As fotos nos álbuns não davam pistas de que uma tragédia se aproximava. Os sorrisos e abraços registrados pelas câmeras foram eternizados em pedaços de papel. Edineia Telles, 34 anos, sempre sonhou em casar, ter filhos e construir uma família. Se esforçou ao máximo para viver um “conto de fadas”. Inclusive, tolerou as bebedeiras constantes e as ameaças do marido, acreditando que poderia torná-lo o homem por quem tinha se apaixonado 18 anos antes, quando o romance começou. Só não imaginava o desfecho cruel que a história teria.
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— Eu imaginava ser o primeiro a vir aqui para dentro, mas infelizmente não foi — diz Camilo Telles, pai de Edineia, na entrada do Cemitério Jardim da Paz, em Witmarsum, no Alto Vale do Itajaí.
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Ali, em um túmulo conjunto ainda aguardando os acabamentos recém-comprados, estão a filha dele e os dois netos. A mãe e os filhos, de apenas dois e quatro anos de idade, foram brutalmente assassinados por Gilson Haskel, de 38 anos, pai e marido das vítimas. O crime bárbaro aconteceu em 27 de agosto de 2024. O caso da alegre Dina é um dos 277 feminicídios registrados em Santa Catarina nos últimos cinco anos.
A dor, confessa o avô coruja, ainda lateja como no dia em que o telefone tocou confirmando que os corpos tinham sido encontrados. Camilo diz que a relação da filha com o genro começou bem, mas não demorou muito até dar os primeiros sinais de problema. Foram alguns episódios de ameaças com arma apontada na cabeça ao longo do casamento. A família sabia. Por vezes, eles a tiraram da casa onde morava, em Presidente Getúlio, mas logo Gilson ligava chorando, alegava arrependimento e pedia para ela voltar. Foi assim quatro meses antes de Edineia e os filhos morrerem. Camilo pegou o carro uma noite e percorreu 20 quilômetros para buscá-los após mais um episódio de violência do genro. Horas mais tarde, quando o marido jurou ao telefone que aquilo não ia mais se repetir, a filha voltou.
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“Cicatrizes”: série especial do NSC Total mostra a violência assustadora contra mulheres em SC
Era o ciclo da violência doméstica se repetindo outra vez, conforme apontam as autoridades. Primeiro vem a tensão, quando começam os insultos. Depois, a agressão em si, quando o homem explode violentamente. E então a lua de mel, quando ele promete mudar de comportamento. Por várias vezes, Camilo disse à filha para procurarem a polícia. Ele conta que Edineia não queria, pedia que não se envolvesse.
— Se eu tivesse ido denunciar… Quantas vezes eu quis procurar a polícia, mas ela dizia que não. Eu não deveria ter escutado minha filha. Devia ter ido pela minha ideia. Se eu tivesse feito, a polícia tinha ido lá na casa e tirado as armas dele — lamenta Camilo.

“Eu já tinha na minha cabeça que ele tinha matado minha filha”
Hoje, com a situação mais clara na mente, Camilo acredita que o pedido da filha tinha um motivo: talvez Gilson não ameaçasse apenas ela e as crianças, mas também outros parentes. Por medo de que algo acontecesse com os pais e irmãos, Edineia sempre decidia voltar para casa. Foi preciso muita coragem para romper a relação, cerca de um mês antes dos assassinatos. Camilo recorda que, inicialmente, a filha e os netos ficaram na casa de uma amiga dela, para não interferir na rotina na creche e no trabalho.
Alguns dias depois, ela conseguiu alugar um apartamento. O próprio Gilson ajudou a montar o que seria o novo lar da mulher apenas com os filhos, longe da violência. Um dia antes do crime, Camilo esteve no imóvel para o jantar. Ouviu da filha que o ex-marido havia a chamado para ir à casa onde moravam para assinar os papéis da pensão das crianças. O pai alertou que algo não parecia certo, até porque ela tinha uma medida protetiva contra ele, e disse à filha que o chamasse para irem juntos ao encontro. Edineia não quis. No dia seguinte à conversa, ela saiu do trabalho, buscou os meninos na creche e foi à casa do ex.
