Diferentes fatores influenciam no desenvolvimento de uma doença. Por isso, há dificuldades em estabelecer uma relação direta com o contato com agrotóxicos e a saúde durante a atividade rural. Isolar esses fatores causadores é possível somente a partir de estudos com milhares de pessoas sendo acompanhadas ao longo de anos, conforme explica o médico pneumologista do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina (Ciatox/SC), Pablo Moritz. Mas nem por isso os impactos negativos na saúde deixam de ser considerados:
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— Só vamos descobrir isso depois de décadas errando, produzindo alimentos dessa maneira e depois descobrindo os efeitos na população.
Todos os casos de intoxicação por agrotóxico que chegam às unidades de saúde do Estado, sejam agudos ou crônicos, são registrados pela Ciatox.
— Individualmente, é sempre muito difícil. É por probabilidade. Se a pessoa se expôs àquilo e a gente não encontra outra causa, é provável o nexo causal, e a gente pode sim inferir pela probabilidade que aquela foi a principal causa — explica.
Nexo causal é o nome dado ao fator que liga uma doença ao fator que a teria causado.
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O principal problema em relação aos agrotóxicos atualmente está relacionado aos impactos em longo prazo.
— Os sintomas agudos e a intoxicação aguda são uma pequena parte do problema. A maior parte das pessoas não sente o efeito imediatamente, as doenças vêm muitos anos depois da exposição — explica o médico.
Por essa razão, os impactos nos organismos dos seres humanos ainda estão sendo estudados pela medicina. Entretanto, de acordo com Moritz, a exposição é prejudicial tanto para quem trabalha diariamente na produção quanto para quem consome os alimentos.
— O produtor rural é muito mais exposto, porque ele respira agrotóxicos. A pessoa que vai na lavoura aplicar traz para dentro de casa, na roupa, resíduos que são suficientes para provocar doenças. Contamina o solo onde ele pisa, a água que ele usa no dia a dia — explica.
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Moritz afirma que mesmo os agricultores que usam Equipamento de Proteção Individual (EPI) estão expostos aos problemas de saúde causados pelas substâncias químicas.
— EPI não resolve o problema, não pode ser o foco da solução. A gente não vai usar equipamento de proteção para comer nem para usar água. O uso de equipamento tem que ser recomendado, mas ele não evita essas graves consequências do longo prazo de maneira nenhuma, porque o contato é com muitas substâncias químicas — destaca.
Desde o início do ano, 410 foram aprovados entre janeiro e o dia 17 de outubro deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro. O aumento no número de resíduos têm deixado os consumidores cada vez mais expostos aos riscos causados por essas substâncias, de acordo com o médico da Ciatox, Pablo Moritz.
— No Brasil, nós usamos produtos que já foram banidos há muito tempo em países desenvolvidos. Enfrentamos o problema do contrabando de várias substâncias químicas mais tóxicas à saúde, a água que chega aos consumidores têm chegando com resíduos de agro. O consumidor pode estar longe do processo, mas está cada vez mais exposto.
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Crianças, tanto durante a gestação quanto na infância, são as mais suscetíveis, segundo ele, pois o contato nesse período altera o desenvolvimento cerebral, favorecendo o aparecimento de doenças na vida adulta.
Não existe dose segura. A toxicidade depende da época da exposição. Para um feto na barriga da mãe, não existe dose segura de nenhum agrotóxico, porque se ele for exposto e estiver em alguma fase crítica em que precisa de determinada concentração de hormônios para promover o bom funcionamento de algum órgão, vai ter doenças no futuro Pablo Moritz, da Ciatox/SC
O médico também explica que as substâncias presentes em herbicidas, inseticidas e produtos afins causam pelo menos três graves danos à saúde, como a desregulação hormonal, o desenvolvimento de câncer e alterações na flora intestinal.
Vários órgãos do corpo humano dependem dos hormônios, como a tireoide, os testículos e ovários. A desregulação acaba levando a doenças, como obesidade, diabetes, infertilidade, câncer de mama, câncer de testículo, câncer de ovários, depressão, além de alterações no comportamento sexual e disfunção da tireoide, segundo o médico. Também aumenta o risco de desenvolver doenças de Parkison e Alzheimer.
— Essas substâncias são feitas para matar fungos, bactérias, plantas, insetos, e o contato frequente, mesmo em baixas doses, está provado que aumenta as chances de leucemia, linfomas e câncer em vários órgãos do nosso corpo.
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A desregulação da flora intestinal é outro grande problema que nas últimas décadas têm sido observado, conforme o médico Pablo Moritz. Ao afetar o intestino, o sistema imunológico também é afetado, favorecendo o aparecimento de doenças autoimunes e alergia. Os efeitos na saúde podem se estender aos filhos, netos e descendentes, porque causa alteração na expressão dos genes, conforme ele explica.
— Muitas doenças são transmitidas geneticamente, então é um problema muito sério. As mais afetadas são as gestantes, por causa do feto, e vai afetar gerações futuras de forma muito marcante —
O desenvolvimento de doenças a partir do contato com agrotóxicos está sendo investigado em duas pesquisas desenvolvidas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A doutora em Toxicologia e Análises Toxicológicas pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de toxicologia do departamento de Patologia da UFSC, Claudia Regina dos Santos, tem desenvolvido uma pesquisa que analisa a saúde de trabalhadores rurais da Grande Florianópolis.
