Uma mulher de 44 anos de Herval d’Oeste, no Meio-Oeste de Santa Catarina, entra para a conta de óbitos por coronavírus no Estado no dia 10 de agosto. Teria morrido em 10 de maio, três meses antes. Em 18 de agosto, no entanto, o caso é removido da lista de mortes. Ao questionar a Secretaria de Estado da Saúde sobre as razões da exclusão, a reportagem do NSC Total descobre que, na verdade, o caso permanecia na base, mas com outro status: a paciente já estava curada (veja detalhes do caso na imagem abaixo ou nesta planilha).

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> Painel do Coronavírus: veja dados atualizados da pandemia em SC

É desde 10 de agosto que o governo de Santa Catarina decidiu automatizar a integração de bases de dados do SUS, de prefeituras e laboratórios privados que testam para coronavírus. Também é a partir dessa data que a Secretaria de Estado da Saúde deixou de informar diariamente o perfil das novas mortes confirmadas e a quais cidades pertenciam, prática que era adotada desde 25 de março, quando houve o primeiro óbito.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, deixar de informar diariamente os detalhes sobre as novas mortes, no auge da pandemia, é um retrocesso nas práticas de transparência pública e informação precisa para quem está na linha de frente no combate ao vírus.

Da morte para a cura: caso de Herval d’Oeste foi divulgado equivocadamente como óbito por covid-19 (coluna do meio) entre os dias 10 e 17 de agosto. A partir do dia 18 (coluna da direita), status da paciente muda e passa a ser considerada curada na mesma base de dados (Foto: Dados Abertos do Estado / Reprodução)
Da morte para a cura: caso de Herval d’Oeste foi divulgado equivocadamente como óbito por covid-19 (coluna do meio) entre os dias 10 e 17 de agosto. A partir do dia 18 (coluna da direita), status da paciente muda e passa a ser considerada curada na mesma base de dados (Foto: Dados Abertos do Estado / Reprodução) (Foto: Arte sobre Base de dados abertos do Estado)

A justificativa do Estado foi de que, com o aumento no número de mortes, a informação estaria disponível na base de dados abertos, um arquivo com mais de 120 mil linhas e 39 colunas de dados que se ergue como desafio a qualquer leigo em planilhas eletrônicas. A reportagem da NSC, no entanto, tem feito um esforço diário, com uso de ferramentas de análise de dados, para garantir que as informações sejam disponibilizadas à sociedade diariamente por meio do portal NSC Total e de todos os veículos.

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Num único dia, 28 mortes foram contadas duas vezes

Não bastasse a dificuldade a quem deseja acompanhar a evolução dos casos no Estado, a integração e automatização de bases da covid-19 em Santa Catarina geraram transtorno e informações confusas. No dia 10 de agosto, foram divulgadas mais 96 mortes num único boletim do Estado, a maior marca atingida nesta pandemia. Mas o montante não se confirmou verdadeiro dias depois.

Ao comparar com a base de dados do dia anterior, no entanto, a reportagem identificou pelo menos 28 óbitos inseridos como novos pelo Estado que já haviam sido informados em boletins anteriores. Ou seja, esses casos passaram a contar duas vezes como se fossem uma única pessoa e ajudaram a elevar o total acumulado de óbitos para 1.541 em 10 de agosto, quando eram 1.513, na verdade. Veja abaixo um trecho da planilha com os dados duplicados de 10 de agosto (a relação completa com as mortes duplicadas veja neste link)

Reportagem da NSC identificou que pelo menos 28 óbitos foram “contados duas vezes” no boletim divulgado pelo Estado em 10 de agosto, quando a Secretaria de Saúde decidiu automatizar integração das bases de covid-19. Casos duplicados ajudaram a elevar o total acumulado de óbitos para 1.541 naquele dia, quando eram 1.513 na verdade. Os mesmos dados foram enviados ao Ministério da Saúde. Nos dias seguintes, os casos duplicados foram removidos aos poucos
Reportagem da NSC identificou que pelo menos 28 óbitos foram “contados duas vezes” no boletim divulgado pelo Estado em 10 de agosto, quando a Secretaria de Saúde decidiu automatizar integração das bases de covid-19. Casos duplicados ajudaram a elevar o total acumulado de óbitos para 1.541 naquele dia, quando eram 1.513 na verdade. Os mesmos dados foram enviados ao Ministério da Saúde. Nos dias seguintes, os casos duplicados foram removidos aos poucos (Foto: Arte sobre Dados Abertos do Estado)

Como agravante, esses mesmos dados foram enviados para o Ministério da Saúde, que somou com o resultado de outros estados para divulgação do balanço diário em todo o país, além de refletir nas estatísticas dos municípios.