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O sumiço dela e das crianças foi percebido quando ela não apareceu no serviço e nem os pequenos foram à escolinha. Camilo diz que instintivamente sabia que todos estavam mortos e Gilson era o culpado. Ele, parentes e amigos começaram as buscas. Foram até a casa do genro e ouviram da boca dele que não sabia do paradeiro da mulher e das crianças e que também estava às procurando. Camilo chegou a entrar no imóvel, sem imaginar que, ali, Edineia e os filhos haviam sido mortos a tiros.
Gilson não aceitava o fim do casamento e não queria dividir os bens com a ex-companheira. Só não se imaginava do que ele seria capaz. A câmera de segurança de uma casa próxima registrou os barulhos dos disparos. Os três foram mortos assim que chegaram ao imóvel. O irmão do homem, preso atualmente por participação no crime, o ajudou a colocar os corpos dentro do carro de Edineia, levou o veículo até uma região rural de Ibirama e o queimou com os três dentro do porta-malas. Um morador que passava pela região os encontrou dois dias após o desaparecimento da família.
— Quando eles sumiram eu já tinha na minha cabeça que ele tinha matado minha filha e meus netos, porque ele era um covarde. Ele já tinha dito para a Dina que se ela não voltasse em 30 dias, ele acabaria com a família. Porque se ela não o quisesse mais, os filhos ele também não queria — desabafa.
Enquanto as autoridades ainda tentavam montar o quebra-cabeças do sumiço de Edineia e dos filhos — e com Camilo reiterando a todo momento que o genro era o responsável —, Gilson pegou o carro do irmão emprestado e fugiu. Em 29 de agosto, mesma data em que os corpos foram encontrados, a polícia o localizou comendo tranquilamente em um restaurante às margens da BR-277, no Paraná. O destino do assassino era o Paraguai. Ele confessou o crime e foi levado à prisão de segurança máxima de São Cristóvão do Sul, no Meio-Oeste do Estado.
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Punição não é suficiente para evitar crimes
Antes de encarar o julgamento, Gilson tirou a própria vida dentro da cela. Um fato não tão incomum quando se trata de violência doméstica. Dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública de Santa Catarina apontam que um a cada seis autores cometeu suicídio após matar a mulher, o que expõe uma das faces que torna difícil combater esse tipo de crime. As penas, ainda que aumentadas recentemente para até 40 anos de prisão, por vezes não são suficientes para impedir os ataques.
É o que avalia a doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Camila Cavaler, autora de um estudo sobre feminicídio:
— Quando se olha para esses homens autores de feminicídios que cometem suicídios, o endurecimento da lei não se torna útil. Porque esses homens não estão preocupados com as consequências do crime. E uma outra questão nesse aspecto é que, diferentemente do homicídio comum, quando o autor tenta se safar, no feminicídio comumente o autor liga para a polícia e diz que matou. Ele mesmo se entrega. Então é preciso que a gente pense. Não é ser contra a punição, é preciso sim que essas pessoas tenham punição adequada, mas uma lei focada apenas em punir não é suficiente.
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Não existe solução fácil para a violência doméstica, mas um dos caminhos é abordar a temática desde a juventude. Camila integra um grupo de trabalho que levou o assunto para dentro das escolas em Criciúma, em parceria com a polícia e a universidade. O objetivo é abordar com os adolescentes, quando estão começando a namorar, sobre relações saudáveis e sinais de comportamento preocupante. O tema também precisa entrar em rodas de conversa, seja no bar ou no espaço de trabalho. Entender cedo pode ser uma chave para uma intervenção e quem sabe evitar o assassinato de mulheres, quase sempre atrelados a ciúmes, suspeita de infidelidade ou diante da iminente separação.
— Se a gente entende que a punição não é suficiente para evitar novos crimes, ainda que a punição seja útil, precisamos pensar em estratégias. E os grupos para homens autores de violência são importantíssimos. Porque o feminicídio costuma ser o resultado de um [ato] contínuo de violência. Então essas mulheres já sofreram outras violências anteriores. Quando esse homem tem a oportunidade de ir para um grupo reflexivo, ele pode repensar a visão de que a mulher é uma propriedade — diz.
A análise vai ao encontro do pensamento que sempre guiou Camilo, hoje com 62 anos. Ele passou quase quatro décadas casado com a mãe de Edineia. Quando perceberam que a relação não era mais o que eles queriam, se divorciaram. Sem tapas, sem gritos, sem ameaças. Cada um para um lado.
