Uma transmissão com o volume baixo faria parecer que se trata de uma tarde de futebol como qualquer outra: estádio Mestalla lotado, torcida empolgada, gramado impecável, o Real Madrid pressiona o Valencia, que segura o 1 a 0 em casa em um jogo da La Liga, a divisão de elite do futebol espanhol. Tudo parece normal, até Vinícius Júnior surgir indignado. Sobe, então, o som ambiente.
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Uma massa de torcedores do Valencia entoa gritos de “macaco” contra o brasileiro, repetindo em maior coro aos 27 minutos do segundo tempo o que já faziam ao longo de todo o jogo, impunemente ignorados até então, como se tudo aquilo não estivesse sendo ouvido ou como se fosse algo normal.
O caso flagrante de racismo em Valência, do último domingo (21), foi o décimo sofrido por Vini Jr. na Espanha em um ano e meio. Desta vez, em que ele ainda acabou expulso, o episódio mobilizou o governo brasileiro, atletas e outras figuras públicas, que pressionam autoridades espanholas e patrocinadores por um basta à discriminação racial.
Referência de empoderamento negro pelo talento, Vinícius precisou se firmar agora também como um ícone antirracista, colocando em dúvida a própria permanência na Espanha, mas se mantendo irredutível contra o racismo: “Eu sou forte e vou até o fim contra os racistas. Mesmo que longe daqui”, publicou nas redes sociais.
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— Hoje nós temos um gigante de 22 anos que traz para si essa questão, mata no peito e vai para cima dos racistas literalmente, se assemelhando ao próprio futebol — diz o professor Márcio de Souza, histórico militante do movimento negro catarinense e único prefeito negro de Florianópolis, ao ter assumido o cargo interinamente em 2010, quando era vereador.
Racismo recorrente
Vini Jr. é alvo de racismo no país ao menos desde 24 de outubro de 2021, quando foi chamado de “macaco” por torcedores do Barcelona em um jogo fora de casa. Os ataques ficaram mais frequentes, porém, a partir de setembro de 2022, quando torcedores do Atlético de Madrid foram filmados desavergonhados cantando “Vinícius, você é um macaco” antes de um clássico. O Ministério Público espanhol arquivou uma denúncia sobre o caso após breve investigação, por entender que não haveria ato específico a se imputar a uma pessoa específica ali.
Também à época, um debatedor do programa espanhol de TV “El Chiringuito”, o empresário Pedro Bravo, disse que Vinícius deveria “deixar de fazer macaquices” em crítica às comemorações com danças. O caso despertou a campanha “Baila, Vini” em defesa do atleta. Em resposta, o programa disse que a expressão “pode ser mal interpretada”, mas não seria racista.
Em dezembro, na casa do Valladolid, Vini foi chamado de “negro de merda”. Em janeiro, criminosos penduraram um boneco em uma ponte de Madri simulando o enforcamento dele. Neste ano, o atleta também foi insultado pelas torcidas de Mallorca, Osasuna e Betis. Em março, mais uma vez em Barcelona, ouviu rivais entoarem no Camp Nou gritos de “morra, Vinícius”.
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O Valladolid, time de Ronaldo Fenômeno, baniu da temporada 11 torcedores identificados. Um torcedor do Mallorca que havia proferido ofensas racistas contra Vini e o atleta nigeriano Chukwueze, do Villarreal, foi multado em 4 mil euros (cerca de R$ 22 mil) e banido de estádios por um ano, por decisão de uma comissão estatal espanhola de combate ao racismo no esporte.
A La Liga e a Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) não impuseram sanção esportiva alguma aos clubes envolvidos. As primeiras prisões envolvendo os casos só ocorreram após a repercussão recente.
O estopim de Valência
Em Valência, o estopim para a revolta de Vini se deu quando um torcedor racista já se sentia confortável até para imitar um macaco atrás do gol adversário, a poucos metros do gramado e das câmeras.
O capitão do Valencia, José Gayà, intercedeu apenas para conter Vini, que apontava desesperado para um dos criminosos. Já o árbitro Burgos Bengoetxea interrompeu a partida para que o sistema de som do estádio avisasse que ela poderia ser suspensa caso as ofensas não cessassem, atendendo a um protocolo da Fifa. A bola voltou a rolar cinco minutos depois. Na súmula, em uma versão retificada, ele registrou que um torcedor (apenas um) xingou Vinícius de “macaco”.
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Nos acréscimos, em uma confusão generalizada, o goleiro Mamardashvili partiu para cima de Vinícius, e os dois foram amarelados. O árbitro de vídeo recomendou, contudo, a revisão para que o brasileiro fosse expulso: o trecho do vídeo selecionado pelo chefe do VAR, Ignacio Iglesias Villanueva, mostra o atleta do Real batendo o braço no rosto do adversário Hugo Duro.
