O dia era 20 de janeiro de 1971. No auge da ditadura, o engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva era retirado do conforto da casa em que vivia com a mulher e os filhos no Rio de Janeiro para ser levado até o Quartel da 3ª Zona Aérea para prestar depoimento. Foi a última vez que o político foi visto com vida. O contexto, que ficou conhecido nos últimos meses devido ao sucesso do longa brasileiro indicado ao Oscar “Ainda Estou Aqui”, alimentou uma procura que durou décadas a respeito do paradeiro do político, capitaneada principalmente por Eunice Paiva, esposa dele. Todas as buscas e apelos sobre o que aconteceu naquela data giravam em torno de uma única frase: onde está Rubens Paiva?
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Este é o título, inclusive, do primeiro capítulo do livro “Crime sem castigo: Como os militares mataram Rubens Paiva” da jornalista e escritora catarinense Juliana Dal Piva. Lançado neste ano pela editora Matrix, a obra reúne documentos inéditos sobre o caso e o trabalho de investigação para identificar os verdadeiros culpados pela morte de Rubens.
Natural de Chapecó, no Oeste do Estado, Juliana conta que o primeiro contato que teve com o tema foi quando ainda era estudante na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2008. Na época, ela ganhou uma bolsa para estudar durante seis meses na universidade de Buenos Aires, onde participou de uma disciplina em que comparava as ditaduras que existiram na América Latina.
— Depois, eu volto e me formo em um momento, em 2009, que o Brasil está preparando as discussões para o julgamento da Lei da Anistia, que acontece em abril de 2010, que era para decidir se ela estava de acordo com a Constituição de 88 ou não. […] Ainda em 2010, tem a condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre o caso do Araguaia, e como resposta o país começa a se preparar para criar a Comissão Nacional da Verdade — relembra.
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Curiosa com as movimentações, Juliana começa por conta própria a estudar sobre o tema.
— Não sou filha [de desaparecido], não tenho parente, não há uma questão pessoal. É uma questão de compreensão sobre o que é a democracia e também por uma questão de empatia em relação à ideia absurda de que o Brasil tem cerca de 500 vítimas fatais da ditadura sem esclarecimento — pontua.
“Sucesso de ‘Ainda Estou Aqui’ pelo mundo faz a vida prestar, e muito”
Casa da morte e a relação com Rubens Paiva
A partir desse momento, Juliana começa acompanhar de perto os desdobramentos sobre a criação da Comissão por meio da Lei 12.528/2011 e a se especializar em entrevistar militares que atuaram na época da repressão. Na mesma época, ao lado do colega Chico Otávio, do jornal O Globo, ela inicia uma investigação sobre a “Casa da Morte de Petrópolis”, um dos piores centros clandestinos usados pelos militares para a prática de tortura. Entre os entrevistados, estava o tenente-coronel Paulo Malhães que, sem querer, deu detalhes sobre a morte de Rubens Paiva.
— [Durante a entrevista] Ele não queria revelar muito sobre quem ele tinha interrogado e torturado, mas aí ele deixou passar, sem muita precisão, que ele tinha informações sobre o caso do Rubens Paiva — relembra.
Junto com isso, Juliana e o colega também descobriram que o Ministério Público Federal (MPF) e a Comissão Nacional da Verdade estavam investigando o caso, inclusive com a presença de uma nova testemunha, que alegava que tinha visto o momento em que Rubens foi torturado e indica quem eram os agentes envolvidos.
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— Tinham duas perguntas para serem respondidas naquela época: Quem são os responsáveis pelo assassinato? Onde está o Rubens Paiva? Aí, em entrevista em março de 2014, o [tenente-coronel Paulo] Malhães, em determinado momento, admite que montou uma operação na Praia do Recreio dos Bandeirantes para fazer o enterro dos restos mortais do Rubens. Essa é uma das coisas mais cruéis, porque no relato dele, ele também revela como os militares que mataram Rubens Paiva cometeram, para além do assassinato em si, a brutalidade e a monstruosidade de promover vários enterros clandestinos — salienta.
Malhães chegou a recuar das declarações ao prestar depoimento em 2014 para a Comissão Nacional da Verdade — ele foi morto um mês depois em um assalto que ocorreu na casa dele na capital carioca. No entanto, segundo Juliana, a própria viúva do militar confirmou a história, alegando que ele contava a situação de ter desenterrado os restos mortais do ex-deputado ao longo da vida.