— A mulher casa com o homem, mas não é objeto para ele ser o dono. Ela é parceira. O casal tem que viver com respeito. Mas o Gilson achava que a Dina tinha que fazer as vontades dele — frisa o pai.
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Ela viu a mãe ser assassinada
Daiane Eliza Machado ainda carrega viva na memória a cena do assassinato da mãe. Era uma menina de 13 anos na noite em que o padrasto Joel Oliveira da Silva, à época com 36 anos, matou a companheira com golpes de faca. Na laje de casa em Blumenau, onde Eliza Mackedans Machado, aos 48 anos, tentava se esconder, também estavam outros três filhos pequenos do casal. Por sorte, os mais novos dormiam naquele momento aterrorizante. Hoje a filha consegue falar sobre o assunto, mas por muito tempo foi assombrada ao deitar a cabeça no travesseiro.
— Tenho pesadelos. Volta aquela cena e eu tento fazer diferente, para evitar que ela fosse morta. Acordo apavorada, chorando. Hoje é menos, mas foi bem difícil — confessa.
Ao entrar pela primeira vez na Casa Eliza, abrigo de Blumenau que acolhe mulheres com os filhos pequenos vítimas de violência doméstica, um filme passou diante dos olhos de Daiane. O nome do abrigo é uma homenagem à mãe dela, que ficou acolhida por quatro meses com as crianças antes de ser morta. Na época, em 2003, o local se chamava Casa Abrigo. Mais tarde, foi rebatizado. Hoje é uma referência em Santa Catarina na proteção às mulheres. Daiane nunca mais tinha entrado ali, retornou em fevereiro deste ano, junto com a reportagem.
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Foi preciso amadurecer para entender tudo o que tinha acontecido. Recorda as vezes que a mãe aparecia com hematomas pelo corpo e sempre tinha uma justificativa. Agora, compreende que eram as marcas das agressões, que aconteceram a portas fechadas, no quarto do casal. Quando Eliza decidiu dar um basta na relação, foi para o abrigo com os quatro filhos. Lá, recebeu apoio e só saiu no dia em que teria ouvido de um oficial de Justiça que podia retornar ao lar, pois Joel já tinha sido tirado da casa e sabia que não era mais para voltar.
— Ela estava muito preocupada sobre como o Joel ia reagir, mas ficamos felizes quando pudemos voltar para casa. Lembro de a casa estar bem suja, a gente fez uma faxina e a minha mãe ficava falando que a partir dali ia ser diferente. Mas à noite ela ficou incomodada, falou que íamos ter uma noite especial para ver as estrelas. Hoje entendo que ela achou que na laje estaríamos mais seguros — relembra, emocionada, a filha.
A intuição fez Eliza pegar um colchão e, com a ajuda dos filhos, levar para a laje. Os pequenos dormiram sob a luz do luar, protegidos do sereno por um guarda-chuva. Parecia que seria mesmo só precaução, até que a mulher e a filha adolescente ouviram o barulho na parte de baixo. Era Joel. Ele tinha passado aquele dia inteiro na delegacia e, tão logo conseguiu sair, foi à caça da ex-companheira. Daiane diz que na hora nem conseguiu entender o que estava acontecendo, parecia apenas que o homem chacoalhava a mulher.
Mais tarde, ela percebeu a grande quantidade de sangue e correu para pedir ajuda em meio ao caos dos irmãos pequenos, na época com quatro, sete e nove anos, acordando aos gritos. Tem a impressão de que chegou a empurrar o padrasto na tentativa de defender a mãe, mas as lembranças são um borrão por causa do nervosismo do momento. Os bombeiros não conseguiram salvar Eliza. Daiane e os irmãos voltaram para um abrigo por mais dois meses e receberam apoio psicológico até que a irmã mais velha, fruto de uma relação anterior da vítima, conseguiu pegar a guarda das crianças e evitar que os caçulas fossem colocados para adoção.
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— Ela era muito jovem, casada, tinha uma filha pequena, mas cuidou da gente. Nós mudamos para Florianópolis onde morava meu outro irmão. Ficamos muito unidos — conta.
