Há 19 anos, o dia 7 de agosto se tornou histórico para o combate a violência contra a mulher no país. Foi nessa data, em 2006, que entrou em vigor a Lei 11.340, mais popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, uma das ferramentas mais importantes para a criação de políticas públicas e responsabilização de agressores no âmbito da violência doméstica.
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A mulher que dá nome a legislação se tornou um dos principais símbolos brasileiros na luta pelo direito das mulheres. Bioquímica de formação, Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de violência psicológica e física na década de 1980, e ficou tetraplégica após uma tentativa de feminicídio — marcas que ela carrega até os dias atuais e que ocorreram em uma época onde pouco se falava sobre os impactos que agressões causam na vida das vítimas.
— Quando foi declarado o que eu tinha sofrido, a tentativa de homicídio, não existia ainda a palavra feminicídio. Foi só aí que fui me inteirar, através do movimento de mulheres, que era comum aquele tipo de comportamento dos agressores. Só que não tinha o nome, não tinha lei — relata.
Aos 80 anos, Maria da Penha ainda configura como voz de uma geração que busca por uma sociedade mais igualitária e menos violenta. Para isso, criou em 2009 o Instituto Maria da Penha, em Fortaleza, uma entidade que busca não só dialogar com os setores e promover ações para o enfrentamento da violência, mas também exigir que a lei seja cumprida em sua totalidade.
— Eu devo o que sou hoje a um movimento de mulheres. Porque quando foi descoberto que eu tinha sido quase assassinada por conta de violência doméstica, recebi o apoio dessas mulheres. […] E eu fiquei horrorizada com o que eu soube através delas, do quanto eram frequentes os tipos de violência, porque eu não tinha o conhecimento, como as mulheres do interior [hoje em dia] não tem. Então, eu me juntei a elas. A gente precisa lutar pelo o que vocês estão lutando. Eu quero estar com vocês. E eu comecei a fazer a minha parte — pontua.
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O NSC Total conversou com a ativista sobre a trajetória e também sobre as percepções dela a respeito do atual cenário de violência no país e o que ainda é preciso para pôr fim à prática. Confira:
Queria que a senhora começasse contando um pouco da trajetória da senhora, desde a infância até o momento em que começou com ativismo
Eu tive uma infância comum. Fui a primeira filha e tive mais quatro irmãs. Meus pais me educaram em bons colégios. Não colégio de rico, mas conceituado, sabe? E tive uma infância e juventude tranquila. Terminei a faculdade de bioquímica, fui concursada, passei a trabalhar em um prédio público e, depois, fui pra São Paulo.Antes, durante a faculdade, conheci um rapaz aqui da minha cidade. Nos apaixonamos, casei antes mesmo de concluir o uso, mas eu era muito jovem. Aí eu me separei, fui pra São Paulo fazer um curso de mestrado, onde consegui fazer meu mestrado. E lá eu conheci o meu agressor, que era um estudante e que se uniu ao grupo de estudantes que eram do resto do país e de vários outros países também. Depois de algum tempo, nós começamos a namorar e resolvemos casar. Como eu estava desquitada, ele disse que não tinha problema, que a gente se casaria na embaixada. Ai, nós nos casamos na embaixada da Bolívia. Isso não me causou nenhuma surpresa e pensei que tivesse sido realmente porque eu tinha muitos colegas bolivianos, peruanos, colombianos que pela facilidade decidi fazer, mas tudo bem. Então, quando eu voltei para Fortaleza, depois que terminei o mestrado e minha filha nasceu, ele continuou em São Paulo para terminar o mestrado e deu entrada na naturalização. Quando ele finalizou o mestrado, uns três ou quatro meses depois, ele veio [para Fortaleza] porque não tinha conseguido emprego lá e tinha que voltar por causa da criança. E aqui, através das minhas amizades e do título dele, conseguiu o primeiro emprego no Brasil. E a partir daí ele começou a trabalhar e começou a se tornar conhecido, progrediu na profissão e, depois de algum tempo, inclusive, até conseguiu entrar na Universidade do Rio Grande do Norte.