— Ele guardava recortes de jornal sobre o caso do Rubens Paiva em casa. O Ministério Público achou isso durante a busca e apreensão que fez na casa dele depois do assassinato. [….] Em maio de 2014, ele [caso Rubens Paiva] se torna o primeiro processo criminal na Justiça brasileira de um crime de assassinato cometido durante a ditadura por agentes públicos. Eu tinha toda essa apuração como jornalista, mas eu tive a leitura histórica de entender que aquilo era um marco e decidi estudar o caso — pontua.
E foi justamente essa investigação que embasou o mestrado de Juliana, que, depois, deu origem ao livro. A obra também traz documentos inéditos de como o Serviço Nacional de Informações monitorou Eunice Paiva e a luta da ativista para que a Polícia Federal instaurasse um inquérito para investigar o caso em 1986.
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Momento histórico para a democracia
Em dezembro de 2024, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, propôs que a Corte decida se é possível anistiar crimes permanentes que foram cometidos na época da ditadura. Entre os crimes permanentes, estão o sequestro e a ocultação de cadáver.
A análise, que busca definir a aplicação do sistema de repercussão geral (quando a decisão gera uma tese que é aplicada em todos os casos), teve início em 7 de fevereiro deste ano. Dino, que também é relator da ação que tem como base os crimes ocorridos na Guerrilha do Araguaia, chegou a citar durante o voto o filme que conta a história de Eunice Paiva na busca pelo paradeiro do marido:
“No momento presente, o filme ‘Ainda Estou Aqui’ — derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice) — tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho [em relação aos crimes ocorridos durante a guerrilha do Araguaia]”.
Para Juliana Dal Piva, o momento de discussão do tema e divulgação do filme é ainda mais histórico:
— Fiquei feliz demais de poder viver esse momento, achei que eu não veria. Quando eu começo a fazer a minha dissertação, em 2016, tinham pessoas na rua defendendo a volta da ditadura, usando da democracia a duras penas conquistada para defender a ideia de um novo autoritarismo. Então, é olhar para esse momento em 2025 e ver o filme baseado no livro do Marcelo [Rubens Paiva] ganhar o mundo e permitir que a gente discuta a democracia no Brasil para construir bases sólidas a partir do filme e a partir de responsabilizar os militares. […] A democracia se constrói todos os dias ou se destrói também. E democracia não se constrói com esquecimento — salienta.
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Caso pode ser reaberto na Justiça
Recentemente, o STF definiu outra decisão envolvendo o caso Rubens Paiva. Isto porque a Corte reconheceu como tema de repercussão geral a discussão sobre se a Lei da Anistia se aplica a crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante a ditadura. A situação, além da morte do ex-deputado, também foi motivada pela apuração dos desaparecimentos do jornalista Mário Alves e do militante Helber Goulart.
O pedido atende a um recurso do MPF que buscou a corte após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) encerrarem as ações penais sobre os casos, alegando que os crimes estavam cobertos pela Lei da Anistia. Com a nova decisão, os ministros poderão decidir se os crimes representam “grave violação de direitos humanos” e, com isso, podem ser excluídos da Lei da Anistia. O relator é o ministro Alexandre de Moraes.
Foram denunciados pela morte de Rubens Paiva cinco ex-militares: José Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos. Três já morreram.
Juliana, inclusive, segue acompanhando as discussões de perto. A catarinense é esperançosa quando o assunto é o julgamento dos denunciados pela morte.
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— Quando eu escolhi o caso do Rubens [para a tese], ele tinha várias singularidades pelo modo como tinha chegado no judiciário, como ele se apresentava em termos de documentação. Então, de fato, acreditei que iria haver um julgamento que seria histórico, assim como algumas audiências já tinham sido, elas estão descritas no livro. Porque é uma violência muito brutal e eu ficava imaginando como é que isso vai a julgamento de mérito? Que juiz vai ter coragem de julgar esse caso e dizer não, isso aqui não é um crime permanente. Eu ainda não sei se a gente vai ver ele, porque o Supremo está julgando um recurso dos militares e do Ministério público sobre a discussão da aplicação da Lei de Anistia, e se pode prosseguir na primeira instância, aqui no Rio de Janeiro. Depois que isso tiver assentado, o processo volta aqui pro Rio e aí a gente vai ver se vai ter esse julgamento. Qual é o outro risco para esse caso? Naquela época [da denúncia], os cinco militares estavam vivos. De lá para cá, três morreram. Tem dois réus que estão vivos, mas são pessoas bastante idosas. Então, ou esse julgamento acontece rapidamente, ou a impunidade vai acontecer pela morte dos réus. Mas o mais importante, para além do caso do Rubens, é que se fixe essa interpretação e que se permita julgar todos os casos — finaliza.
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