Joel se sentou no banco dos réus no dia 11 de agosto de 2003 e recebeu pena de 12 anos de prisão por homicídio qualificado por recurso que dificultou a defesa da vítima. O crime de feminicídio só foi criado em 9 de março de 2015 — ou seja, 12 anos depois. No ano passado, a pena para esse tipo de crime aumentou para até 40 anos.
O assassino da mãe de Daiana não ficou nem uma década atrás das grades, afirma. Em janeiro deste ano, as cadeias de Santa Catarina tinham 10 homens condenados por feminicídio, segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública. Outros 75 aguardavam julgamento.

As cicatrizes de quem convive com a violência
Érica da Silva é psicóloga e coordenadora de um Creas em Blumenau. Ela diz, com base na experiência trabalhando com famílias envolvidas em episódios de violência doméstica, que a forma como a situação impacta cada pessoa é única. Mas em linhas gerais revela ser possível perceber algumas tendências nas crianças que crescem nesses lares: algumas se tornam inseguras, tem aquelas com tendência ao isolamento social, à agressividade, e outras apresentam dificuldades de criar vínculos. Daiana conta que enfrentou isso e levou tempo para encontrar um parceiro que entendesse o que ela passou e como aquilo lhe afetou.
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A psicóloga relembra um caso emblemático de um filho que presenciou o pai assassinar a mãe e tinha como projeto crescer para matar o algoz da genitora. Mais tarde, a criança foi encaminhada à adoção.
— Algumas crianças crescem com muita raiva, agressividade, porque vivem nesse ambiente e aprendem que se resolve pela agressão. Outras acabam extremamente amedrontadas na vida como se fossem passivas diante de tudo — explica Érica.
Daiane conseguiu dar brilho aos novos capítulos da própria vida, mas sem esquecer o passado. Casada e mãe de dois filhos, ela trata do assunto violência doméstica dentro de casa, para que não veja se repetir histórias como a da mãe. Dentro da Casa Eliza, durante a visita, se deparou com episódios bem semelhantes ao que viveu pessoalmente.
Apesar da dor da perda prematura da mãe, ela vê pelo menos um legado, ao saber que aquelas mulheres tiveram onde pedir ajuda.
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Protegidas
Mariza* encontrou amparo entre os muros altos da Casa Eliza, um imóvel com endereço mantido sob sigilo, e agora tenta recomeçar a vida. Aos 60 anos, precisou sair de casa para dar um basta às agressões vindas das mãos do próprio companheiro. As cicatrizes na pele não permitem esquecer o sofrimento, mas ali encontra apoio para planejar o futuro.
Chegou ao local após criar coragem, ligar para uma assistente social enquanto o companheiro não estava perto e contar o que estava acontecendo entre quatro paredes. Além das agressões físicas, era impedida de sair de casa até mesmo para ir ao médico e proibida de fazer contato com os filhos — frutos do primeiro casamento. Nem buscar o benefício social dela, que pagava as contas de água e luz do imóvel, o homem permitia que ela fizesse.
Por pelo menos duas vezes foi ameaçada de morte. Chegou ao abrigo ferida por dentro e por fora. A violência fez parte da rotina de Mariza por décadas. A marca de queimadura no braço esquerdo foi o estopim para buscar a Casa Eliza pela primeira vez, na época com seis filhos pequenos. Depois disso, em uma nova relação, os ciclos de agressão se repetiram.
Quando esse companheiro disse que a mataria e tiraria também a vida do filho recém-nascido, ela precisou retornar ao abrigo. Mas a história não acabou por ali. No fim de 2024, após novas violências e já calejada, pediu amparo mais uma vez. Lembra com clareza do homem bêbado batendo nela, deixando marcas nas costas.
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Mas o que a mantinha nessa relação? A resposta, segundo Mariza, é amor. Ela gostava dele e não queria ficar sozinha. A vergonha com que conta isso é algo bastante comum entre as vítimas de violência doméstica, afirma a doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Camila Cavaler. E isso tem um motivo:
— Algumas mulheres bancam financeiramente os homens. São eles que dependem delas. Mas a idealização do casamento, da família, de quem já foi o companheiro um dia, faz se manter no relacionamento e acreditar que esse homem vai mudar. A etapa da lua de mel do ciclo da violência é muito poderosa. Porque a mulher quer acreditar na mudança do companheiro e sente vergonha disso.