Nos dias seguintes, essas mortes duplicadas começaram a ser excluídas da base estadual. Mas novos casos foram identificados pela reportagem. No último domingo, foi divulgada a morte de um homem de 81 anos em Timbó, que ocorreu em 14 de agosto. Na segunda-feira, apareceu novo caso idêntico. Apesar de a Secretaria ter confirmado à reportagem de que se tratavam de duas pessoas distintas, o Estado voltou atrás, e a duplicidade foi finalmente removida da base na terça-feira.

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Em comunicado, governo do Estado informou em 10 de agosto que não informaria mais detalhes sobre novas mortes, devido “ao aumento do número de óbitos”
Em comunicado, governo do Estado informou em 10 de agosto que não informaria mais detalhes sobre novas mortes, devido “ao aumento do número de óbitos” (Foto: Arte sobre reprodução do site do Governo de SC)

Segundo o chefe do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, Fabrício Augusto Menegon, em todo o processo notificatório de óbitos existe a possibilidade de se fazer correções posteriores, devido ao alto volume de informações diárias que o serviço de saúde recebe. 

No entanto, num contexto de pandemia, a postura que se espera é diferente, diz o especialista, que avalia os cinco meses que já se passaram desde a notificação do primeiro caso de covid-19 em Santa Catarina, tempo suficiente para uma estruturação mais eficiente, com alinhamento entre Estado e prefeituras:

São 295 municípios que disponibilizam dados para a Secretaria (de Estado de Saúde) diariamente, o que gera um volume de informações que ela tem que lidar muito grande. Mas Santa Catarina é um dos melhores estados em vigilância epidemiológica e de grande aparato tecnológico. Era de se esperar que a Secretaria de Estado Saúde já estivesse conseguindo aparar essas arestas do processo notificatório. Que já estivesse devidamente alinhada com as prefeituras para que não existissem esses erros que vão refletir lá na ponta, lá no município onde o serviço opera de verdade. Chefe do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, Fabrício Augusto Menegon

> Como a reportagem do NSC Total avalia dados diários de mortes de coronavírus no Estado

Especialista diz que omitir informações da pandemia contraria leis federais

Enquanto o próprio Ministério da Saúde já admitiu a possibilidade de haver subnotificação de casos confirmados no Brasil, porque não foi possível fazer testagem em massa, os especialistas afirmam que é no total de mortes que se deveria ter mais precisão sobre o alcance da doença para mapear o avanço da covid-19. Mas se a base de dados apresenta inconsistências e até mortes duplicadas, torna incertas as tentativas de acompanhar as estatísticas para tomadas de decisão e fazer projeções.

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Na avaliação da gerente de projetos da Transparência Brasil, Marina Iemini Atoji, a imprecisão e a falta de clareza dos dados não só são um desserviço, como uma violação da Lei de Acesso à Informação, que assegura o direito à informação pública a todos os cidadãos, e uma violação da Lei de Emergência Nacional de Saúde Pública, que fala sobre a doença de forma precisa e acurada:

Essas informações são essenciais para o planejamento de combate à pandemia das prefeituras, das secretarias regionais de saúde e para os cientistas estudarem o comportamento do vírus no estado. É fundamental ter uma informação de precisão para ações de mitigação. Gerente de projetos da Transparência Brasil, Marina Iemini Atoji

Para Marina, até mesmo as mudanças de metodologia, sem o devido histórico, prejudicam o enfrentamento da doença, já que afetam a comparabilidade dos dados:

– Não adianta o governo falar que consulta cientistas se eles (cientistas) não têm acesso a dados confiáveis e uniformes cujo método de divulgação toda hora muda. É botar banana para comparar com laranja.

Nesse contexto, conforme a gerente de projetos, a imprensa é fundamental “para jogar luz sobre a falta de transparência do poder público”.

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É preocupante que, durante uma pandemia, as autoridades criem dificuldades de acesso para a imprensa e os cidadãos. Por mais que o governo catarinense tenha disponibilizado os dados, é obrigação do governo esclarecê-los ou explicá-los quando os números sinalizam dados conflitantes. Presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel

Träsel defende que jornalistas, sociedade e pesquisadores precisam de dados e ferramentas seguros, que não induzam a erros. Essa falha no fluxo de transparência de dados e até a falta de entrevistas coletivas diárias, como o Estado costumava fazer no início da pandemia, colocam em risco avanços democráticos, na opinião do presidente da Abraji .