Ele viajava esporadicamente para dar aulas lá, mas tudo motivado pela vida e pelo título dele com as minhas amizades. Só que no momento em que ele se estabilizou, ele começou a mostrar a verdadeira face. O que eu falo em estabilizar? Ele entrou no mercado de trabalho. Eu tinha um terreno comprado aqui, quando eu ainda trabalhava aqui e não tinha ido para São Paulo, e nós resolvemos financiar uma casa, e tudo isso nos estabilizou melhor. E no momento em que ele estava com a casa construída, o trabalho perfeito e já trabalhando em um outro estabelecimento, ele mostrou a verdadeira face e eu não mais o reconheci. Ele passou a ser uma pessoa muito grosseira, inclusive com os próprios filhos, e eu não sabia mais o que fazer para aquele relacionamento voltar a ser o que era. Eu conversei, inclusive, com um amigo dele, que estava passando por uma situação difícil de relacionamento, se ele poderia nos indicar um curso de encontro de casais com Cristo. Ele fez, mas não mudou nada. Então, cheguei pra ele e disse: olha do jeito que nós estamos, eu acho que não vale mais a pena continuar esse relacionamento e eu não sou mais feliz com você. E você não é comigo, porque se você fosse, não me trataria da maneira que me trata.
Isso era mais ou menos quanto tempo que vocês estavam juntos?
A minha segunda filha já tinha nascido nessa época. Aí nós ficamos nessa relação agressiva e falei: “acho que é melhor a gente se separar, não tem mais condição, a gente não vive bem, eu não vivo e nem você vive. Então, ele disse: eu nunca vou me separar de você. Aí vem aquela história que a gente hoje sabe que há o ciclo da violência, que começa com a grosseria e depois vem os abraços, as flores e as promessas, e volta tudo a ser como era novamente. Então, eu me senti muito calada, não sabia mais o que fazer. E a minha terceira filha nasceu e a situação ficou realmente insustentável. Continuamos aos trancos e barrancos. Quer dizer, cada vez mais eu recuava porque tinha medo dele, que era uma pessoa forte fisicamente. Ele praticava halterofilismo e ele tinha peças na minha casa mesmo. Mas eu comecei a me afastar, por exemplo, para evitar que as crianças passassem vexames ou sofrimento
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No dia em que ele veio de uma viagem do Rio Grande do Norte, eu tinha combinado com ele antes de viajar que, quando ele voltasse, eu queria visitar uma amiga que tinha tido bebê. Quando ele chegou de viagem, eu pedi a ele para ir. Aí ele disse: vamos, mas não precisamos levar as crianças. Eu digo: não, eu tinha prometido para elas que iam ver o bebê da minha amiga e vamos, porque sem as minhas meninas eu não vou. Aí fomos. Quando voltei da visita, fui pôr as crianças para dormir e fui me deitar por volta de 22h ou 23h da noite, e não vi a hora que ele foi deitar. Adormeci e acordei com um estampido dentro do quarto. Eu quis me mexer e não consegui. Aí eu pensei: puxa, o Marco me matou… Meu primeiro pensamento foi esse porque fiquei paralisada. Ouvi vozes estranhas, mas eram os vizinhos que, devido o tiro, saíram à rua. As empregadas também acordaram. Aí abriram a porta e entraram. Ele contou a história que tinha acordado e visto três assaltantes dentro de casa, e que havia lutado com eles, mas infelizmente, fugiram. Então, fui levada pelos vizinhos para o Hospital Geral de Fortaleza. Já muito mau, pedi muito a Deus que não deixasse minhas filhas na orfandade porque não saberia o final da vida delas.
