O carro trepida com os buracos e perde o rumo com deformações em ziguezague nas laterais da rodovia. O trecho é em pista simples e com acostamento estreito, quando há algum. Um caminhão cambaleante tenta ganhar a subida a 40 km/h e forma uma longa fila atrás de si. Alguém perde a paciência e ameaça ultrapassar, mas volta num susto ao surgir uma carreta na direção contrária da curva mal sinalizada. A paisagem calorenta intercala plantações de soja e milho com mata nativa, sem serviços por perto. Até o sinal de celular desiste de seguir viagem. O medo de estourar um pneu ou de se acidentar é constante.
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O cenário se repete com uma ou outra diferença, mas sempre agoniante, em algumas das principais rodovias de Santa Catarina. A lista é extensa: BR-158, SC-350, SC-283, BR-153, BR-470, BR-282, BR-163, SC-305, SC-477… apenas para citar as piores. A situação é mais crítica no Extremo-Oeste, região que teve eleito o pior trecho de uma BR no país, segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), que elaborou um ranking em novembro após ter rodado 110 mil quilômetros de estradas pavimentadas no Brasil.
O NSC Total percorreu em uma viagem de 2.339 quilômetros as mesmas 16 rodovias catarinenses ranqueadas pela pesquisa, para conferir in loco a situação de todas elas. A jornada que atravessou o Estado do litoral à fronteira com a Argentina, tocando as divisas com o Paraná e o Rio Grande do Sul e passando por 96 municípios, durou oito dias, entre o fim do mês passado e o início de dezembro. Ao final, foram visitadas 19 rodovias, incluindo três não elencadas pela CNT.
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O trajeto teve início na BR-282, justamente a maior de Santa Catarina, de 673 quilômetros, que atravessa o Estado horizontalmente e indica a gradual piora da condição das rodovias conforme a viagem avança para o Oeste. Ainda na saída da Grande Florianópolis, no entanto, a estrada já apresenta problemas.
A subida da Serra Catarinense entre Rancho Queimado e Alfredo Wagner é de pista simples e cheia de curvas. O trânsito lento de caminhões deixa um rastro de óleo entre os km’s 35 e 52, trecho que costuma ter acidentes por conta disso. A reportagem presenciou uma ocorrência logo no km 40, no primeiro dia de viagem. Debaixo de uma chuva fina, um carro que descia a estrada saiu da pista e bateu em cheio na lateral de um outro que subia. Não houve feridos graves na ocasião.
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— É uma ocorrência comum. O pessoal não respeita a velocidade, e é uma pista muito perigosa. Não tem acostamento, tem muito óleo, e está chovendo ainda — diz o guincheiro Paulo Silva, que presta socorro no trecho e, no início daquela manhã, já previa estar apenas diante de seu primeiro acidente do dia.
Ainda na BR-282, quem percorre o trecho do topo da Serra ao Meio-Oeste testemunha mais cenas de perigo na rodovia, como a de motoristas que tentam ultrapassagens em trechos sinuosos de faixa contínua e a de pedestres que atravessam o trevo de entrada da cidade de Lages em meio a caminhões.
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A partir do trevão do Irani, onde a BR-282 cruza com a BR-153, a viagem vira de vez o quadro relatado no início desta reportagem. Dali a Ponte Serrada, o carro do NSC Total passou por obras de manutenção coordenadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), uma autarquia do governo federal, para cobrir os buracos e as rachaduras que se estendem com recorrência até Maravilha, já no Extremo-Oeste.
— Essa rodovia [BR-282] já foi mexida várias vezes, vem verba, mas nunca é terminada. Aí só fazem um tapa-buraco. Você vê a situação daqui até o trevo do Irani, ela é intransitável — disse o agora ex-caminhoneiro Demerval Lemos de Oliveira, em conversa em um posto de combustíveis à beira da BR-282 em Maravilha. Ele largou a profissão há um ano e meio, depois de 30 anos na boleia.
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— Deixei o transporte devido à situação dos custos muito altos. Vendi o caminhão, porque não tem mais possibilidade, principalmente aqui no nosso Oeste. — afirmou Oliveira.
De acordo com a CNT, os custos operacionais de quem atua no setor podem aumentar em até 91,5% nos trechos com pavimento considerado péssimo. Esse reajuste repercute de modo geral na economia, já que 64,7% do transporte de cargas do Brasil passam pelas rodovias, e ainda tem impactos ambientais — só em 2022, Santa Catarina deve desperdiçar 35,3 milhões de litros de diesel devido à má qualidade de suas estradas, também conforme calcula a entidade.
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As condições ruins ainda impõem perdas de vidas. Só de 2018 a outubro deste ano, 11 pessoas morreram em acidentes nas BR’s em Santa Catarina cuja causa principal esteve associada a defeitos na rodovia, como buracos e desníveis, segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF). A 282 concentrou seis dessas mortes. Já a mais recente ocorreu na BR-158, que corta o Extremo-Oeste, neste ano.
— Eu conheço o Brasil de ponta a ponta, e se você me perguntar qual é a pior rodovia, eu vou te dizer que são essas nossas aqui do Oeste — acrescentou o ex-caminhoneiro Demerval, listando ainda a BR-163, outra que atravessa a região e justamente a que foi eleita a pior do país pela CNT.
