Arley Luiz da Silva era motorista do transporte coletivo há quase 10 anos quando passou pela situação mais tensa na profissão. Ele conduzia um ônibus no bairro Monte Cristo, em Florianópolis, quando foi abordado por dois homens armados. A dupla invadiu o coletivo, mandou condutor e passageiros descerem, espalhou um galão de gasolina nos primeiros bancos e ateou fogo no veículo. Em segundos, o ônibus e até o ponto ao lado foram destruídos pelas chamas.
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O incêndio ao ônibus em Florianópolis foi um dos 58 atentados promovidos por bandidos em 16 cidades de Santa Catarina no mês de novembro de 2012. A onda de ataques ordenados por criminosos detidos em unidades prisionais do Estado levou medo e tensão às ruas de SC. O episódio, que completa 10 anos neste mês, exigiu respostas das forças de segurança pública e deixou mudanças nas ações de combate à criminalidade no Estado.
A onda de ataques de 2012 foi a primeira crise em que o Estado precisou lidar abertamente com a existência de uma facção criminosa que atuava a partir de presídios em SC.
A origem dos atentados seria a insatisfação de presos com medidas tomadas na Penitenciária de São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis. Detentos relatavam supostos casos de agressões e maus-tratos por parte de agentes. A conduta à época era negada pelo Estado, que, após os primeiros dias de ataques, afirmava que os presos estariam se rebelando contra cortes de regalias.
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A administração da época também aponta que o fator de descontentamento seriam mudanças em medidas como divisão dos presos nas galerias e procedimentos do dia a dia, como tempo de banho de sol. A unidade de São Pedro de Alcântara era apontada como o local que concentrava os principais líderes da facção criminosa catarinense.
O ponto de partida dos ataques foi o assassinato da agente prisional Deise Fernanda de Melo Pereira, 30 anos, no fim de outubro. Esposa do então diretor da Penitenciária de São Pedro de Alcântara, Carlos Antônio Gonçalves Alves, ela teria sido morta por engano, em um atentado que tinha como alvo o marido.
Deise foi assassinada na frente de casa, no bairro Roçado, em São José. Foi atingida por três tiros nas costas quando descia do carro. Os criminosos teriam disparado pensando ser Carlos quem estava conduzindo o veículo. Deise ainda conseguiu revidar atingindo um dos suspeitos e foi encaminhada ao hospital, mas morreu em seguida.
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A partir do assassinato da agente, presos da unidade de São Pedro de Alcântara teriam decidido promover mais ataques nas ruas. Do lado de fora, criminosos eram pressionados a cometerem os delitos para provocar terror no Estado. Segundo relatos da Polícia Civil à época, em muitos casos os autores eram adolescentes em dívida com o tráfico de drogas ou com a própria facção.
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O coronel Nazareno Marcineiro, comandante-geral da Polícia Militar de SC em 2012, afirma que, a partir do crime contra a agente penitenciária, a equipe de inteligência identificou a possibilidade de ataques e acendeu o alerta na corporação. Ele lembra que o episódio em SC tinha semelhanças com uma onda de ataques praticados por uma facção em São Paulo, em 2006 — naquele caso, no entanto, houve 59 policiais e mais de 500 civis mortos.
— Eles tinham “aprendido” com os presos de São Paulo e com uma facção criminosa de lá e quiseram botar em prática aqui em Santa Catarina. Do mesmo jeito que colocaram lá, queimando ônibus, gerando uma desordem social muito grande — recorda o militar.
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Os ataques nas ruas em SC geram apreensão: “São vidas correndo risco”
Em 12 de novembro de 2012, primeiro dia de ataques nas ruas, dois ônibus e uma viatura foram incendiados em Florianópolis, e um veículo de transporte coletivo também foi queimado em Blumenau. Os atentados seguiram por mais uma semana levando tensão e medo a trabalhadores que se deslocavam nas cidades.
O atentado preferido dos bandidos era incendiar ônibus que estavam em suas rotas de viagem. O Colegiado de Segurança Pública não respondeu à reportagem até a publicação os dados consolidados de atentados, mas segundo reportagens da época foram 58 somente em novembro de 2012, e outros 114 na segunda onda, em fevereiro de 2013.