Confira a reportagem especial “Cicatrizes: as marcas do feminicídio”
Por conta desse dia, passei dois meses hospitalizada. Eu tive alta e saí pra casa ainda sem mexer os braços, sem nem escovar meus dentes sozinha. Fiquei tetraplégica, passei por muitas cirurgias e voltei pra casa. Só que na hora que fui voltar para casa, ele não queria que eu tivesse alta, queria que eu esperasse porque uma amiga tinha conseguido uma vaga no Hospital Sarah de Brasília, e eu tinha que ficar em casa mais ou menos uns três ou quatro dias até viajar pra lá. Ele não queria que eu voltasse para a casa dos meus pais. Ele queria que eu voltasse para minha casa, onde aconteceu o fato. O médico não concordou, porque uma casa vizinha a minha estava vivendo uma construção e que a poeira ia ser muito danosa para mim, eu poderia pegar uma infecção pulmonar e não resistir. Ele irritou-se por isso, porque eu tinha que voltar para minha casa, que era a casa dele e era lá que eu morava. Aí minha família conseguiu ser convencida. Mas antes de sair do hospital, fui surpreendida: um cartório chegou ao hospital para eu passar todos os meus bens pra ele. E eu não podia escrever porque eu estava sem condição de escrita. Então eu coloquei o dedo dizendo que ele estava tendo muita despesa com o meu tratamento. Ele não estava tendo despesa porque eu estava hospitalizada no hospital público e o excedente de medicamento que eu precisava minha mãe comprava. Depois disso, eu fui para Brasília, passei dois meses lá. Recuperei o movimento dos braços e quando saí de lá, já sai penteando meus cabelos sozinha, escovando meus dentes e com um trabalho de recuperação. Quando eu, ele falou, em carta, que eu não avisasse a minha família que ia voltar, porque quando voltasse eu ia voltar para a minha casa. Eu fiquei calada. As cartas que ele fazia eram contando 1001 vantagens, que as meninas estavam muito bem, estavam progredindo. Só que quando ele veio me buscar, fui mantida em cárcere privado. Quando eu cheguei em casa, encontrei minhas filhas extremamente tímidas. Não se aproximaram de mim, não me abraçaram e estavam muito debilitadas.
Eu passei o fim de semana isolada, sem ver as crianças como eu gostaria. Na segunda-feira foi um assombro que tive. As empregadas contaram os horrores do que tinha acontecido com as crianças, que passaram necessidades na alimentação, quando estavam doentes. Quer dizer, os momentos em que as crianças tinham apoio da família era quando ele viajava para o Rio Grande do Norte, que aí as minhas irmãs iam até em casa e saiam com elas. E quando ele estava em Fortaleza, ele dizia que não era para as moças receberem a visita dos pais e das tias, dos meus avós ou dos avós delas, porque as meninas iriam ficar muito dengosas. Eu fiquei apavorada com o que escutei das empregadas. As crianças sofreram demais. Eu não gosto nem de falar, porque é descascar a ferida.
Ele disse: não quero visita de parente nem de colega, só se eu permitir. Então eu fui abandonada em casa assim. E eu comecei a ver o tratamento desumano que ele dava às crianças, e eu não tinha poder de revidar, de reclamar, porque era pior. Ai, nós começamos a nos organizar: eu, as moças e a minha irmã. Ela foi a um advogado,que disse que eu não poderia sair sem ter um documento, porque senão vai ser considerado abandono de lar e ela pode perder a guarda das crianças.
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Enquanto isso, eu peguei duas malas e comecei a botar roupa das crianças e coisa que ninguém sentia falta para aguardar a oportunidade [de sair da casa]. Dentro de 15 dias, mais ou menos, ele foi enviado ao trabalho. Nessa oportunidade ele fez até média em dizer “eu vou viajar, mas vou deixar um vigia aqui pra você não ficar assustada”. Aí na segunda ele saiu e eu fui para a casa da minha mãe. Antes de sair, fui no escritório ver o que tinha de interesse meu e encontrei na gaveta dele vários documentos meus autenticados que eu não tinha dado para ele. Quando foi no meio da tarde, já estava com as malas prontas e nós zarpamos. Saí e, no dia seguinte, telefonei para o chefe dele e falei que estava saindo de casa porque estava sofrendo maus tratos. Estava proibida de receber família, amigos e que ele, por favor, entregasse a chave da casa para ele pegar os pertences dele e a, partir daí, o que ele fosse tratar comigo era só através do meu advogado. E aí nós nos separamos.
