A investigação sobre a morte do dentista Cezar Maurício Ferreira, de 60 anos, concluiu que não houve negligência ou omissão das autoridades durante a prisão. O homem foi encontrado sem vida em uma cela da Central de Plantão Policial de São José, na Grande Florianópolis, no dia 19 de julho, após ser preso por suposta embriaguez ao volante. O inquérito foi apresentado pela Polícia Civil de Santa Catarina nesta sexta-feira (1º) e, agora, será enviado ao Ministério Público (MPSC). Ainda de acordo com a polícia, apesar da conclusão, a corregedoria segue apurando se houve desvios administrativos dos policiais militares e civis envolvidos.
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O dentista havia sido preso no dia 18 de julho por embriaguez ao volante, pela Polícia Militar. O laudo elaborado pela Polícia Científica apontou que a causa da morte foi cardiopatia hipertrófica. Além disso, exames toxicológicos revelaram que não havia presença de álcool no organismo da vítima.
De acordo com o inquérito, elaborado pelo delegado Akira Sato, não houve negligência e omissão por parte das autoridades no caso do dentista. O resultado tem como base um laudo complementar solicitado pela Policia Civil que apontou que os medicamentos encontrados no organismo de Cezar poderiam causar sintomas de sonolência e confusão mental moderada.
— Então por essas razões é que não há como falar em prática de crime omissivo, na forma dolosa ou eventual, ou na sua forma comissiva, e também na sua forma culposa — pontuou o delegado.
Segundo Akira Sato, os sintomas do uso desses remédio são confundíveis com embriaguez por álcool.
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— Embriaguez não se dá só por bebida alcoólica. O título genérico do artigo 306 [do Código de Trânsito Brasileiro, que criminaliza a conduta de dirigir sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa] é embriaguez a volante, mas ela se dá por remédio, uso de drogas, enfim… Não houve confusão. É confundível — diz o delegado.
Conforme a perita-geral da Polícia Científica, Andressa Boer Fronza, o resultado do novo laudo também aponta que os sintomas não poderiam ser reconhecidos como indicativos de uma patologia grave (como a cardiopatia hipertrófica que levou à morte súbita) por pessoas que não fossem médicos com acesso ao prontuário.
— Esses sintomas, por si só, dificultam a constatação de um quadro clínico cardiológico grave por um profissional que não seja médico — diz.
Agora, conforme a legislação, o inquérito será encaminhado para o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), que irá analisar o caso e decidir por oferecer denúncia, solicitar novas diligências à polícia ou o arquivamento.
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Em nota, a família de Cezar informou que não teve acesso ao relatório final do inquérito e cobrou um novo protocolo de abordagem policial. “A única resposta à altura desta tragédia é a apresentação de um novo protocolo de abordagem policial, revisado e focado em preservar a vida, para que a insana sequência de erros que levaram o Dr. Cezar a uma prisão ilegal e a uma morte sem socorro médico nunca mais se repita”, diz um trecho (veja a nota completa abaixo).
Odor etílico no momento da prisão
No momento em que Cezar foi abordado, um dos policiais militares relatou ter sentido odor etílico, de acordo com o delegado Akira Sato, mesmo que o exame toxicológico não tenha encontrado álcool no organismo. O relato foi contradito por policiais civis que atenderam o dentista na delegacia e negaram sentir o cheiro de álcool.
Segundo o delegado, o odor etílico foi uma percepção individual e subjetiva do policial militar:
— No meu entendimento, isso [odor etílico] é uma é uma percepção individual subjetiva de cada ser humano. É um dos sinais, além de tantos outros. (…) Andar cambaleante, dificuldade motora, alteração da capacidade psicomotora, fala arrastada, ausência de memória, desorientação, dispersão, olhos vermelhos.
Ligação para a família
Familiares de Cezar questionam o fato de não terem sido comunicados sobre a prisão. De acordo com o inquérito da Polícia Civil, o dentista não teria liberado o celular para que os policiais civis pudessem comunicar familiares.