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Além disso, os criminosos também atearam fogo em carros de moradores, viaturas e atiraram em bases policiais e guaritas de unidades prisionais de SC. Os atentados provocavam danos aos patrimônios de empresas e do poder público, mas também colocavam em risco a população.
— Quando você incendeia um ônibus, está fazendo isso com pessoas lá dentro. Alguns mandavam sair, outros deixavam lá dentro. São vidas de pessoas que estavam correndo risco — lembra o advogado Valdir Mendes, presidente da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) à época dos atentados.
Após os primeiros ataques, o Estado criou uma força-tarefa e anunciou as primeiras respostas. Viaturas da PM passaram a fazer escolta do transporte coletivo e policiais à paisana trafegaram entre os passageiros. Entidades estaduais e uma comissão federal se mobilizaram para vistoriar presídios de SC, em especial o de São Pedro de Alcântara.
Mas as medidas não bastaram para tranquilizar os moradores. Quem precisava estar nas ruas em novembro de 2012 enfrentava a apreensão dos ataques. Uma das categorias mais afetadas foi o transporte coletivo, já que os ônibus eram os alvos principais. Linhas noturnas foram canceladas em cidades como Florianópolis — os últimos ônibus saíam às 19h.
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Arley Luiz da Silva, o motorista do ônibus atacado citado no início da reportagem, lembra dos dias de angústia para os trabalhadores do setor. Ele chegou a ser vítima também de uma segunda tentativa de atentado. Um suspeito atirou um coquetel molotov contra o ônibus que ele dirigia no bairro Abraão, também na Capital. O coletivo teve um princípio de incêndio, que foi contido a tempo.
— A gente sentia uma insegurança, não sabia se voltava para casa, era pânico total. Cada passageiro que você parasse, até com uma garrafinha d’água dava medo, você não sabia se era água ou álcool. Se tornou um pânico. Eu selecionava até onde parar — conta Arley.
O secretário de Comunicação do sindicato de motoristas e cobradores da Grande Florianópolis (Sintraturb), Deonísio Linder, confirma o período crítico.
— Foi bem tenso, o pessoal muito nervoso. Qualquer moto (que passava) o pessoal ficava meio apavorado. A orientação era de abrir as portas, mandar o pessoal desembarcar e descer também — conta.
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Homem dirigiu ônibus em chamas para salvar casa: “Traumatizante”
O mecânico Marcelo Lima Leite, 39 anos, também tem uma recordação da onda de ataques de causar nervosismo. Criminosos incendiaram um ônibus em frente à casa em que a mãe dele morava na época, no bairro Salseiros, em Itajaí. Ele, que residia na mesma rua, correu até o local e viu o veículo em chamas, com risco de atingir a residência da mãe e outras moradias vizinhas. Marcelo aproveitou que o motor permaneceu ligado e embarcou no ônibus. Dirigiu o veículo em chamas por cerca de 300 metros para tentar afastar o perigo.
— No calor do momento, criei coragem, entrei e toquei para um terreno baldio. Para não incendiar a residência, embarquei e consegui tocar até o terreno, e não estragou nada ao redor. Mas foi traumatizante — conta.
Fim da primeira onda e transferências de presos
Os ataques passaram a perder força já na última semana de novembro. Dias após a morte da esposa, Carlos pediu afastamento do cargo de diretor da penitenciária alegando questões pessoais. A mudança e o reforço do policiamento em locais tidos como alvo teriam contribuído para o fim dos crimes. Na investigação feita pela Justiça, foi apontado que nesse período os detentos teriam divulgado um “salve” (recado) para presídios catarinenses ordenando o fim dos ataques. O método foi o mesmo adotado para dar início aos atentados.
O advogado João Moacir Correa de Andrade, que presidia a Comissão de Assuntos Prisionais da OAB de Santa Catarina na época dos atentados, defende que o ponto-chave seriam, de fato, agressões sofridas no presídio, que teriam sido até filmadas pelos próprios detentos. Na época, vídeos feitos na unidade circularam em redes sociais.
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— O sistema só se acalmou quando mexeram as “peças do tabuleiro” e começaram a respeitar o direito dos presos — aponta.
