Quando era uma das lavadeiras do Monte Serrat, Dona Bibina saia de casa antes das 7h, voltando apenas no fim da tarde. Sem comida, assobiava e conversava para esquecer a fome. Seguia naquele momento os passos da mãe, que viveu até os 97 anos e “trabalhou muito com lavação”. Dona Bibina, nascida em 1929, é um exemplo da história e da atividade das lavadeiras que formaram a região central de Florianópolis. As nascentes d’água, distribuídas pela comunidade, contribuíram para que as lavações se tornassem um trabalho importante para a subsistência do morro, como conta Maria Conceição Coppete, doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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— A Dona Bibina [uma das mulheres entrevistadas na pesquisa dela] me contava não lavava roupa pra vestir, ela lavava roupa pra comer. Ganhava 5 mil réis [em torno de R$ 125] para conseguir sobreviver — relata.

Em Florianópolis, a comunidade do Monte Serrat abriga a história das lavadeiras, que recentemente viraram tema de um livro infantil, chamado de “Lava, lavadeira, na pedra da cachoeira”. O livro resgata as memórias e o protagonismo feminino do local, em histórias que revelam mulheres que sustentaram famílias, preservaram tradições e ajudaram a moldar a identidade coletiva da comunidade.

O Monte Serrat, também conhecido como Morro da Caixa, se tornou estratégico para as lavadeiras desalojadas do Centro da cidade, por volta da década de 1920. O lugar abrigou a comunidade feminina e suas famílias quando o projeto de urbanização de Florianópolis expulsou a população pobre e negra, que vivia na área central, segundo a pesquisadora da UFSC, Cauane Gabriel Azevedo Maia.

Após subirem para os morros, as lavadeiras foram, em grandes proporções, fonte de sustento e complementação de renda das famílias do Monte Serrat. Muitas vezes, o trabalho exigia que elas levassem seus filhos junto para as fontes e bicas d’água, para auxiliá-las nas diferentes funções ou como alternativa para não deixá-los sozinhos em casa. 

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O historiador Camilo Buss Araujo, ao pesquisar a importância das lavadeiras no Monte Serrat entre 1950 e 1960, considerou que há uma conexão muito forte entre os espaços de moradia e trabalho. Os limites, entre as atividades domésticas e a labuta das lavadeiras, segundo ele, muitas vezes se confundiam pelo local de trabalho estar tão perto de casa, por exemplo.

O rio que cortava o Centro, mas também era sustento

As fontes d’água, em que as lavadeiras trabalhavam, eram as nascentes do Rio da Bulha, formado a partir de duas: uma no Monte Serrat e outra no Morro da Cruz. O rio passava pela Av. Hercílio Luz e pela Av. Mauro Ramos, fazendo um percurso completo, sendo chamado, pelo arquiteto Rafael Alves Campos, de “o caminho das lavadeiras”.

A pesquisadora Raísa Gomes, da UFSC, explica que o rio passava por bairros muito pobres – como o da Pedreira e o Beco Sujo. Além de ser o local de trabalho das lavadeiras que moravam ao redor, também recebia os esgotos das casas e cortiços construídos no entorno. 

De acordo com Raísa, isso fazia com que o rio fosse visto como fonte de infecções, miasmas (doença com a emanação de substâncias em decomposição) e epidemias, além de empecilho ao progresso e civilização.

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— Esses fatores fizeram com que o Rio da Bulha se tornasse um dos principais alvos de políticas higienistas vindo a ser aterrado para a construção da Avenida Hercílio Luz, iniciada em 1919 e inaugurada em 1922 — diz. 

O surgimento do “Morro Feminino” no Centro de Florianópolis

É a partir das lavadeiras que, de acordo com a pesquisadora Cauane Gabriel Azevedo Maia, o Monte Serrat foi chamado de “Morro Feminino”. Segundo dados de usuários ativos no Centro de Saúde do Monte Serrat, da Secretaria de Saúde de Florianópolis, a comunidade abriga 10.562 pessoas. Dessas, 5.514 são mulheres (52,2%) e 5.048 homens (47,8%). Ou seja, mais da metade da população local é composta por mulheres.

Entretanto, para além dos dados, o Monte Serrat é chamado de “Morro Feminino” pela forte presença de mulheres nas áreas que trouxeram à comunidade a identidade coletiva do local, já que são maioria entre os chefes de família.

A ideia de um morro feminino é reforçada pelas trajetórias das lavadeiras que, com suas trouxas de roupas, percorriam os caminhos do morro rumo às fontes d’água e, depois, às casas no Centro da cidade, onde entregavam as roupas, criando um percurso de idas e vindas. Ao longo dos anos, cada vez mais, esse caminho incluía meninas e mulheres no jogo da sobrevivência, em que a prioridade era a alimentação.

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O trabalho das lavadeiras era uma prática muito diferenciada daquela exercida pelas mulheres da elite de Florianópolis. As atribuições de lavar, quarar, dobrar, passar eram relacionadas às mulheres, sobretudo as negras, que executavam tais tarefas nas roupas das mulheres brancas.

Lançado em 1992, o livro “Comunidade Monte Serrat – Memórias”, do escritor João Ferreira Souza, resgata importantes figuras da comunidade. Uma delas é a Dona Catarina Barbosa, uma das lideranças locais que é citada como símbolo do protagonismo feminino na comunidade. Nascida em 1931 e moradora do Pastinho, teve nove filhos. Sustentou a família com lavação de roupas, sendo uma pioneira entre as primeiras mulheres que chegaram na cachoeira onde o trabalho era feito.

Além disso, não só lutou pela própria subsistência e da família, como também participou ativamente dos mutirões comunitários, segundo João Ferreira de Souza.

— A história da Dona Catarina é a nossa herança. É a história de uma mulher que ensina a viver com dignidade e que abre espaços para que a vida nasça todos os dias com esperança de ser melhor construída com as nossas mãos — registra o autor.

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Em memória

Formada em Educação, a professora Priscila Freitas escreveu o livro infantil “Lava, lavadeira na pedra da cachoeira”. A obra narra a história das lavadeiras, mas com um olhar mais lúdico, levando a história dessas mulheres para outras gerações. 

O texto conta a história de uma menininha negra, muito “curiosa e sapeca”, que, após encontrar uma pedra “que brilha como um tesouro”, busca descobrir a fonte desse “tesouro” e, quando chega, vê o lugar, que era cuidado pelas lavadeiras, gritando por ajuda. A menina, então, mobiliza a comunidade em que vive para limpar o local, que volta a ser novamente um ponto vivo e de convívio social.

Priscila afirma que a história é importante para valorizar o papel social dessas mulheres na comunidade, e para que outras possam conhecê-las e contar suas próprias histórias. Segundo a autora, atualmente a comunidade ainda tem uma moradora que segue com as lavações, não como antigamente, mas com um tanque dentro de casa.

— Isso dá importância para essas mulheres, e para mim é uma coisa muito especial e muito importante. Há uma importância em ver essa história sendo passada para as crianças conhecerem o que era antigamente, porque hoje elas só tem acesso à máquina de lavar — conclui.

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Atualmente, o Monte Serrat abriga uma exposição fixa e permanente na Praça da Caixa D’água. A exposição conta como um monumento em homenagem a história das lavadeiras.

*Sob supervisão de Luana Amorim

Antonietas

Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.  

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