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O delegado Akira Sato afirma que a equipe da delegacia fez “inúmeras” tentativas de acionar familiares e a defesa de Cezar desde o início da ocorrência:
— O policial de plantão relata que entrou nas redes sociais do Sr. Cézar, tentou fazer contato com integrantes da Igreja Adventista da qual ele faz parte, ligou, através das redes sociais, e ninguém atendeu. O próprio filho do senhor Cezar, em contato com o delegado plantonista do plantão seguinte, após ser informado que houve tentativa de contato também pela manhã, relatou que “se ligaram para o meu outro irmão, ele não atendeu, porque ele mora na Irlanda e o horário de lá não não é compatível”.
Novo protocolo também será adotado
A polícia também informou que adotará novos protocolos após o incidente. De acordo com o delegado-geral Ulisses Gabriel, o objetivo é evitar casos semelhantes. A Polícia Civil, por exemplo, irá adotar o preenchimento de um contato de emergência no perfil do cidadão.
Além disso, será criado um protocolo para as delegacias receberem pessoas sem condições de responder no momento da prisão, como no caso de Cezar.
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Participaram da coletiva o secretário de Estado da Segurança Pública, coronel Flávio Graff, o comandante-geral da Polícia Militar de Santa Catarina, coronel Emerson Fernandes, o delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, a perita-geral da Polícia Científica, Andressa Boer Fronza, o delegado responsável pelo caso, Akira Sato, e o comandante da Polícia Militar Rodoviária, coronel Marcus Vinicius dos Santos.
Relembre o caso
Cezar foi detido na noite de 18 de julho pela Polícia Militar por embriaguez ao volante. A PM foi acionada após o dentista bater na traseira de um outro carro, na rua Cândido Amaro Damásio, no bairro Barreiros. De acordo com relatos dos agentes no boletim de ocorrência que o NSC Total teve acesso, o dentista não conseguiu responder os policiais por “estar aparentemente embriagado”. Ele também não conseguiu fazer o teste de bafômetro, ainda conforme o registro.
O dentista foi autuado por embriaguez e encaminhado à Delegacia de São José. No local, segundo relato do policial civil que recebeu a ocorrência, Cezar recusou água e comida, e foi colocado em uma cela. Entre 1h e 3h, já na madrugada de 19 de julho, o atendente relatou ter ido às celas para checar a situação dos presos e o dentista respondeu que estava bem.
Às 7h40min, Cezar foi encontrado morto dentro da cela. O Samu foi acionado e constatou o óbito. Segundo o registro da Polícia Civil, um homem que estava preso ao lado do dentista relatou ter ouvido apenas um barulho e voltou a dormir durante a noite.
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De acordo com o advogado Wilson Knöner Campos, que representa a família do dentista, Cezar tinha problemas cardíacos, levava uma vida saudável e não bebia por motivos religiosos. Conforme a defesa, no momento em que bateu o veículo, ele estava saindo de uma padaria onde recém havia feito um lanche.
— Ao invés de ir para um hospital receber tratamento, ele foi parar em uma cela fria — afirmou o advogado em entrevista à NSC TV.
O laudo pericial feito pela Polícia Científica, assinado pelo médico legista Felipe Quintino Kuhnen, descreve no exame anátomo patológico sinais que caracterizam a cardiopatia hipertrófica. Ainda, no exame toxicológico foi indicada a presença de medicamentos antidepressivos, anti-histamínicos, relaxante muscular, anti-hipertensivo, antiarrítmico e antidiabético.
A azitromicina, citalopram e sertralina, três dos medicamentos listados, aumentam o risco de arritmias ventriculares fatais, especialmente em indivíduos com alteração cardíaca, segundo o laudo.
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“A presença de dispositivo implantável cardíaco atesta que era portador de arritmia, sendo que o dispositivo não evita o risco de morte súbita por arritmias, podendo ser causada por falência elétrica, tempestade arrítmica ou falência mecânica aguda”, afirma um trecho do documento.
Dessa forma, o laudo da morte conclui que a causa do óbito é a cardiopatia hipertrófica, sendo o mecanismo provável morte súbita arrítmica, que pode ter sido desencadeada ou agravada pelo uso de alguns medicamentos.
O que diz a defesa da família de Cezar
“A família do Dr. Cezar Maurício Ferreira tomou conhecimento, por meio da imprensa, do conteúdo apresentado na entrevista coletiva desta manhã feita pelos representantes dos Órgãos de Segurança Pública, na qual foi anunciada a conclusão do inquérito policial sobre sua morte.
