Um policial penal de Itajaí, no Litoral Norte, que supostamente mantinha em sua própria casa um detento em condições degradantes e sem remunerá-lo – situação análoga à de um escravo, avaliou o Ministério Público – responde a um processo administrativo da Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa (SAP) de Santa Catarina.
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O ato disciplinar foi aberto há um mês, no dia 10 de janeiro, quatro anos depois da sindicância do órgão recomendar a abertura do processo.
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A história começou em 2008, quando o detento cumpria pena no presídio de Itajaí, onde o então policial penal trabalhava. Naquele ano, diagnosticado com tuberculose, a saúde frágil e o tratamento necessário foram aceitos como motivos para que a Justiça concedesse a prisão domiciliar ao condenado. Em contrapartida, o homem deveria comprovar em juízo, com relatórios médicos, a evolução do seu quadro clínico. Como isso não aconteceu com regularidade, o benefício foi revogado em 2015 e ele passou a ser considerado foragido.
O detento foi encontrado pela polícia dois anos depois, em 2017, na casa do policial em Itajaí. Na delegacia, o preso contou como era o tratamento na residência do servidor, o que gerou a abertura da investigação. Analfabeto, o homem afirmou que sequer sabia que era um foragido da Justiça.
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Descreveu que após a conversão para a prisão domiciliar, passou a morar com a irmã, mas dois meses depois o policial o levou para trabalhar como caseiro em sua propriedade. Com um documento na mão, o servidor teria dito à vítima que a partir daquele momento ele seria “preso dele, não mais do Estado”.
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Ao detalhar a rotina, o detento revelou que começava a trabalhar às 7h30 e parava por volta de 21h, apenas no domingo descansava depois das 16h e que “não existia feriado, sendo que nunca parou um Natal nem Ano Novo” .
Segundo o preso, o servidor o impedia de visitar a família e ir à igreja, e que, às vezes, fazia trabalhos escondidos na vizinhança para ganhar roupas e algum dinheiro. O valor que recebia, escondia para comprar comida.
“Que o declarante afirma que era conhecido na região como “preso do […]; Que, inclusive quando os policiais foram realizar o Mandado de Prisão a esposa de […], Maria, disse aos Policiais que não poderiam levar “Tonho”, porque ele não era preso do Estado, que ele era preso do […] Que, o declarante afirma que não foi morar com sua irmã porque acreditava ter que ficar na casa do […]”, citou o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC).
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Após o depoimento, o detento foi levado ao presídio de Itajaí, mas morreu meses depois, aos 42 anos.
Os processos
Aposentado desde 2020, o agora ex-servidor público também é alvo de uma ação civil pública em que é apontado pelo MP por submeter o mesmo preso a “trabalhos domésticos em condição análoga à de escravo”. A ação busca comprovar apenas se ele cometeu improbidade administrativa na conduta.
O advogado do policial penal apresentou a defesa em petição na ação. Segundo ele, o detento foi voluntariamente até a casa do policial, “e lá permaneceu e recebeu todos o tratamento necessário de saúde, quando a de sua estada, na atitude humanitária de receber um amigo”.
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Já na investigação da Secretaria de Administração Prisional, o policial penal é suspeito de se utilizar do cargo público “para manter sob sua custódia, em sua residência” o preso, “mantendo-o como empregado, dispensando condições degradantes quanto aos horários de trabalho, sem remuneração e péssimas condições de moradia”.
A sindicância que apurou o caso foi concluída em 4 de dezembro de 2017. De acordo com o Secretário de Administração Prisional e Socioeducativa, Leandro Lima, a demora em iniciar o processo administrativo ocorreu por excesso de trabalho dentro do órgão. Conforme o chefe da pasta, no entanto, isso não comprometeu o caso.
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— A questão do tempo eu acredito que, de fato, a gente tenha que explicar, foi muito tempo porque são muitos processos que envolvem o sistema prisional e socioeducativo — disse.
A comissão, que já está em andamento e tem audiências agendadas, tem prazo de 60 dias, prorrogável por igual período para encerrar.
Impasse
Na ação civil pública por ato de improbidade administrativa, ajuizada em 1º de novembro de 2018, o MPSC detalha que o policial penal aposentado, hoje com 67 anos, teria coagido e submetido o então detento a essa situação por cerca de 8 anos, valendo-se do cargo que ocupava. No processo, o órgão pede que ele tenha a aposentadoria cassada, pois teria se enriquecido de forma irregular.