Nunca souberam que tinha a suspeita de que ele tinha sido o autor do crime, porque cheguei de Brasília e as amigas e a minha família contaram que a polícia só esperava o meu depoimento, mas que a polícia já tinha o roteiro de que não houvera assalto, porque a polícia abriu um inquérito para descobrir o porquê e todos os vizinhos foram unânimes em contar a minha história; Só ele contou a história diferente.
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Ouvindo a história, dá para perceber que a senhora passou por violência física, violência patrimonial, violência psicológica. Termos que temos ouvido falar dentro do contexto da violência doméstica nesses últimos anos, mas que não existiam quando tudo isso aconteceu…
Não tinha conhecimento disso, não. Quando foi declarado o que eu tinha sofrido, a tentativa de homicídio, não existia ainda a palavra feminicídio. Foi só aí que fui me inteirar, através do movimento de mulheres, que era comum aquele tipo de comportamento dos agressores. Só que não tinha o nome, não tinha lei. Se dizia: fulana morreu porque o marido disse que ela o traiu. Morreu porque ele implicava muito com ela. Eu cheguei a ir, na época em que ainda estava com o processo em aberto, numa cidade do interior, onde uma mulher foi assassinada porque tinha muita vontade de cortar o cabelo e o marido disse que não queria cortar o cabelo. Um dia que ele foi viajar, ela cortou o cabelo e quando ele chegou e viu que ela estava com o cabelo cortado, ele matou ela.
Naquela época, como comentamos antes, era algo que não se falava, porque era aquela máxima: briga de marido e mulher, ninguém mete colher. Hoje nós temos informação a toda hora sobre violência doméstica, física, psicológica. A senhora sente que hoje é mais fácil denunciar ou mesmo assim é difícil o combate da violência contra a mulher no Brasil?
Olha, eu acho que para a mulher que tem certo conhecimento, ela consegue sair da situação, porque se mora na cidade grande, ela tem as políticas públicas, tem informações a toda hora através da imprensa, através das comunidades, porque sempre está se falando nisso, porque é muito presente a violência. Mas existem locais, geralmente onde a violência é maior, onde não existe nada. Ela não tem nem conhecimento de onde buscar ajuda, porque é uma utopia a ação da lei. E ela, naquele pedacinho de terra que mora, o que é que tem ali para se apoiar, se orientar e sair da situação de violência? Não tem nada.
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Principalmente nas cidades do interior ou muito pequenas, que às vezes a gente sabe que a mulher é vítima de violência, mas tem vergonha ou medo…
Desconhecimento, falta de apoio. Tem vergonha de falar, porque isso é hereditário. Ela viu o seu avô bater na sua avó e ela aguentar calada. Ela viu seu pai bater na sua mãe e achar que é normal. Hoje já é mais raro, mas ainda existe. Então, como é que a pessoa vai desconstruir a história dela, se ela não tem esclarecimento, se ela não tem informação?
E como surgiu essa vontade de trazer à tona a sua história e lutar por esses direitos?
Olha, eu devo o que sou hoje a um movimento de mulheres. Porque quando foi descoberto que eu tinha sido quase assassinada por conta de violência doméstica, recebi o apoio dessas mulheres. Eu tinha umas três ou quatro militantes bem ativas que estavam nas praças, nas ruas. Sempre quando acontecia algum caso, saia na imprensa, chegava até mim. E eu fiquei horrorizada com o que eu soube através delas, do quanto era frequente os tipos de violência, porque eu não tinha o conhecimento, como essas mulheres do interior não tem. Então, eu me juntei a elas. A gente precisa lutar pelo o que vocês estão lutando. Eu quero estar com vocês. E eu comecei a fazer a minha parte. Quando tinha um encontro, me convidavam e eu ia contar a minha história.
Aí começou a complicar, porque no meu caso, para o meu agressor ser punido, demorou quase 20 anos. Durante esse período, os advogados dele protelaram muitas vezes o julgamento. […] Eu lembro que durante um período de dois meses, se eu não me engano, foi adiado [o julgamento] três vezes. E sempre com a desculpa esfarrapada. Aí teve uma juíza que botou moral na história, a doutora Maria Odete Paula Pessoa. Ela estava afastada por problema de saúde e os substitutos aceitavam a desculpa dos advogados para transferir o julgamento para não acontecer. Então, numa manhã, saiu a notícia na imprensa de que a doutora tinha se proposto a cancelar a licença dela para o julgamento final.