O VAR não exibiu, no entanto, que Duro dava um mata-leão em Vini antes de o brasileiro reagir, tentando se soltar. Apenas a vítima de racismo é expulsa, deixando o campo sob mais ofensas. O atleta aplaudiu em ironia e levantou dois dedos, em alusão à briga do Valência para não cair à segunda divisão.
Na saída do estádio, um repórter chegou a questionar Vini se ele pediria perdão pelo gesto, sem mencionar as ofensas racistas. “Você é burro?”, retrucou o jogador.
Entre quem acompanha futebol na Espanha, é recorrente surgir o argumento de que Vini provocaria o racismo do qual é vítima, segundo relata o torcedor catarinense João Lucas Dal Farra, que, há três anos em Madri, estendeu a paixão pelo Criciúma ao Rayo Vallecano, do qual é sócio-torcedor.
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— De modo geral, entre os torcedores que frequentam estádios, percebo que eles odeiam muito mais o Real Madrid do que o racismo. Eles tentam justificar e também usam muito a palavra “provocador”, porque o Vinícius provocaria e mereceria ser vítima de racismo. Outra coisa que eles vêm usando nesses últimos dias é o fato de o Brasil também ser um país racista, de matar negros, como se fosse uma competição de quem é mais racista ou combate menos o racismo.
No episódio de Valência, Vinícius nem sequer precisou pisar em campo para já ser alvo de racismo: na chegada do ônibus do Real, torcedores já entoavam nos arredores do estádio gritos de “mono, mono, mono”, ou “macaco”, em tradução do espanhol. O técnico merengue, Carlo Ancelotti, diz que isso derrubou de vez a relativização dos ataques.
— Que fique claro: ele é a vítima disso tudo. O protocolo teria que ser aplicado quando o ônibus chegou ao estádio, porque aí começaram os insultos. Então, se acaba aí a teoria de todos aqueles que dizem que Vinícius provoca isso, porque, duas horas antes da partida, quando chegamos ao estádio, já havia isso.
Ataque da La Liga e contragolpe de Vini
Vini se manifestou nas redes sociais após o jogo: “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi, hoje é dos racistas. Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas”.
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Em resposta, o presidente de La Liga, Javier Tebas Medrano, criticou Vini, afirmando ser injusto dizer que o torneio e a Espanha são racistas e que o brasileiro deveria se “informar adequadamente”. O cartola disse ainda que a competição já cumpria com suas atribuições, tendo ajudado a identificar infratores e levado oito denúncias de ofensas a Vini para autoridades.
“Não importa quão poucos [casos] sejam, sempre somos implacáveis”, escreveu nas redes sociais Medrano, conhecido na Espanha também por suas inclinações políticas — ele já integrou o Força Nova, partido neofascista espanhol, e declarou apoio ao Vox, sigla de extrema-direita.
O brasileiro não recuou: em vídeo nas redes sociais, listou os jogos de La Liga em que foi vítima de racismo, sem que criminosos fossem banidos das arquibancadas ou clubes perdessem pontos.
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“O discurso sempre cai em ‘casos isolados’, ‘um torcedor’. Não, não são casos isolados. São episódios contínuos espalhados por várias cidades da Espanha. As provas estão aí no vídeo. Agora pergunto: quantos desses racistas tiveram nomes e fotos expostos em sites? Eu respondo pra facilitar: zero.”
O craque ainda parafraseou o slogan do torneio (“No és fútbol, és La Liga”): “Não é futebol, é desumano”.
Multa e prisões
O Real Madrid reforçou a defesa ao jogador e comunicou ter pedido à Procuradoria-Geral espanhola que investigue o caso de Valencia como crime de ódio — forma com que o racismo é tipificado no país.
O presidente da Fifa, Gianni Infantino, também lamentou pelas redes o ocorrido e sinalizou que o protocolo da entidade para coibir o racismo teria sido mal aplicado em Valência. “Primeiro, você para o jogo, você o anuncia. Em segundo lugar, os jogadores saem do campo e o alto-falante anuncia que, se os ataques continuarem, o jogo será suspenso. O jogo recomeça e, em terceiro lugar, se os ataques continuarem, a partida vai parar e os três pontos vão para o adversário.”
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O banco que patrocina e empresta o nome à La Liga foi outro a se manifestar: “O Santander repudia veementemente qualquer manifestação de preconceito ou racismo e apoia uma solução rápida”.
Gigantes dos esportes também saíram em defesa de Vini: Neymar, Richarlison, Mbappé, Ronaldo, Lewis Hamilton, Gabriel Medina e Tom Brady, entre outros. Famosos como Emicida e Anitta juntaram-se ao coro. A revolta ao racismo ainda uniu diferentes clubes, incluindo o Flamengo, que formou o atleta, e o arquirrival Vasco, clube com histórico de luta antirracista.
Já dois dias depois do jogo, a La Liga publicou nota dizendo que pedirá mudanças na legislação espanhola para que haja maiores “poderes sancionatórios” em casos assim. O cartão vermelho contra Vini foi retirado, e o árbitro do VAR que recomendou a expulsão do atleta foi demitido.