Para Luiz Fernando Toledo, um dos diretores da entidade, a divulgação de informações públicas em formato aberto pode ser algo positivo por dar à população a capacidade de elaborar suas próprias análises, sem ficar refém de textos oficiais. Mas se esses dados tiverem imprecisões ou erros que não são corrigidos, corre-se o risco de desinformar. É fundamental que o órgão responsável pelos dados faça as correções necessárias e auxilie os jornalistas a entender o que eles representam, pontua Toledo.

Especialistas em saúde pública dizem haver falta de transparência

Em Santa Catarina, entidades ligadas à saúde cobraram mais transparência do Estado logo no início da pandemia. Ainda em abril, um levantamento da Open Knowledge Brasil, instituição de defesa de dados públicos abertos e transparentes, classificou SC entre os 7 estados com o pior nível de transparência nas informações sobre a covid-19.

A pressão gerou retorno positivo: as novas mortes eram divulgadas diariamente, individualmente, preservando a identidade das vítimas, e uma base de dados abertos foi criada no fim de maio, permitindo pesquisadores, prefeituras, jornalistas e qualquer cidadão interessado acompanhar mais detalhes sobre casos e mortes. Mas desde 10 de agosto apenas a reportagem da NSC, com base em cruzamento de dados feito diariamente, passou a divulgar os detalhes das novas mortes diante da recusa do governo do Estado desde então.

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Para o doutor em epidemiologia e professor do Departamento de Saúde Pública da UFSC, Lúcio Botelho, a informação é o pilar para o enfrentamento da pandemia.

A falta de informação numa pandemia agrava de uma maneira absurda a situação. Todos nós do Departamento de Saúde temos batido na mesma tecla desde o início. A gente vive conflitos antagônicos de economia e pandemia que não deveriam ser vivenciados. E dado real tem que ser encarado dessa maneira, porque não vamos chegar a lugar nenhum se não enxergarmos a realidade. Professor do Departamento de Saúde Pública da UFSC, Lúcio Botelho

O especialista é crítico ao considerar que a falta de transparência dos dados, assim como a postura de enfrentamento do coronavírus, estão ligadas a uma incapacidade gerencial do governo.

– Não se trata de desserviço, a gente não pode nem chegar nesse pavimento. Se trata de uma incapacidade administrativa brutal – opina Botelho.

Secretário de Estado da Saúde, André Motta Ribeiro
Secretário de Estado da Saúde, André Motta Ribeiro (Foto: Divulgação)

Secretário de Saúde justifica que complexidade dos dados exigiu mudança de prática

Para o secretário de Estado da Saúde, André Motta Ribeiro, não há falta de transparência, mas uma mudança na forma de controle dos dados, que antes era manual e agora é sistematizado. Essa alteração ocorreu, argumenta o secretário, devido ao quantitativo de óbitos que teria tornado a captação de dados mais complexa, além do atraso no repasse de informações dos municípios para o Estado, que ocasiona em algumas divergências de dados de um dia para o outro.

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Como exemplo, o secretário cita a migração da cidade do óbito. Segundo ele, como muitos pacientes saem da cidade onde moram para receber atendimento em municípios onde estão os hospitais aptos ao tratamento de covid-19, alguns óbitos são relatados para a cidade da unidade hospitalar, no primeiro momento, mas alteradas posteriormente, para o município de origem da vítima.

Foi até um pedido que veio dos municípios, inclusive, que no primeiro momento o quantitativo (dos óbitos) fosse divulgado e, depois, a cidade (à qual o óbito pertence). É um controle muito grande, mas a transparência está presente de qualquer forma. Secretário de Estado da Saúde, André Motta Ribeiro

Questionado sobre as dificuldades que o público pode encontrar na consulta dos dados individuais de cada óbito, Ribeiro disse concordar que a informação é melhor quando mais clara e não demonstrou relutância sobre a possibilidade de alterar o formato como os casos são divulgados, desde que a informação tenha impacto para a sociedade:

– Não vejo problema nenhum quanto a isso, mas se essa informação tivesse impacto, a região de Itajaí, que tem um número alto de mortes, talvez não tivesse na situação como está. Porque, mesmo com a informação disso (onde ocorreram as mortes, idade e gênero das vítimas), não fez a menor diferença – resume.

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