A compra de 200 respiradores por parte do governo do Estado para ajudar no tratamento de pacientes de covid-19 continua rendendo desdobramentos. Uma das polêmicas centrais é o pagamento adiantado dos R$ 33 milhões no início de abril, sendo que a entrega dos produtos ainda não ocorreu – a última previsão é de que cheguem até o dia 20 deste mês.

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Um dia após efetuar o pagamento à empresa contratada, em 2 de abril, o governador Carlos Moisés (PSL) enviou ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC) um ofício consultando a possibilidade de a Secretaria de Saúde pagar antecipadamente pela compra de produtos voltados ao combate à covid-19. No dia seguinte, 3 de abril, o presidente do TCE-SC, Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, respondeu o questionamento do governador com um parecer de cinco páginas sobre o tema, feito pela Diretoria de Licitações e Contratações.

No documento, o TCE-SC lista nove recomendações para que o Estado buscasse garantias e “mecanismos de redução de risco” antes de efetuar o pagamento antecipado. Entre as sugestões do órgão de controle estão a compra “por intermédio de empresa brasileira com experiência e credibilidade no mercado”, a tentativa de fazer pedidos parcelados, com pagamento por entrega, fazer o pagamento por carta de crédito e buscar assessoria de empresas de comércio exterior ou mesmo da Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc), para reduzir os riscos envolvidos.

O parecer deixa claro que, em regra, o pagamento antecipado é vedado pela Lei Federal 4.320/1964, mas que acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU) pacificaram a possibilidade dele em casos excepcionais, em que sejam adotadas garantias.

O presidente do TCE-SC, Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, pontua que a credibilidade do fornecedor e as garantias para reduzir os riscos na operação são necessárias para que o pagamento antecipado ocorra.

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“No caso da aquisição dos 200 respiradores pelo Estado de Santa Catarina, o pagamento antecipado não poderia jamais ter sido realizado, nem sob a forma como foi feito (sem garantias), nem para o fornecedor que foi selecionado (sem credibilidade)”, respondeu o presidente em nota à reportagem do Diário Catarinense.

O TCE-SC abriu um procedimento de investigação em que analisa a compra dos respiradores.

No caso da aquisição dos 200 respiradores pelo Estado de Santa Catarina, o pagamento antecipado não poderia jamais ter sido realizado (…)"

Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, presidente do TCE-SC

Sindicato de auditores diz que oferta de auxílio foi descartada

Na tarde desta quarta-feira, o Sindicato dos Auditores Internos do Poder Executivo de SC (Sindiauditoria) emitiu nota dizendo que "em reunião realizada em 31/03/2020, portanto antes da efetivação dos pagamentos à contratada, foi oferecido auxílio presencial e concomitante aos processos de compras", mas que a oferta teria sido descartada pela Secretaria de Estado da Saúde.

Dessa forma, após as denúncias de supostas irregularidades virem à tona com a publicação da reportagem no site The Intercept Brasil, auditores internos foram acionados para analisar a compra dos respiradores e apontaram "diversas impropriedades com alto potencial de lesão ao erário", como pagamento antecipado sem exigência de garantias, substituição do modelo de respirador sem avaliação e aprovação da Secretaria de Saúde, e valor por equipamento "aparentemente superior ao contratado por outros entes ou mesmo pelo Estado de Santa Catarina".

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Ccom isso, os auditores recomendaram investigações – uma delas é feita por auditores de carreira na Corregedoria-Geral do Estado. A nota deixa claro que cabe ao chefe da Controladoria-Geral abrir trabalhos excepcionais como o acompanhamento das compras emergenciais da pandemia.

A polêmica sobre a compra dos respiradores aumentou nesta terça-feira (5), depois que uma servidora e o ex-secretário de Saúde Helton Zeferino acusaram o secretário da Casa Civil, Douglas Borba, de terem indicado a empresa que vendeu os respiradores e interferido em outros processos de compra no período da pandemia. Borba negou qualquer indicação de fornecedor em entrevistas nesta terça e quarta-feira.

Governo defende pagamento antecipado

Na primeira manifestação sobre o episódio, o governador Carlos Moisés disse “estranhar” o pagamento antecipado, que não seria a forma indicada pelo governo, e que a investigação precisaria apontar porque a oçção foi escolhida.