O analista de segurança Eugênio Moretzsohn, por outro lado, afirma que reações de grupos são comuns diante de insatisfações e que, no caso do sistema prisional, elas costumam ocorrer contra o rigor da disciplina, o maior controle nas visitas, apreensão de drogas, celulares e facas em revistas ou transferência de presos.
A tese é semelhante à do ex-diretor do Departamento de Administração Prisional do Estado (Deap), Leandro Lima. Ele nega que tenha havido excessos e diz que o que desagradava os detentos seriam tentativas de reorganização nas unidades, com mais ofertas de trabalho, por exemplo.
— Tanto na esfera administrativa quanto criminal, foi revisado e constatado que não houve nenhum excesso — sustenta Lima.
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A estratégia mais imediata para conter os ataques foi o isolamento de presos apontados como líderes da facção criminosa. Em fevereiro de 2013, o Estado transferiu 40 detentos para presídios federais em Mossoró (RN) e Porto Velho (RO).
— Muitas das lideranças estão dentro do sistema prisional e, de uma forma ou de outra, tentam coordenar as atividades ilícitas dos grupos na rua. Se você identifica esse “camarada” sendo liderança atuante de uma facção dentro do sistema prisional e consegue transferir ele para um regime mais restritivo, tipo RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), que agora a gente tem no Estado, ele tem um regime de cumprimento de pena mais rígido, o que dificulta repassar essas ordens, é tudo mais controlado — avalia o delegado Antônio Cláudio Seixas Joca, que atuou na investigação dos ataques de 2012 e hoje é responsável pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco).
A juíza Jussara Schittler dos Santos Wandscheer e a ex-desembargadora Marli Mosimann, responsáveis pelos julgamentos dos ataques em primeira e segunda instância, respectivamente, foram procuradas, mas não quiseram se manifestar. O promotor que conduziu o caso no Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), Flávio Duarte, morreu em outubro deste ano — o promotor que o auxiliou não quis conceder entrevista.
Novas ondas em 2013 e 2014
Os ataques se repetiram em novas investidas no início de 2013 e em 2014, com outras motivações ligadas à gestão de presídios. Anos depois, em 2016 e 2017, cidades como Florianópolis e Joinville registraram forte aumento no número de homicídios, alguns deles com emprego de forte violência e até um caso de decapitação. Na ocasião, os crimes foram atribuídos pela polícia a uma suposta disputa por área entre a organização criminosa formada nos presídios de SC, ligada aos ataques de 2012, e outra facção rival, originária de São Paulo.
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Membros da facção foram condenados a até 19 anos de prisão
Os ataques de 2012 e 2013 foram investigados por uma força-tarefa que atuou por cerca de seis meses para levantar provas como interceptações telefônicas e depoimentos. Os elementos integraram um processo que foi julgado em primeira instância em 2014 e teve a sentença confirmada naquele que foi considerado o maior julgamento da história do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), em dezembro de 2015.
No total, 80 pessoas foram condenadas por integrarem facções e terem participado ou ordenado os ataques de 2012 e 2013. As maiores penas foram de 19 anos e seis meses de reclusão. Somadas, as punições a todos os acusados chegaram a mais de 1 mil anos de prisão. A investigação detalhou como funcionava a estrutura da facção e o papel de cada um na execução dos ataques.
Para profissionais que atuam na segurança pública, as altas condenações sofridas pelos responsáveis por ordenar os atentados e o monitoramento do Estado seriam fatores que teriam contribuído para que os criminosos não esboçassem novas tentativas de ataques no Estado nos últimos anos.
Mesmo assim, em algumas ocasiões os serviços de inteligência identificaram a chegada de armas ou conversas com menções a possíveis ataques. Nessas situações, no entanto, a investigação teria conseguido interceder antes mesmo da execução, evitando novas situações de risco.
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— Desde 2012, nos ataques subsequentes que eles tentaram promover, a Polícia Civil vem e dá uma resposta praticamente imediata. Eu costumo falar para minha equipe: a gente tem um trabalho de monitoramento constante. Tudo que foge um pouco à normalidade já acende nosso alerta vermelho e a gente já foca, o alvo central é aquele ali — explica o delegado Antônio Cláudio Seixas Joca, que atuou na força-tarefa que investigou os atentados de 2012 e hoje responde pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco) da Polícia Civil de SC.