Nesse momento, houve uma coisa super positiva, que encoraja a gente, quando, então, ele foi julgado. O julgamento começou às 14h e terminou às 10h do dia seguinte, pela manhã. Ele foi condenado por seis votos contra um. Apenas um dos jurados não votou a favor. Um julgamento onde foi considerado culpado quase por unanimidade. E na mesma hora os defensores dele entraram com recurso dizendo que o julgamento havia sido contra a prova dos autos. A justiça, para ser justa, ela precisa não ter interferência. E no meu tempo teve.
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Nós sabemos que existem muitas falhas, não só na prevenção, mas também no próprio processo judicial. Até um tempo atrás, por exemplo, tínhamos casos de feminicídio em que o agressor era absolvido por conta do crime de legítima defesa da honra. Na sua visão, o que ainda falha nesse assunto e o que ainda é preciso fazer para avançar nesse combate?
Olha, eu acho que é exatamente isso: a capacidade das mulheres, que estão na luta, de saber da área jurídica. Elas estão conseguindo transformar essa loucura de aceitar o que vem de quem quer inocentar um bandido. Porque [a Justiça] criou mecanismos, né? E também, quem conhece da lei não é só quem faz a parte jurídica.
A senhora acredita, então, que as pessoas deveriam ter uma educação melhor, de como funcionam as leis e como buscar ajuda, para tentar melhorar os índices que estão cada vez mais altos?
Não, eu acho que isso está acontecendo agora. Eu quero falar sobre a história da mulher comum. Por exemplo, um fato que nós defendemos e, que espero que seja adotado, é que uma mulher do interior de uma cidade pequena, que não tem nada, possa buscar ajuda em um posto de saúde. Graças a Deus [cada cidade] tem um posto de saúde […]. Por que é que nas unidades de saúde o grupo psicossocial dessa unidade não identifica as vítimas de violência doméstica que não confessam que são vítimas porque não têm conhecimento? Esta mulher, ela chega com pancadas, machucados e, por vergonha, nunca diz que foi o marido que bateu nela. O que é ela diz? Escorreguei da escada. Porque ela tem vergonha, ainda é daquele tipo que pensa o seguinte: se ela não sabe o que fez, a interpretação é de que mereceu aquilo e que o marido tinha razão de bater nela, porque alguma coisa errada ela fez, como antigamente. Porque o marido tem o direito de organizar sua casa e ele é o dono da casa. Então, a palavra dela contra a dele não tinha nenhum valor humano. E por isso que se dizia: em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, porque se ela apanhou, merecia sim.
Em alguns lugares há protocolos para quando ocorrem casos de violência sexual envolvendo crianças ou até mulheres, onde os próprios profissionais de saúde informam os órgãos de segurança. Ou seja, seria um protocolo parecido para esses casos de violência doméstica?
Isso, porque nem toda equipe foi capacitada para entender ou para reconhecer [a violência], porque isso requer uma capacitação para identificar que aquela mulher está cheia de problemas psicológicos. Porque você sabe o que ela está passando, não sabe? Você sabe qual o tratamento que ela tem em casa, não sabe? Você sabe se ela identifica que o marido abusa dos filhos, não sabe? E se ela entra nessa depressão é porque ela está com algum problema relacionado com o agressor. Na maioria dos casos, uma mulher não vai ficar em depressão sem sentido.
A violência doméstica ainda é muito relacionada a violência física, que deixa marcas. Mas a violência psicológica também é algo muito forte e tem relação com isso que a senhora falou. Às vezes a mulher entra em depressão ou tem algum outro problema de saúde mental que já é um sintoma que há aquela violência sofrida em casa…
Exato. E esse homem, vamos dizer, também precisa de um tratamento. No caso, a mulher precisa ser atendida, porque a sequela é bem maior. Mas se ele tem algum sintoma que possa ser corrigido pela Medicina, que ele seja.
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E como foi discutir esse tema com as suas três filhas?