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O estudo teve início em 2014 e é um dos primeiros do Estado que investiga a relação direta entre a saúde e a exposição aos agrotóxicos. Atualmente, a pesquisa está sendo realizada em Santo Amaro da Imperatriz. Os primeiros a participaram foram moradores do município de Antonio Carlos.
Tanto agricultores expostos a agrotóxicos quanto pessoas que não trabalham na agricultura têm amostras de sangue coletadas para avaliação laboratorial, passam por avaliação clínica, fazem exames de imagem, ultrassom de tireoide e abdômen, e respondem a questionários.
Até o momento, já foi possível observar doenças em um número considerável de pessoas com pré-diabetes, possível redução de testosterona em homens, já foram feitos diagnósticos de câncer de tireoide, hipertensão arterial sistêmica, alteração no fígado, conforme Dos Santos.
Entretanto, segundo ela, os estudos ainda requerem análises estatísticas e, em determinados casos, mais apuradas.
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— O que a gente precisa é comparar o grupo de agricultores com o de não-agricultores para poder, então, afirmar que esse grupo apresenta um índice maior com relação a essas doenças — explica.
Até então, a maioria das informações reunidas sobre o tema em Santa Catarina eram obtidas a partir de questionários. Conforme a professora, diziam respeito à quantidade de produto usado, ao modo de utilização e à consciência dos produtores rurais sobre os riscos dessas substâncias.
A motivação para ir a campo investigar os impactos na saúde dos trabalhadores rurais surgiu por causa do uso crescente de agrotóxicos no Estado, de acordo com a professora.
— O que motivou o grupo a focar no tema da pesquisa foi a literatura internacional trazer essa ação de uma ou mais substâncias poder causar esse nível de alteração em nível hormonal — explica Dos Santos.
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A professora Claudia Regina dos Santos também é supervisora do Ciatox. Ela conta que muitos casos de intoxicação de trabalhadores rurais do Estado não chegam ao Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Santa Catarina.
Outro desafio, segundo ela, está em reunir dados mais precisos sobre a saúde desses agricultores. Para a doutora em toxicologia, falta a criação um protocolo específico para intoxicação por agrotóxico.
Nos casos agudos, os sintomas são mais fáceis de serem identificados. Já os casos crônicos, que podem estar relacionados a diabetes e hipertensão, acabam não sendo focados, de acordo com ela.
— Muitas vezes, passa por uma consulta e sequer é questionado qual é a profissão dele. É preciso sensibilizar muito quem faz esse atendimento para poder ter um dado um pouco maior — explica.
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Outro estudo sobre o tema está sendo desenvolvido desde 2009 pelo departamento de bioquímica da Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa é coordenada pela doutora em bioquímica Ariane Zarmoner Pacheco de Souza, professora no departamento.
Os impactos no sistema nervoso central causado por herbicidas a base de Glifosato — um dos compostos mais utilizados no mundo — estão sendo investigados em modelos animais.
A partir de dois trabalhos publicados em 2014 e 2017 é possível observar os efeitos que a exposição a esse agrotóxico causa no cérebro, de acordo com a bioquímica.
— Esses animais, quando se tornam adultos, desenvolvem um comportamento tipo depressivo. Sabe-se que agricultores têm maior incidência de suicídio do que a população em geral. Talvez esse aumento na atividade depressiva pode estar relacionado à depressão nesse grupo populacional — explica.
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Apesar da dificuldade em estabelecer uma relação direta entre as reações causadas nos cérebros animal e humano, a professora da UFSC afirma que os pesquisadores trabalham para compreender o que os agrotóxicos podem fazer nos organismos que não têm relação com a substância.
— O objetivo do glifosato, por exemplo, é ser um herbicida. A partir do momento que ele está afetando a célula de um mamífero, ele pode trazer consequências também ao ser humano, assim como para outras espécies animais presentes na natureza.
De acordo com Pacheco de Souza, está sendo investigado também os efeitos causados pelo glifosato presente na água potável do Brasil, levando em conta a concentração dentro do limite permitido pela legislação, que é cinco vezes superior a da Europa.
Um novo projeto, ainda em fase inicial, pretende observar se os agrotóxicos podem contribuir para o desenvolvimento de tumores.
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— Dados epidemiológicos sugerem que ser agricultor é um fator de risco para o desenvolvimento de alguns tipos de tumores. Esses indivíduos estão expostos a uma grande quantidade de substâncias. É muito difícil você dizer se é ou não o agrotóxico, esse é um passo que pretendemos dar a partir de agora — explica Pacheco de Souza.
Se confirmados os impactos dos agrotóxicos para a saúde humana, a pesquisadora espera que o estudo sirva de alerta para órgãos reguladores, indústrias, setores produtivos.
— Nós sabemos que é pouco provável que a partir de resultados encontrados na universidade vão deixar de usar agrotóxico, mas que se use com mais racionalidade e que se pensem em métodos produtivos mais seguros — finaliza.
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