Até o presente momento, o Advogado da família não teve acesso oficial ao relatório preliminar ou relatório final e nem aos novos laudos e documentos mencionados na coletiva. Nossa solicitação foi feita ontem. Com a liberação do conteúdo, faremos a análise técnica e jurídica aprofundada que o caso exige.
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Não obstante, com base no que já temos, é possível verificar que subsistem indagações e questões sem respostas. Sobre isso, faremos uma manifestação detalhada sobre cada ponto da coletiva e do inquérito (e se chegar o material faltante, será incluído), que será apresentada em nossa própria coletiva de imprensa, hoje, às 14h.
E independentemente do teor específico do relatório do inquérito, a posição da família e a expectativa da sociedade permanecem inalteradas. A única resposta à altura desta tragédia é a apresentação de um novo protocolo de abordagem policial, revisado e focado em preservar a vida, para que a insana sequência de erros que levaram o Dr. Cezar a uma prisão ilegal e a uma morte sem socorro médico nunca mais se repita.
A coletiva era a grande oportunidade que as autoridades tinham para demonstrar com o que realmente se preocupam: com a vida humana, com a segurança dos cidadãos de bem, tal como era o Dr. Cezar.
Para se chegar a isso, porém, só existe um caminho: cortar na própria carne. Isso significa que o relatório final do inquérito, para ter credibilidade, precisa ter mapeado e identificado, sem rodeios, todas as causas das ilegalidades e dos erros cometidos. A começar pelo pilar que sustentou toda a tragédia: a alegação de um “odor etílico”. Essa premissa foi desmentida pela ciência, mas foi a base para a afirmação da “embriaguez ao volante”, para a prisão e para a negligência na interpretação de sinais de um homem que precisava de socorro médico, e não de prisão.
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Além disso, há muitas respostas que a família e a sociedade ainda aguardam, e que esperamos tenham sido respondidas na coletiva das autoridades e no inquérito:
Por que a família jamais foi comunicada oficialmente da detenção ou da morte, numa clara violação do Código de Processo Penal e de direitos humanos fundamentais? Se após a morte foi possível encontrar amigos nas redes sociais, por que o mesmo empenho parece não sido empregado para localizar um parente enquanto ele ainda estava vivo e precisava de ajuda?
Se não houvesse a falsa alegação de “odor etílico”, o Dr. Cezar teria sido levado para a delegacia ou para um hospital, como mandaria o bom senso?
O que acontece com um policial que afirmou existir “odor etílico” em um documento público (usado como base para mandar o Dr. Cezar para a gélida cela) e em dois depoimentos, se o laudo toxicológico provou inexistir álcool no Dr. Cezar?
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Por que a sua condição cardíaca, evidenciada por uma cicatriz de marcapasso, foi completamente ignorada?
Houve constatação e indicação da concentração dos medicamentos encontrados no sangue do Dr. Cezar? A concentração de 00,00000001mg ou 1g de medicamento é irrelevante para determinar se foi a causa da desorientação visível e mal estar que acometeram o Dr. Cezar?
Por que ignoraram as hipóteses de um AVC ou de um infarto durante a abordagem, a prisão e todo o período em que ele esteve sob custódia na cela?
No interrogatório do Dr. Cezar, a presença física da autoridade mais experiente aumentaria ou não as chances de perceberem a emergência médica? Ou um interrogatório virtual é algo indiferente para fins de chances de evitar a morte de alguém que precisava de socorro?
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As autoridades de Santa Catarina estão diante de um dilema que foi exposto ao público às 9h da manhã. Ou apresentam uma investigação que gerou um protocolo novo, criado para salvar vidas e que assume as falhas fatais que ocorreram, cortando na própria carne para evoluir; ou se limitarão a uma narrativa superficial, na tentativa de justificar o injustificável: a prisão e a morte de um inocente, cuja reputação não será assassinada.
No fim, a escolha é simples: ou as autoridades agem para salvar a sociedade de futuras tragédias, ou agem para salvar agentes públicos das consequências de seus erros. As duas coisas não podem coexistir em um Estado que se pretende sério e seguro para seus cidadãos.”
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