O Valencia foi multado em 45 mil euros (cerca de R$ 240 mil) e a fazer cinco jogos com parte das arquibancadas fechadas, mas ainda poderá recorrer. Antes, o time havia se manifestado em nota, mas sem citar Vinícius ou o termo “racismo”, classificando as ofensas como um caso isolado: “O clube está investigando o ocorrido e tomará as medidas mais severas”.
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Ainda em Valência, três torcedores com idades entre 18 e 21 anos foram presos na terça (23). Conforme apurou a imprensa espanhola, eles foram soltos após prestarem depoimento, para responderem em liberdade por crime de ódio. No mesmo dia, em Madri, a polícia local prendeu outros quatro suspeitos de crime de ódio contra Vini, com idades entre 19 e 24 anos, pelo caso do boneco pendurado.
Um incidente diplomático
Ainda no dia do jogo em Valência, o presidente Lula (PT) se manifestou em apoio a Vini e em cobrança à Fifa e ao futebol espanhol. Ele foi seguido por outros três ministros de Estado. Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública, cogitou recorrer ao princípio da extraterritorialidade para eventualmente punir os racistas, mas recuou do “remédio extremo” após as primeiras prisões terem sido anunciadas na Espanha.
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, anunciou, na segunda (22), que “iria para cima das autoridades espanholas” e, no dia seguinte, assinou nota conjunta com a ministra da Igualdade da Espanha, Irene Montero, em solidariedade a Vinícius.
Já Silvio de Almeida, chefe da pasta dos Direitos Humanos, cobrou sanções esportivas: “Nós sabemos que o racismo, que é um fenômeno social, ganha forma e se espalha por meio da ação e da omissão institucional, especialmente quando tudo é transmitido em rede mundial”, escreveu nas redes sociais o ministro, que, além de pesquisador do racismo, é filho de Barbosinha, histórico goleiro do Corinthians.
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O presidente da Espanha, o socialista Pedro Sánchez, também se manifestou pelas redes sociais, mas sem citar o nome de Vinícius ou anunciar alguma sanção no caso: “Tolerância zero com o racismo no futebol. O esporte se fundamenta nos valores da tolerância e do respeito. O ódio e a xenofobia não devem ter lugar no nosso futebol e na nossa sociedade”, escreveu.
A Organização das Nações Unidas (ONU) também endossou o caráter de incidente diplomático dos ataques a Vini, com manifestação do alto comissário da entidade para os Direitos Humanos, Volker Turk, na quarta (24), em apelo pelo combate ao racismo.
Punição e educação
Presidente do Conselho Estadual das Populações Afrodescendentes de Santa Catarina (Cepa-SC), o pedagogo Marcos Aurélio dos Santos diz esperar que as respostas ao caso de Vini Jr. na Espanha possam servir de exemplo para o futebol do Estado, que teria falhado ao lidar com episódios passados.
Ele cita o caso do meia Celsinho, então jogador do Londrina que foi xingado de “cachopa de abelha” pelo dirigente Júlio Antônio Petermann, do Brusque, em referência ao seu cabelo black power, durante uma partida pela Série B do Campeonato Brasileiro em 2021.
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— No âmbito internacional, vimos que está existindo uma certa mudança. A nível de Santa Catarina, o caso do Celsinho foi irrisório: o torcedor foi identificado, era um dirigente que estava em local reservado à diretoria do Brusque, houve a punição, mas recorreram [ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva], e os pontos voltaram à equipe. Então, na verdade, não houve qualquer punição.
À época, o Brusque publicou nota acusando Celsinho de “falsa imputação de crime”. Já o dirigente relatou ao STJD não saber que se tratava de expressão racista e que ela seria comum na região.
O presidente do Cepa-SC diz que é preciso atuar em duas frentes para combater casos de racismo no futebol. A primeira seria a punitiva, com prisão de criminosos e sanções esportivas aos clubes. A segunda seria pedagógica, a ser viabilizada com os recursos das multas aplicadas aos racistas.
— Os trabalhos pedagógicos se fazem com técnicos, dirigentes, jogadores, torcedores e dentro das escolas, para que essas medidas, em cinco ou 10 anos, possam ajudar a reverter esse processo, porque não é algo imediato. Iniciando, acreditamos que vamos minimizar essa condição — diz Santos.
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O conselho chegou a levar, em 2020, à Federação Catarinense de Futebol (FCF) um projeto para promoção da cultura antirracista no esporte, para, entre outras ações, serem feitas palestras sobre o tema em escolas, em iniciativa capitaneada à época pelo então presidente do Cepa-SC, o ativista Márcio de Souza.
O plano teria tido boa recepção da entidade, mas deixou de avançar no governo estadual, que precisaria ser parceiro através da Secretaria de Estado da Educação (SED), segundo Souza relatou à reportagem. A ideia agora é reforçar o apelo pela proposta.
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