Sem ver sinais de que a história não iria mais se repetir, Mariza pediu medida protetiva e está em processo para conquistar a independência afetiva e recomeçar mais uma vez. Afinal, apesar de manter a casa, saiu apenas com uma sacolinha de roupas. Nem os documentos pessoais tinha acesso.
— Quero ter a minha casa e seguir minha vida — revela.
O ciclo que se repete
Os ciclos repetidos que Mariza viveu não são uma exclusividade da história dela. Isso, infelizmente, é comum, relata Maria Augusta Buttendorf, diretora de Proteção Especial da Secretaria de Desenvolvimento Social de Blumenau. Responsável pela Casa Eliza, o relato dela aponta para vários casos em que a mulher entrou em novas relações e acabou sendo agredida novamente.
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— Tem algumas situações que a gente viu elas crianças quando a mãe sofreu violência e, agora, a gente vê elas adultas aqui, com os filhos, porque também sofreram violência. Então tem alguns ciclos, uma questão cultural. Há casos também de diferentes mulheres vítimas do mesmo homem agressor — cita.
Prestes a completar 25 anos, a Casa Eliza de Blumenau se tornou porto seguro para mulheres vítimas de violência doméstica. Embora os muros sejam altos, o espaço monitorado por câmeras, o endereço sigiloso e os vigilantes estejam sempre a postos, o local está de portas abertas 24 horas por dia, de segunda a segunda. Não importa se é feriado ou fim de semana, noite ou dia. O espaço é abrigo quando a força da lei não é suficiente para garantir a segurança.
Entre 2020 e 2024, o Poder Judiciário de Santa Catarina julgou 15.935 casos enquadrados na Lei Maria da Penha. Destes, 15.107 receberam penas para cumprimento em regime aberto ou semiaberto. Ou seja, os agressores não ficaram na cadeia.
Na maioria dos casos que passam pela Secretaria de Desenvolvimento Social, o uso de álcool e drogas são fatores recorrentes, mas não justificam os rompantes de violência, avalia Camila Cavaler. Afinal, os homens não são agressivos com o dono do bar, por exemplo, e sim em casa, com a mulher, exemplifica.
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E na rotina diária do abrigo fica claro que a violência doméstica é um fenômeno presente em todas as classes sociais.
— Tem a mulher de renda alta que depende do companheiro. Tem senhoras mais velhas que estão passando por isso já há anos. Tem as mais jovens, que daí também está presente o uso de drogas, e são casos com muito mais violência — menciona Maria Augusta.
A rotina no abrigo
É o dia do aniversário de Fernanda*. Ela embarca no carro da prefeitura de Blumenau e deixa a Casa Eliza. Não é para ir comemorar a idade nova e ainda não é para recomeçar a vida lá fora. Acompanhada de uma educadora social, a jovem tímida de 27 anos vai buscar os novos documentos para pedir os benefícios sociais que vão ajudá-la a encontrar um lar para viver com a filha de três anos e o bebê que está a caminho.
Fernanda morava com os padrinhos da caçula quando descobriu a segunda gestação, fruto de um namoro que mantém atualmente. Ao anunciar a nova gravidez, foi surpreendida pelo rompante de violência do compadre. Apanhou com um cabo de vassoura e ele tentou matá-la com uma faca. O homem nutria uma paixão por ela. A alternativa foi ir para a Casa Eliza, conta, enquanto a pequena brinca no parquinho no terreno do abrigo. Dali, ela vai onde precisar, inclusive ao posto de saúde fazer o pré-natal, mas todas as medidas de segurança são tomadas.
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Quem entra no abrigo, seja encaminhada pela polícia, delegacia ou serviço social, encontra um espaço para dormir, recebe desde itens de higiene até roupas, se necessário, e imediatamente é solicitada a medida protetiva, que, no papel, proíbe o agressor de se aproximar. Ao longo do dia, são seis refeições, todas preparadas por cozinheiras contratadas pela prefeitura. Um cronograma estabelece os dias e horários para lavagem das roupas e há, também, regras para administrar pessoas diferentes com histórias diferentes.