Nas manifestações recentes, o governo tem defendido o pagamento antecipado. Em entrevista coletiva concedida na segunda-feira, o secretário de Administração de SC, Jorge Eduardo Tasca, sustentou que o pagamento adiantado é permitido pela legislação em uma situação que definiu como “contexto conturbado”, como a pandemia do novo coronavírus. Tasca citou recomendações do Ministério Público, do dia 6 de abril – posterior à quitação feita pelo Estado – para defender a escolha de pagamento feita na compra dos respiradores.

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– Em determinados contextos, a inversão desse processo onde há primeiro o pagamento para depois o recebimento do bem é plenamente possível. É um instrumento, está à disposição do gestor para ser utilizado nas condições em que se faz necessário. Não houve nenhuma invenção, nenhuma inovação, simplesmente pegamos esse instrumento para ser usado em contextos onde a compra vai ser realizada apenas com pagamento antecipado, que foi como encontramos em vários equipamentos sobre a covid-19 – argumentou.

O advogado e conselheiro da OAB-SC, Rogério Duarte da Silva, diz que a pandemia do coronavírus provocou uma flexibilização feita às pressas nas compras do setor público. Por isso, segundo ele, há entendimentos de que isso permitiria a antecipação dos valores. Um dos motivos seria que no início da pandemia muitas empresas da China só aceitavam encomendas pagas de forma adiantada.

– Ao que consta, TCE e MP-SC manifestaram certa relutância no procedimento, mas o governo, amparado pela confusão da legislação e querendo ter o equipamento o mais rápido possível, adotou essa forma de pagar antecipado – detalha.

Duarte da Silva faz questão de frisar que a compra dos respiradores ocorreu num momento em que a projeção de novos casos para SC era maior do que o que de fato se confirmou nas semanas seguintes, e que por isso a pressão do momento e o fator urgência podem ter feito o governo optar por essa modalidade, embora não fosse a mais prudente.

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Estado recebeu notas fiscais pelo produto

Para permitir o pagamento antecipado, o governo de SC precisou receber duas notas fiscais dos respiradores e atestar o recebimento dos produtos, mesmo que eles ainda não tivessem sido entregues. No processo de compra, uma servidora da Secretaria de Saúde aparece como responsável pela certificação e outra pela liquidação dos equipamentos – procedimentos que em tese indicariam a entrega e as corretas condições dos equipamentos. As informações constam de documentos enviados ao colunista da NSC, Renato Igor.

As notas fiscais foram emitidas pela empresa no dia 31 de março e o pagamento foi feito em crédito na conta bancária no dia seguinte, 1º de abril. Os primeiros respiradores, que deveriam ter sido entregues até 7 de abril, não chegaram, o que fez o Estado notificar pela primeira vez a empresa pelo atraso no dia 8 do mesmo mês.

A Veigamed respondeu dias depois dizendo que a alta demanda provocava dificuldade em encontrar os respiradores, informando que havia feito uma mudança no modelo de respirador, e desde então o Estado espera pela chegada dos equipamentos.

O advogado e conselheiro da OAB-SC, Rogério Duarte da Silva, afirma que agora Tribunal de Contas e Ministério Público devem averiguar essas etapas da dispensa de licitação.

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– Não houve uma confirmação se o produto estava vindo, quando seria enviado? A investigação deve centrar nesses pontos. Talvez a urgência tenha falado mais alto – pontua o advogado.

Deputado questiona emissão das notas fiscais

O recebimento das duas notas fiscais e a liquidação delas como se os produtos tivessem sido recebidos também são atos questionados pelo deputado estadual Marcos Vieira (PSDB), que preside a comissão da Assembleia Legislativa (Alesc) responsável por acompanhar os gastos do governo durante a pandemia do coronavírus.

– Como vou emitir nota fiscal de um produto que não forneci? Isso não existe. Nota fiscal só é emitida se houver entrega da mercadoria ou prestação de serviço. Se está autorizada a excepcionalidade do pagamento antecipado, e isso só ocorre se houver como fornecedor pessoa idônea, reconhecida, não precisa emissão de nota fiscal. É possível fazer com o contrato. A emissão da nota fiscal foi uma fraude – afirma o deputado.

O deputado sugere que os órgãos de investigação peçam para que a empresa Veigamed apresente documentos como o depósito bancário que comprove a compra dos equipamentos com o fornecedor chinês, a ordem de compra e a cópia do despacho da mercadoria.

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A comissão presidida por Vieira pediu o afastamento de Zeferino, que pediu exoneração um dia depois do pedido. A Alesc também abriu uma CPI para apurar a compra dos respiradores.