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[…] prevalecendo do cargo de agente penitenciário, subjugou o sentenciado agraciado pela prisão domiciliar a lhe prestar serviços como trabalhador doméstico em tempo integral, sem qualquer descanso ou remuneração, verdadeiramente como seu ‘preso particular'”, servindo-lhe para assuntos estritamente pessoais e alheios ao interesse público”, escreveu o MPSC na ação.
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À época em que o MPSC ajuizou a ação, informou que não poderia investigar o caso relacionado à questão trabalhista, já que não possuía competência para analisar o suposto crime de redução à condição análoga à de escravo. O caso foi enviado aos órgãos federais. Tanto no MPSC quanto na Corregedoria da SAP, o caso é tratado âmbito da improbidade administrativa.
Ao g1 SC, a Procuradoria Regional do Trabalho da 12º Região informou que chegou a analisar uma denúncia relacionada ao detento, em março de 2017. O caso foi arquivado e enviado para a corregedoria da SAP. Segundo o órgão, o Ministério Público do Trabalho (MPT) atua somente em causas coletivas e não individuais, como teria sido a situação encontrada em relação ao detento.
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A reportagem do g1 tentou contato também com a Justiça Federal, que informou que não há processo em nome do servidor. O Ministério Público Federal (MPF) informou que em 25 de janeiro recebeu uma denúncia da Procuradoria da República no município de Itajaí a respeito do caso. Ela está sendo analisada.
Também procurada, a Delegacia Geral da Polícia Civil informou na tarde desta quarta-feira (9) que o “teor do caso será analisado e, por exemplo, em relação ao crime tipificado de redução à condição análoga de escravo (art. 149 do Código Penal), ele é de competência da Justiça Federal, o que levaria a investigação à Polícia Federal e não à Polícia Civil”.
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O Conselho Nacional do Ministério Público foi questionado sobre qual órgão possui a competência para tratar do caso. A assessoria informou que não se manifesta sobre teses ou casos em que não esteja atuando, pois, eventualmente, pode ser provocado a julgar procedimento sobre o assunto.
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Professor de direito e advogado, Roberto Wöhlke explica que a Constituição determina que são da competência da Justiça Federal os crimes contra a organização do trabalho ou análogos à escravidão. Segundo o especialista, nesse sentido, a atribuição para a investigação ficaria a cargo do Ministério Público Federal.
O que diz a defesa
Segundo a defesa, o servidor público conheceu o detento antes de ele ser preso, pois ele trabalhava em sua casa e de outros vizinhos como profissional autônomo. Ainda, afirmou que comunicou ao fórum que o detento estava na residência, sempre cuidou da saúde do homem e que ele era tratado como membro da família.
Segundo a defesa do servidor, “não há que se falar que o ora acusado tenha infringido as disposições da Lei de Improbidade Administrativa, devendo o mesmo ser absolvido de tais acusações”.
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Considerando, segundo o advogado, que o MPSC não conseguiu demonstrar ofensa à Lei de Improbidade Administrativa, a defesa pediu para que seja rejeitada a ação “pela inexistência do ato de improbidade, improcedência da ação ou inadequação da via eleita”.
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“A produção de todos os meios de prova em direito admitidas, como oitiva de testemunhas a serem arroladas, as quais corroborarão com a defesa do ora acusado, bem como, juntada de documentos e todos os demais que se fizerem necessárias”, informou o advogado na ação.
Ao Santa, o defensor afirmou que o processo administrativo da SAP não tem sentido, inclusive pelo tempo decorrido.
— Não tem efeito prático nenhum, ele já está aposentado. Vou fazer a defesa e arguir prescrição — garantiu.
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Sobre a ação no MP, o advogado acrescentou que trará provas e testemunhas para esclarecer que o detento vivia de favor na casa do policial penal e, que, para ajudar, fazia pequenas atividades, conforme as condições de saúde permitiam.
Segundo a assessoria do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o servidor aposentado foi notificado, apresentou uma defesa preliminar e houve a manifestação do MPSC. Em nota, o órgão informou que “com a alteração da Lei de Improbidade Administrativa, ocorrida no ano passado, as partes foram intimadas para se manifestar sobre as implicações da nova Lei”.
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