As três federais são as principais artérias logísticas do Extremo-Oeste. Por elas, circulam diariamente centenas de caminhões carregados de insumos agrícolas, inclusive de Estados mais distantes que o Paraná e Rio Grande do Sul, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e de países do Cone Sul, casos de Argentina, Paraguai e Chile.
A circulação intensa sobre buracos e deformações abastece e escoa a bilionária agroindústria catarinense de grãos e de criação de animais, em especial de frangos — em 2021, o Estado exportou 1,03 milhão de toneladas da carne, com receitas de US$ 1,84 bilhão, segundo a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri).
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O trio das federais também atende a carros de passeio de cidades importantes do Estado, como Chapecó, a quinta maior de Santa Catarina, com cerca de 227 mil habitantes, e São Miguel do Oeste, de 41 mil.
Na 158, a reportagem encontrou cenário semelhante ao que foi diagnosticado pela CNT em julho, na altura em que a entidade fez sua pesquisa de campo para montar o ranking das rodovias. O trecho tem asfalto muito ruim, sem pintura adequada, com buracos e deformações.
Já na 163, a situação está diferente ao menos entre Guaraciaba e Guarujá do Sul, passando também por São José do Cedro, onde há obras de recuperação da rodovia. O trecho recebe um pavimento diferente, de concreto betuminoso, para tentar suportar os pesados caminhões que vão e voltam por ali — no restante do trajeto, a pista ainda é do velho asfalto deteriorado.
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A obra avança com recursos do governo estadual, que gastou R$ 79,7 milhões nela só em 2022. O valor integra um pacote de até R$ 465 milhões anunciado por Carlos Moisés (Republicanos) no fim do ano passado que previa também aportes para intervenções nas BR’s 280, 470 e 285. A gestão Jair Bolsonaro (PL), de fato responsável pela obra, gastou R$ 141 mil de R$ 26,7 milhões orçados para a 163 neste ano.
Em Guaraciaba, o carro do NSC Total precisou ficar parado em meio ao trânsito interrompido por conta dos trabalhos dos maquinários. Sem previsão de liberação e diante de uma fila ainda maior de caminhões que já se formava, alguns motoristas tomavam um rumo alternativo por dentro da cidade, em uma estrada de terra que desviava da obra, e os que seguiam ali chegavam a esperar já fora dos veículos.
O caminhoneiro Darci Batista era um dos que, com meia hora de espera, ainda permanecia — e parecia satisfeito. Ele circula diariamente na 163 de São Miguel do Oeste a Dionísio Cerqueira há 11 anos e conhece uma pista ainda pior.
— Aqui furava o pneu de dois ou três carros por dia. Hoje é outra vida. Eu não andava aqui com o meu carro. Trabalhava só com o caminhão da firma, mas tinha também que cuidar para não furar ou arrebentar um pneu — contou o motorista, que percorre o trecho com um caminhão de bebidas.
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Em Dionísio Cerqueira, cidade já na divisa com o Paraná e na fronteira com a Argentina, o borracheiro Lauri Simão também se diz testemunha dos históricos problemas da BR-163. Ele atende caminhões no local há 20 anos e diz receber até 100 clientes em um mesmo dia no pátio da oficina.
— O forte aqui é pneu de carga, e faz um bocado de anos que vem ocorrendo esses problemas dos buracos. É do que a maioria dos clientes se queixa aqui para nós. Dá bastante impacto no pneu. Às vezes, ele desloca, porque se forma uma bolha na lateral. E o impacto arrebenta os arames, que são a tela protetora, então o pneu acaba explodindo — explicou Simão.
Na ocasião da conversa, ele fazia a manutenção preventiva de um pneu que chegar a custar R$ 3,5 mil, valor que tem crescido a cada ano. Também de acordo com o borracheiro, o ideal é ter uma dessas revisões a cada 30 mil quilômetros rodados, mas isso pode cair a 15 mil em estradas ruins.
Ainda no Extremo-Oeste, o carro do NSC Total também passou por trechos estaduais que repetem os problemas de abandono das BR’s na região, caso da SC-305 de Campo Erê a São Lourenço do Oeste e da SC-283 ao menos de Águas de Chapecó até Palmitos, com recortes de tapa-buraco no asfalto e parte do acostamento isolado para obras.
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Os piores trechos de SC’s apareceram, no entanto, já na viagem de volta ao Meio-Oeste: novamente na 283, mas de Chapecó a Concórdia, e na 350, justamente as piores rodovias estaduais no ranking da CNT.
Na primeira delas, caminhões de carga viva trepidam na pista por conta das rachaduras e dos desníveis. Para o caso de urgências, não há sinal de celular nem serviços à beira da via.
Já na 350 é necessário superar inúmeros buracos. A passagem entre Água Doce, no trevo com a também deteriorada BR-153, e Caçador ainda ocorreu debaixo de forte chuva, que escondia com água os defeitos da pista e formava piscinas nos trechos de baixadas — apesar de pequeno, o trecho de 60 quilômetros até Caçador já teve 20 acidentes neste ano. A paisagem também é remota, sem rede de internet.
A reportagem ainda transitou pela SC-350 de Lebon Régis ao encontro com a BR-116, já em Santa Cecília, na região serrana. Desta vez, o trecho foi percorrido em um dia de sol, mas nem por isso a direção esteve facilitada. A buraqueira impõe um lento ziguezague na pista, a 50 km/h, e a mesma agonia comum à viagem até aqui. Encerrar o trecho é um alívio.
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