Propostas concorrentes têm questionamentos

Além da proposta vencedora da Veigamed, outros dois orçamentos também constavam na dispensa de licitação. Eles só apareceram depois que um parecer da assessoria jurídica da Secretaria de Saúde pediu que houvesse outras cotações antes de homologar a compra com a fornecedora do Rio de Janeiro.

Essas outras propostas, das empresas JE Comércio, de São Paulo (SP), e MMJS, de Cuiabá (MT), não possuem número de CNPJ e responsáveis, informação habituais em concorrências públicas, e possuem valores e prazos superiores à da Veigamed. Elas também têm em comum a formatação e um mesmo erro de grafia, ao escreverem como “entrrega” a palavra entrega.

A reportagem entrou em contato com a empresa MMJS no telefone indicado no site, mas ninguém atendeu às ligações. Não conseguimos contato com a JE Comércio.

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A própria oferta da Veigamed é alvo de questionamento depois que o empresário Rafael Wekerlin, de Joinville, informou que havia apresentado essa proposta quando o governo abriu processo de compra, mas que desistiu depois de ter recebido um pedido de pagamento de uma suposta comissão fora do processo.

O nome dele e da empresa dele, no entanto, constam na oferta apresentada pela Veigamed e que foi escolhida pelo governo do Estado. O empresário, que chegou a dizer em entrevistas que a proposta dele teria sido copiada, prestou depoimento na sexta-feira ao Gaeco, que investiga a compra dos respiradores, e foi orientado pela investigação a não conceder mais entrevistas.

Outros questionamentos feitos sobre o processo de compra, como o valor dos respiradores, que seria acima do mercado, devem ser apurados em processos como o instaurado pelo Tribunal de Contas e Ministério Público de SC, além da sindicância interna da própria Secretaria de Saúde. Nesta segunda-feira, a Controladoria-Geral do Estado também informou que elabora laudos para apontar as diferenças técnicas e de valores entre os dois modelos de respiradores mencionados na compra. Um documento da CGE-SC já aponta uma suposta discrepância entre o valor da importação e o total cobrado pela empresa junto ao governo.

O que diz a empresa

A empresa Veigamed se manifestou publicamente sobre o caso pela primeira vez em uma nota divulgada nesta segunda-feira (4). A empresa disse que a troca no modelo de respiradores ocorreu por uma suposta demora do Estado em apresentar o aceite à proposta, o que impediu a compra do primeiro fornecedor contatado. Inicialmente, a empresa havia alegado que o pedido de troca do modelo de respirador haveria partido do então secretário de Saúde de SC, Helton Zeferino.

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A nota da empresa diz ainda que o novo modelo seria mais caro que o anterior e que pretende cumprir o contrato e entregar os equipamentos – o primeiro lote de 50 ventiladores estaria em um aeroporto da China à espera de liberação alfandegária. A empresa também diz que os novos respiradores já estariam "em processo de compra há dois meses" e que inicialmente seriam destinados ao mercado privado de SC. Não há menções às investigações abertas nos últimos dias sobre a compra.

Nesta terça, questionada pela reportagem, a empresa informou que a nota fiscal foi emitida para o pagamento adiantado e que essa seria uma exigência dos fornecedores chineses. A Veigamed afirma que também pagou antecipadamente ao fabricante e que enviou comprovantes disso aos órgãos de controle e à Justiça. A empresa disse desconhecer o empresário de Joinville que tem o nome mencionado na proposta da Veigamed e diz que está prestando esclarecimento à Secretaria de Saúde e aos órgãos de controle.

O que diz o governo de SC

A reportagem questionou o governo de SC sobre a recomendação do TCE-SC para compras com pagamento antecipado e a liquidação das notas fiscais dos respiradores ainda não entregues, mas o Estado informou apenas que informações sobre o assunto já haviam sido repassadas em entrevistas coletivas da terça-feira.

Na ocasião, o secretário de Administração, Jorge Eduardo Tasca, afirmou que pareceres do TCE-SC e do MP-SC reforçariam a permissão para pagamento adiantado nas compras relacionadas à pandemia do coronavírus. Desde a primeira coletiva sobre o caso, o governo vem afirmando que há sindicâncias abertas na Secretaria de Saúde, na Controladoria-Geral e na Polícia Civil e que caberá a essas investigações apurar as circunstâncias e eventuais irregularidades na compra.

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