou da cerimônia de recebimento da obra como uma doação do advogado Lucas Paes Koch, em 8 de novembro.

A obra está hoje exposta para visitantes no museu, estabelecido na sede do TJSC, na rua Álvaro Millen da Silveira, de número 208, no Centro de Florianópolis. O local funciona em dias úteis das 12h às 19h. Pesquisadores interessados em investigar o documento devem fazer à Corte uma requisição formal de acesso ao pleno conteúdo dele.

Historiadora Jaqueline dos Santos Amaral recebe doação de Lucas Paes Koch (Foto: TJSC / Divulgação)

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