Olha, eu não precisei explicar para minhas filhas o que era violência doméstica. Elas viveram na pele isso. Elas viveram, inclusive, no dia do julgamento. E sim, quando eu ia falando, elas mesmo se defendiam, porque quando ele começou a querer insistir em sair com elas quinzenalmente, elas ficavam tristes. Todos sabiam. Ele mandava uma mensagem, uma carta dizendo que passaria o final de semana. Eu digo: vocês querem sair com o pai de vocês? Elas não, mãe, quero não. Então, pronto, quando ele chegar aqui, vocês dizem que não querem […] Eu estava ali ao lado delas e nunca incentivei elas a irem ou deixarem de ir.[…] Então, ele tentou umas três ou quatro vezes e nenhuma delas aceitava ir ou dizia que tinha uma outra coisa para fazer. Enfim, ele desistiu [do contato].
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Como a senhora acredita que as crianças deveriam ser educadas para que esses ciclos se rompam nessa nova geração?
Isso é muito importante. Nós temos um projeto do Instituto Maria da Penha, que já começou a ser implantado, mas ainda está em fase de adaptação, que são cartilhas criadas na época em que a lei foi sancionada com um linguajar para o adulto e a criança, entender. É um linguajar básico, entendeu? Violência doméstica é isso e isso aqui. E isso pode acontecer desse jeito, daquele jeito. Não existe restrição de idade para ler uma cartilha dessa porque é um linguajar acessível para qualquer pessoa. A prateleira Maria da Penha é um fato que a gente acha que deveria existir em toda a escola, dentro da biblioteca, com algumas dessas cartilhas, para que o serviço psicopedagógico daquela escola possa utilizá-las para conscientização das crianças. Você precisa ver o seguinte: se uma criança vive num lar violento, se vive em comunidade, mas é machista, racista ou homofóbica, então ela vai ser um adulto machista, racista e homofóbico, porque ela só vai conviver com pessoas que são assim. Então, a prateleira tem essa finalidade: desconstruir o que é vivido na realidade.
Essa prateleira é algo que acontece em Fortaleza ou ela está prevista na Lei para ter também outros estados?
Essa prateleira foi idealizada pelo Instituto Maria da Penha e, há mais ou menos um ano e meio, começou a ser implementada por uma juíza aqui de Fortaleza. Mas nós estamos aprimorando [o serviço]. O que vai acontecer? Essa prateleira nós vamos disponibilizar no nosso site e a pessoa que estiver interessado, o colégio ou a instituição que estiver interessada, pode adquiri-lá. Nós estamos, agora, facilitando com que essa prateleira chegue a mais locais, padronizada com os livros escolhidos. Tenho muita esperança que ela seja adotada por muitos colégios, muitas instituições, inclusive nas unidades de saúde também, nas salas de espera. Você está numa sala, espera para ser atendida, está ali o livreto para você ler. E você está se informando sobre o seu direito e está absorvendo conhecimento.
Para terminar, queria que a senhora fizesse um balanço dos últimos anos. A Lei Maria da Penha completa 20 anos em 2026 e foi o primeiro passo para o combate a violência contra a mulher no país. É o maior marco quando o assunto é o combate da violência doméstica, e não só na parte criminal, mas também na prevenção. Qual é o seu balanço e o que a senhora ainda espera para o combate da violência contra a mulher?
Acho que o investimento em educação, porque a Lei Maria da Penha não é apenas punitiva, ela também reforça a questão da educação um de seus artigos. Ela reforça a necessidade de educar para desconstruir culturas. Acho [também] que a questão é dar uma atenção maior para os pequenos municípios através das unidades de saúde. Acho que isso é essencial. E aí a educação é essencial. Nós temos um projeto que é desenvolvido pelo Instituto Maria da Penha, tem uma unidade aqui em Fortaleza e outra em Pernambuco, que foi feito numa linguagem popular, que é fácil de entender todos os capítulos. Temos o projeto dos defensores mirins, que são crianças que começaram no ensino fundamental declamando o cordel e hoje já são adolescentes e continuam levando a informação através dele para as comunidades. Eu acho que o compromisso com a causa é a persistência naquilo que se tem de bom e que pode ser reproduzido cada vez mais.
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