O celular, por exemplo, não pode ser usado, principalmente logo após a chegada. É um cuidado para não deixar o endereço da casa ser rastreado. As crianças mudam de escola e de creche. Encontros com parentes, que não sejam os filhos pequenos que estão juntos no abrigo, só com agendamento e na sede da Secretaria de Desenvolvimento Social. É assim com Fernanda e o companheiro, pai da criança que ela está esperando.
A jovem sabe que pode ficar ali por quanto tempo precisar, mas a ideia é que logo consiga se reorganizar e sair em segurança. O apoio para isso vem de dentro do próprio abrigo, seja para conseguir emprego, para encontrar outra casa, para ter o direito à vaga em creche ou escola garantida perto do novo endereço. Estar no abrigo é uma medida para resguardar a vida das vítimas. Elas podem ir embora no momento que quiserem, mas a equipe não mede esforços para que isso só ocorra quando estiverem mais seguras e com condições de viver com autonomia. Uma das funcionárias do local relembra o impacto que a morte de Eliza, ao sair do abrigo, causou na equipe, provocando, inclusive, afastamentos.
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SC tem 11 cidades com abrigos para acolher vítimas
Blumenau foi precursora na criação de um abrigo específico para receber mulheres vítimas de violência doméstica com os filhos pequenos, que não têm onde buscar amparo. Nos últimos anos, o serviço avançou e já está presente em pelo menos 11 cidades de Santa Catarina, com estruturas mantidas pelas prefeituras, sem custo algum para as acolhidas. Para acessar esses espaços, na maioria das vezes, as mulheres são encaminhadas pela polícia, delegacia, judiciário ou até mesmo assistência social.
Confira a lista:
- São Bento do Sul: o abrigo conta com três quartos, tem capacidade para receber 12 pessoas simultaneamente e acolhe inclusive os animais de estimação da família, pois no local há canil.
- Caçador: o abrigo é administrado pela Associação Maria Rosa, com recursos da prefeitura. As mulheres precisam ser encaminhadas por algum órgão como Creas ou Delegacia da Mulher. O espaço comporta 18 pessoas.
- Chapecó: podem acessar o abrigo através de encaminhamento da polícia ou registro de boletim de ocorrência. Não há tempo máximo ou mínimo de permanência da mulher. São 14 vagas no abrigo.
- Florianópolis: o acesso é oferecido a mulheres que não têm rede de apoio na cidade. O abrigo tem capacidade para 40 pessoas – mulheres com ou sem filhos –, e a localização é mantida sob sigilo por segurança.
- Balneário Piçarras: a prefeitura oferece abrigamento através de convênio com entidades. São cinco vagas e as mulheres podem procurar o abrigo junto com os filhos pequenos. A recomendação é buscar o serviço através da Secretaria de Assistência.
- Lages: a capacidade é de até 16 mulheres. São recebidas mulheres sob risco de morte, ameaçadas ou agredidas dentro da violência de gênero da Lei Maria da Penha.
- São José: o abrigo tem capacidade para 30 mulheres vítimas ou ameaçadas de violência doméstica. O acesso ao serviço ocorre através de delegacias, postos de saúde e assistência social.
- Balneário Camboriú: o espaço pode acolher até 20 pessoas, entre mulheres e filhos menores de idade em situação de violência doméstica. Para entrar no serviço é feita uma triagem na Casa da Família. É principalmente voltado àquelas sem rede de apoio.
- Joinville: a Casa Abrigo Viva Rosa acolhe mulheres acompanhadas ou não dos filhos, em situação de risco de morte, com registro de boletim de ocorrência. A capacidade de acolhimento é de até 24 pessoas.
- Itajaí: o encaminhamento para a Casa Alva é feito pelo Creas para mulheres que moram na cidade. Para ter acesso é necessário o boletim de ocorrência da violência contra o agressor. O espaço comporta até 20 pessoas.
- Blumenau: a Casa Eliza tem capacidade para receber 28 pessoas. As mulheres e os filhos menores podem ficar o tempo necessário e, durante o acolhimento, profissionais da assistência social ajudam a encontrar trabalho, casa e até a mudar de cidade, se esse for o desejo.
Conheça os tipos de violência e como pedir ajuda
*Nome fictício usado para não identificar a vítima
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