Os motociclistas passaram a ser o perfil mais comum das mortes por acidentes de trânsito na última década em Florianópolis. Quase quatro em cada 10 vítimas no período transitavam em motos (38,3%). Nos 10 anos anteriores, eram cerca de duas (19,9%).
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Em números absolutos de 2011 a 2020, dos 726 óbitos de pessoas em acidentes com transportes terrestres, ao menos 278 envolveram motociclistas. Eram 214 na década anterior, quando o pedestre era a vítima mais comum na capital de Santa Catarina, com 287 casos, ou seja, 26,7% dos 1.072 registros.
O fato foi identificado pelo Diário Catarinense a partir dos casos registrados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do governo federal, e compilados pelo DataSUS. Em Santa Catarina, a Diretoria de Vigilância Epidemiológica (Dive) também reúne os dados para divulgação. Os números deste ano e de 2021 ainda são preliminares, por isso não foram considerados na análise.
Um dos principais fatores para o maior número de mortes de motociclistas é o aumento da frota de motos na capital catarinense entre os dois períodos, segundo a Rede Vida no Trânsito, que reúne diversas autoridades do Estado na prevenção aos acidentes.
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“Em 2010, havia 35.016 motos registradas (6 mortes/mil motos). Em 2020, este número passou para 51.638 (5 mortes/mil motos)”, escreveu em comunicado enviado pela Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis (SMS), que integra o projeto.
Só o aumento da frota, no entanto, não justifica todo o cenário, como já reconhece a própria Rede Vida no Trânsito, que adota uma abordagem multidisciplinar para tratar do tema. Isso fica claro quando se olha, por exemplo, a frota de automóveis na Capital, que também aumentou, enquanto o número de mortes de ocupantes de carros diminuiu.
Em 2010, eram 181.210 automóveis na capital. Já há dois anos, havia 231.978, também segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na contramão disso, a quantidade de motoristas e passageiros de carros mortos no trânsito foi de 151 vítimas em 10 anos para 142 na década seguinte.
Especialista em acidentes de trânsito, o pesquisador Lúcio José Botelho, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), diz que as mortes de motociclistas se tratam de um fenômeno social complexo, que não se resume a Florianópolis.
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Médico e também ex-reitor da UFSC, ele afirma que, se fosse preciso apontar um único culpado para o problema, se trataria do Estado brasileiro, que acaba estimulando o uso da motocicleta sem necessariamente propor condições estruturais que criem segurança para isso. Ainda assim, reforça que as causas e as expressões disso são diversas.
— Você compra hoje uma moto pagando uma prestação a valores muito menores do que se for usar o transporte coletivo. Às vezes não paga a prestação, e usa a moto como um ganha-pão. A sociedade que reclama dos motociclistas é a mesma que fica com raiva se a pizza chegar fria. E os motociclistas, para ganhar a vida com as motocicletas, se arriscam muito mais do que deveriam — diz Botelho.
É possível ainda que, já na década anterior, as mortes de motociclistas fossem um fenômeno mais grave do que os dados do DataSUS mostram hoje.
A reportagem identificou que, de 2001 a 2010, parte dos registros de mortes em Florianópolis envolvendo acidentes, de 32,4% (348 mortes), associava o óbito no trânsito a uma categoria genérica, de veículo motorizado ou não, sem especificar do que se tratava.
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Na década seguinte, esse índice caiu para 9,3%, com 68 mortes categorizadas deste modo. Entre os dois períodos, ao passo em que as mortes deste tipo recuaram, o percentual de óbitos de motociclistas aumentou.
Já registros sobre outras vítimas do trânsito, como pedestres, ocupantes de carros e ciclistas, tiveram até queda ou seguiram em patamar parecido, o que sugere que o volume sem especificação foi incorporado pelos dados de acidentes com motos.
Em 2008, por exemplo, quando houve 10 mortes de motociclistas em Florianópolis no trânsito, o menor número dos registros no período de 20 anos analisado pela reportagem, também ocorreu recorde nesta série histórica de óbitos por acidentes sem especificação, com 64 casos. A correlação também indica possível subnotificação das mortes em acidentes com motos anteriormente.
Além disso, os óbitos não especificados seguiam um perfil parecido ao que até hoje costuma envolver motociclistas, com uma maioria de homens, de estado civil solteiro e idade entre 20 e 29 anos.
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À reportagem, a área técnica da Dive confirma que houve qualificação dos dados ao longo dos anos, mas não fez estimativa sobre do que se tratavam os registros genéricos até então.
Já a Rede Vida do Trânsito diz que trabalha com análises dos registros a partir de 2013, quando adotou uma metodologia com cruzamento de informações que permitiu uma melhora dos dados.
“Antes disso, não era possível este nível de detalhamento porque só havia disponibilidade dos dados da declaração de óbito, que, frequentemente, não continha informações sobre o tipo de modal”, escreveu o projeto.
Essa mudança na qualificação dos registros vai além de Florianópolis. Em 2009, uma portaria do Ministério da Saúde buscou melhor estruturar e intensificar os trabalhos de vigilância de óbitos em todo o país para reduzir o número de registros sem especificação, não só relacionados ao trânsito.
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Já em 2011, o governo federal também passou a utilizar uma declaração de óbito que coleta ainda mais detalhes. O formulário é preenchido pelo médico responsável por atestar a morte do paciente. O documento ainda passa por órgãos locais de saúde até chegar aos registros.
Autoridades de saúde reconhecem que o acompanhamento dos dados a longo prazo é fundamental para se estabelecer políticas públicas que possam reduzir mortes evitáveis, caso das que têm motociclistas como protagonistas em Florianópolis.
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